João Bosco: “A remuneração que vem do streaming é ridícula”

O músico mineiro, que faz shows em São Paulo em setembro, fala sobre o seu novo disco, 'Boca Cheia de Frutas' (2024), direitos autorais, luto e religião

Por Tomás Novaes
30 ago 2024, 06h30
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João Bosco, 78: quatro shows em São Paulo (Victor Correa/Divulgação)
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“Sou de Minas Gerais, então gosto de conversar”, diz João Bosco, 78. O tempo passa rápido quando se bate um papo com o cantor e compositor mineiro, que, em setembro, fará quatro shows em São Paulo: três no Sesc 14 Bis, nos dias 13, 14 e 15, e um no Coala Festival, no próximo sábado (7).

As apresentações, em quarteto, seguem celebrando os seus cinquenta anos de carreira, completados em 2022. Em maio, João lançou um inspirado disco de inéditas, Boca Cheia de Frutas (2024), idealizado com seu filho, Francisco Bosco.

Seu violão inconfundível guia as composições sobre ancestralidade, Brasil e natureza — o fruto mais brilhante do trabalho, a música O Canto da Terra por um Fio, gravada com o violoncelista Jaques Morelenbaum, renderá uma inédita turnê de shows em duo com o instrumentista na Europa, em outubro. Sobre essa e outras histórias, ele falou à Vejinha.

Como nasceu a ideia desse disco?

Boca Cheia de Frutas é a tradução do verso de uma canção ianomâmi, cantada pelas crianças. É engraçado, porque os afro-brasileiros que chegaram nos navios negreiros tinham uma cantoria muito semelhante, em que alguém canta e os outros respondem o verso juntos. Achei bonita essa coincidência. Fiz uma música (O Canto da Terra por um Fio) e, cantando os fonemas, percebi que tinha uma ligação muito forte com a terra. Mostrei para o Francisco Bosco, ele concordou, mas disse que não iria para o lado da utopia, e sim para a distopia. A relação contemporânea entre o ser humano e a terra é desrespeitosa, a natureza tem sofrido com isso, e essa questão vai se virar contra nós. O disco todo se assenta nessa ancestralidade, tanto dos povos originários como dos afro-brasileiros. É um modo de vida que está presente ao longo do álbum, inclusive sobre a perda de entes queridos. Estamos vindo de uma pandemia em que eu perdi um grande amigo e parceiro, o Aldir Blanc (1946-2020). Tudo isso desaguou nessa ideia da terra, do ser humano e sua falta de respeito pela natureza, de não retribuirmos tudo que ela nos dá.

Em 2020, além de Aldir, você também perdeu Tunai, seu irmão. Como lida com o luto?

Não há muito o que discutir, é uma dor que faz parte da vida de todo mundo. Nós temos que saber lidar com isso. Não acredito que 2020 seja um ano que não vai existir mais; a vida continua e pode ser que a gente viva outro ano parecido, como já aconteceu no passado. Acho o mundo muito difícil de entender; você deve respeitar essas coisas e seguir em frente. Os povos africanos têm a sua maneira de celebrar a perda, no gurufim; eles se despedem com festa porque um ente querido vai, mas fica a sua história, o seu exemplo, os seus feitos, e tudo isso é importante para quem fica. A vida é importante para quem fica. Vi que descobriram em uma galáxia um corpo 27 000 vezes maior que a Terra, voando a uma velocidade de 1,6 milhão de quilômetros por hora. Olha, depois que você vê um troço desse, você fica muito pequeno. Dentro do nosso tamanho, vamos fazer o possível, mas, acima de tudo, vamos seguir em frente. E, para mim, a música é tudo. Eu acredito que ela salva, pelo menos comigo ela tem feito isso.

“A relação contemporânea entre o ser humano e a terra é desrespeitosa, a natureza tem sofrido com isso, e essa questão vai se virar contra nós”

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Sua música é muito influenciada pelas religiões de matriz africana. Qual a sua religiosidade pessoal?

Minha família toda era católica apostólica romana. Sempre admirei o norte da África e o mundo de Alá, e acreditei em coisas muito diversas. Meu pai tinha uma coisa engraçada. A igreja ficava em uma praça com um ponto de táxi, e ele era muito amigo dos motoristas. Então, quando íamos à igreja, a gente não entrava — ficávamos nos degraus, conversando. Lá dentro, quando as pessoas ajoelhavam, a gente também ajoelhava lá fora, com um certo atraso. E continuava a conversa. Para mim, a igreja sempre foi essa situação de você estar perto, mas não necessariamente dentro. Morei onze anos em Ouro Preto, então é muito difícil você separar a religião da sua vida. Agora, o jeito como você a utiliza é pessoal. Eu tenho o meu, e ele está presente nas minhas músicas.

Você nasceu em Ponte Nova e mora no Rio de Janeiro. Tem uma relação musical ou pessoal com São Paulo?

Vou a São Paulo desde o início da minha carreira. Quando Serginho Groisman produzia shows no Colégio Equipe, eu toquei, se não me engano, na inauguração, com o Aldir na percussão. Ele nos buscou no aeroporto com aquele Fusca dele. Depois disso veio a Elis Regina, que morava em São Paulo, eu estava sempre na casa dela. Fiz muitas músicas na cidade, em hotéis e noites paulistanas. Como, por exemplo, Odilê, Odilá, com o Martinho da Vila. Em alta madrugada, passando por uma praça, com um alto teor alcoólico na cabeça, vimos uma baiana cantando um samba de roda, podendo até ser confundida com uma vertigem ou algo no mundo do imponderável (risos). Alguns meses depois, lembrando disso, fizemos essa canção, que considero muito importante no meu repertório.

No final do ano, você fará uma série de shows com Jaques Morelenbaum na Europa. É um projeto inédito?

Nós já estivemos juntos muitas vezes em estúdio. Temos uma afinidade musical muito grande, e, no Boca Cheia de Frutas, a primeira gravação que fiz foi O Canto da Terra por um Fio, somente ele e eu. Nós temos os mesmos produtores na Europa, eles ficaram muito entusiasmados com o resultado dessa gravação e fizeram o convite para uma turnê europeia em duo. Ele topou na hora, e eu também. Nunca fizemos isso juntos, pode resultar em uma coisa bem interessante.

Em entrevista ao programa Provoca, da TV Cultura, Ivan Lins criticou a baixa remuneração das plataformas digitais aos autores. Qual a sua visão sobre esse assunto?

Ele tem toda razão, essa questão do streaming é uma luta que acontece no mundo inteiro. Se você é autor, não consegue viver de direitos autorais, então precisa ser mais do que isso. No nosso caso, como músicos, nós fazemos shows. Então é daí que recebemos o nosso dinheiro. Porque a remuneração que vem do streaming é simplesmente ridícula, não faz a menor diferença. Hoje, a forma de criação também é diferente, ela acompanha esse processo da internet. Estamos adentrando a inteligência artificial, que vai fazer discos, utilizar a voz ou o estilo de um intérprete e reproduzir aquilo como se ele estivesse vivo. Isso vai acontecer. Então, o que é o direito autoral? Estamos em um momento em que é difícil você ter uma conclusão sobre isso.

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Publicado em VEJA São Paulo de 30 de agosto de 2024, edição nº 2908

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