E-sports: milhões de fãs, esperança na periferia e arena de 95 milhões
Em ascensão, os esportes eletrônicos se mostram lucrativos e profissionais já vivem desse universo; agora, cidade se prepara para receber eventos
A uma semana do início da Olimpíada de Tóquio, os times se aprontam, os atletas se concentram, os apresentadores treinam postura e voz e os patrocinadores, que investiram rios de dinheiro em transmissões, aguardam a sempre elevada audiência. Toda essa preparação não é para o maior evento esportivo do mundo, mas para mais um dia no universo do tipo de entretenimento que mais cresce entre os jovens paulistanos e brasileiros, os e-sports, ou esportes eletrônicos.
Na teoria, a modalidade nada mais é do que a boa e velha competição de videogame. Na prática, a história é muito maior. Dados da consultoria Alvarez & Marsal apontam que o setor deve faturar 1,1 bilhão de dólares neste ano e que poderá chegar a 1,6 bilhão de dólares até 2024. Segundo a Pesquisa Game Brasil 2021, 46% dos que consomem jogos digitais jogaram mais na pandemia. Quando o assunto é popularidade, o Free Fire é o maior destaque por aqui. Para se ter uma ideia do tamanho do negócio, a liga brasileira do jogo atingiu 1,1 milhão de espectadores simultâneos em 2021.
Na capital paulista, ninguém no Free Fire é maior do que um jovem de 21 anos nascido e criado em uma favela na região do Campo Limpo, na Zona Sul. Em quatro anos, Bruno Goes, o Nobru, foi de produtor de conteúdo amador em uma estação improvisada a sócio de uma empresa, a Fluxo, que foi criada há apenas seis meses, possui oitenta funcionários e fatura 1 milhão de reais por mês.
Campeão brasileiro e terceiro no Mundial deste ano, ele foi indicado ao prêmio de personalidade do ano pelo Esport Awards 2021, a maior premiação internacional de esportes eletrônicos. Na semana passada, Nobru, que possui mais de 30 milhões de seguidores nas redes sociais e tem Neymar como seu maior ídolo, se tornou embaixador global de games de um gigante do entretenimento mundial.
“O TikTok quer mostrar que o aplicativo não é só dancinha. Pode jogar, se divertir”, afirma o rapaz, que se mudou da favela para uma casa com seis quartos em um condomínio fechado em Arujá. Antes do contrato com a rede social, o jogador profissional, streamer (criador de conteúdo para plataformas digitais) e influenciador havia assinado outro grande acordo, dessa vez para ser head criativo de games das Casas Bahia.
O curioso é que esse contrato foi assinado com a mesma empresa em que seu pai, Jeferson Goes, 38, “estourou” o cartão de crédito para financiar um computador e um fone de ouvido semiprofissional quatro anos antes. Sua principal receita vem com a produção de conteúdo na plataforma Twitch, que lhe rende entre 1,5 milhão e 2 milhões de reais por mês.
Mas nem tudo é colorido. O mundo dos esportes eletrônicos não fica atrás de outras modalidades “da vida real”, como o futebol, quando o assunto é machismo. As equipes profissionais raramente são compostas de homens e mulheres juntos. “Eu fiz parte de um time misto que não me dava apoio. Quando sobrava apenas eu viva (na partida), os caras gritavam “estupra”, lembra a jogadora de Valorant Taynah Yukimi, 22, hoje no feminino da B4 eSports.
A remuneração também é um desafio dentro do cenário feminino. “Quando eu comecei, em 2018, meu primeiro salário foi de 400 reais. Hoje o nível melhorou e chega mais perto do masculino, a média é de 2 500 reais”, diz a paulistana Gabriela Freindorfer, 24, jogadora de Counter-Strike da equipe feminina do time FURIA.
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dos jogadores brasileiros são mulheres, segundo a Pesquisa Game Brasil 2021
Outro desafio, mas que une homens e mulheres dentro do cenário profissional dos jogos eletrônicos, é conciliar o desempenho nos games e seus movimentos repetitivos com a saúde física. “Eu jogo de dez a doze horas por dia. Já tive dor no ombro, lombar, costas. Hoje temos apoio de médicos e fisioterapeutas”, diz a jogadora Karina Takahashi, 25, também da equipe feminina da FURIA.
Outra preocupação é com a cabeça da molecada. “Um cara de 16 anos lida com cobranças e críticas de milhões de seguidores que a gente tem em todas as redes sociais, por isso temos um time de psicólogos para atender os nossos jogadores”, diz o CEO da LOUD, Bruno Bittencourt. A empresa é uma plataforma de entretenimento que reúne cinco times profissionais de e-sports, 26 jogadores, além de influenciadores digitais. A preocupação nem sempre foi tão patente.
“No início, a gente via muitos jogadores que se afastaram por tendinite e problemas do tipo. Antes, os times tinham de obrigar o pessoal a fazer exercícios, hoje é mais bem-aceito”, lembra Gustavo Gomes, o Baiano, 27, ex-jogador de League of Legends (LoL) e streamer de sucesso, com quase 700 000 seguidores na Twitch. Em 2016, ainda jogador, ele descobriu um tumor benigno no intestino, que interrompeu momentaneamente sua carreira.
Quem também trocou as competições pelas transmissões via internet foi o paulistano Alexandre Borba, 37, o Gaules. Das lan houses às viagens internacionais para jogar profissionalmente Counter-Strike, ele saiu do mundo dos jogos em 2008 e foi trabalhar na Samsung. A empreitada no mercado de tecnologia lhe forneceu bagagem para fundar uma produtora três anos depois. Após sofrer depressão, em 2017, iniciou as transmissões na Twitch e seu trabalho explodiu. No bom sentido. Hoje, Gaules figura entre os dez maiores do mundo na plataforma e, segundo a consultoria Stream Hatchet, ele foi o segundo streamer mais visto mundialmente no primeiro trimestre de 2021.
