“Tradutora” das rochas, Denise Milan completa quarenta anos de carreira
Com fenda gigante cravejada de ametistas, nova obra de Denise Milan será destaque na Bienal de Artes do Mercosul
Mais que artista plástica, Denise Milan se considera uma intérprete das pedras. Para traduzir o que elas têm a dizer, um dos seus métodos é traçar paralelos com a experiência humana. “Assim como as pedras, estamos sempre buscando maneiras de continuar a viver e prosperar”, reflete.
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Com o título TrincAr, seu novo trabalho será destaque na 13ª Bienal de Artes do Mercosul a partir de 15 de setembro no Museu de Arte do Rio Grande do Sul. Trata-se de um “rasgo” de 20 metros de comprimento cravejado de ametistas, quase uma versão ampliada da fenda feita por ela no corredor do apartamento onde mora, em Higienópolis.
Em proporções diferentes, esses rasgos servem de metáfora para a sobrevivência humana (colocada em xeque desde a pandemia) e representam uma ruptura. Na sala de casa, ela se agacha para apontar o detalhe de um de seus cristais (na foto acima), que resume bem a ideia: apesar das rachaduras expostas dentro da rocha, ela continuou se desenvolvendo até o estado final — e essa “cicatriz” não interrompeu o caminho. Só passou a fazer parte da história.
No âmbito pessoal, foram várias as rupturas da artista paulistana: a primeira, ao perder o pai, Rachid Milan, quando tinha 11 anos, e, mais tarde, a perda de uma filha, com 4 meses — segundo ela (e as pedras), quando esses acontecimentos interrompem a rota da vida, sempre existe a opção de se concentrar apenas na ferida ou deixá-la cicatrizar. “Se a pessoa fica presa na ruptura, perde a oportunidade de progredir.”
A separação após um casamento de 26 anos e o surgimento de um câncer de mama, em 2004, também alteraram drasticamente sua trajetória. “Meu corpo trincou. Foi uma mudança brutal porque passei por onze horas de operação para a mastectomia. Tive de me reinventar.”
E as pedras, acredita, a ajudaram a dar sentido a essa recuperação. “Eu tinha de entender aquele desajuste no meu corpo e quais possibilidades tinha para me reposicionar”, observa. “As pedras fizeram com que eu me organizasse segundo as leis da natureza, que são as que menos machucam o homem. Desse momento individual passei a viver uma experiência coletiva.”
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Depois de ter cursado economia e se decepcionar com a escolha, Denise se conectou com os cristais por acaso, ao receber a sugestão em uma mostra de arte. “Foi aí que me lembrei da caixinha com pedras brasileiras que meu pai havia me dado de presente na infância.”
Hoje ela acumula vários tesouros como esse e sonha em transformar sua “quartzoteca”, uma sala espelhada onde guarda algumas das suas criações, em museu ou galeria. “Quero deixar essas narrativas para as outras gerações.”
Em São Paulo, pelo menos cinco de suas obras ficam expostas em locais como Anhangabaú e a Estação Clínicas do metrô, além de ter produções em cidades como Veneza, Nova York e Chicago. E todos esses fragmentos marcam, desde então, alguns dos pontos principais de sua carreira e vida pessoal.
“Como o rasgo com três basaltos na parede de casa, que fiz quando minha filha se mudou, ou o rio de cristais no qual me deitei durante o período de separação… E que depois expus para mais de 1 milhão de pessoas”, relembra. “Sempre existirão esses lutos, mas depois a superação, que pode ser um traço da nossa evolução.”
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Publicado em VEJA São Paulo de 14 de setembro de 2022, edição nº 2806