A força de Gaules não se resume à transmissão de conteúdos gamers, como os campeonatos de Counter-Strike. Em junho, ele foi o primeiro streamer do mundo a obter os direitos de imagem da NBA, liga de basquete americana, e transmitiu as fases eliminatórias da competição: o pico de audiência foi 142 000 espectadores simultâneos. “As pessoas querem se conectar, estão criando um hábito de stream”, diz o empresário-apresentador, que produz doze horas de conteúdo diariamente.
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Entre as mulheres, a comentarista Maah Lopez, 25, é outro destaque. Alguns dos episódios do Airdrop, nome da atração sobre novidades do Free Fire, passam das 200 000 visualizações. “Antes do Free Fire, eu tive um contrato com o Facebook. Quando me chamaram, só acreditei que não era golpe quando caiu o primeiro salário, de tão feliz que fiquei”, diz Maah, que vem de uma família humilde de Belo Horizonte.
dos brasileiros que consomem jogos digitais têm entre 20 e 24 anos, segundo a Pesquisa Game Brasil
O jogo, que pode ser instalado em qualquer tipo de smartphone, é o mais popular inclusive nas comunidades paulistanas. “Aqui Free Fire é absurdo, de cada dez moleques, oito estão jogando. Quando a gente abriu a peneira para o campeonato, foram 428 inscritos. Para a taça da Cufa (Central Única das Favelas) de futebol são geralmente 300, a gente até se assustou”, diz o treinador do time do Complexo Jardim Elba, conjunto de onze favelas da Zona Leste, Igor Oliveira, 22, que é voluntário no projeto e começou a estudar estratégias de Free Fire depois da primeira grande competição entre comunidades: no fim de 2020, a Cufa promoveu a Taça das Favelas Free Fire, em parceria com a Garena, a criadora do jogo.
“Na fase estadual, foram 48 favelas de cada estado e os campeões eram classificados para a etapa nacional. Foram mais de 6 000 pessoas jogando”, diz Marcus Athayde, 21, da Cufa, diretor do evento. A final foi transmitida no SporTV e a live no YouTube contou com mais de 700 000 visualizações. Entre os competidores, o time do Complexo Jardim Elba foi o vencedor do título paulista e ficou em oitavo na etapa nacional. São cinco jogadores na equipe: Cauê, Felipe, Nycolas, Davi e Ryan Barbosa, que possuem entre 15 e 16 anos. O maior ídolo dos meninos é Nobru. “Ele é referência e motivação para a gente: ele saiu da favela e foi campeão mundial”, afirma Felipe, que está a anos-luz do ídolo. A equipe amadora conta com patrocinadores para bancar as inscrições em campeonatos que pagam prêmios de no máximo 500 reais, o que ajuda a manter o projeto.
Enquanto o mercado de games deslancha no mundo virtual, uma grande arena (de verdade) será construída no mais icônico estádio de futebol da cidade. Com 3 500 metros quadrados e capacidade para 2 000 pessoas sentadas ou 5 000 em pé, a área será erguida embaixo de uma das arquibancadas do Estádio do Pacaembu. Serão 94 metros lineares de telões de LED.
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A empreitada é uma parceria da produtora e geradora de conteúdo gamer BBL, com sede em um galpão no Brás, com a Allegra Pacaembu, concessionária do complexo esportivo Paulo Machado de Carvalho. “O jogador de e-sports era um cara incompreendido, marginalizado e tido até como meio vagabundo. Mas não é isso. Olha o tamanho do Nobru e do Baiano. Essa geração precisava de uma casa. Será a maior arena de Battle Royale do mundo”, afirma Eduardo Barella, presidente da Allegra, referindo-se à modalidade em que até 100 jogadores atuam simultaneamente. Com investimento de 95 milhões de reais, a obra será entregue juntamente com todo o estádio, em 2024.
E não é só o Pacaembu que abriu espaço para os e-sports: “Queremos acolher com força total o universo dos games”, antecipa Claudio Macedo, CEO do Allianz Parque. Ainda em fase de planejamento, a arena fará parte do espaço de entretenimento Arena Allianz e deve receber, até 2022, salas para treinamentos e campeonatos de e-sports.
Outro espaço de destaque na cidade é a MAX Arena, na Mooca, de 2016: são 6 250 metros quadrados dedicados aos esportes eletrônicos, com áreas para competições e lan house gamer. Desde o início da pandemia, o proprietário, Vinícius Prado, investiu 3,2 milhões de reais em cinco novos estúdios voltados para a produção gamer, que são utilizados por empresas gigantes do setor, como a Ubisoft. A cidade gamer vai mudando de fase.
COMO FUNCIONA CADA JOGO
Counter-Strike: Global Offensive No modo clássico competitivo do jogo de tiro de computador, são duas equipes de cinco jogadores. De um lado, terroristas que armam uma bomba, e do outro, o time que precisa desarmar o dispositivo. Pode-se ganhar a partida também ao eliminar todos os adversários. Gratuito.
Free Fire Na modalidade mais tradicional do jogo de celular, até cinquenta jogadores são colocados em uma ilha. Cada um deve encontrar suprimentos espalhados pelo mapa, como armas e coletes à prova de balas, e precisa eliminar os demais: o último sobrevivente vence. Também é possível jogar em duplas e equipes de até quatro pessoas. Gratuito.
League of Legends São dois times de cinco jogadores em um mapa de batalha: o objetivo é destruir o Nexus (uma espécie de fortaleza) da equipe adversária. Cada lado tem à disposição um pequeno exército de soldadosrobôs, que atacam os oponentes. Disponível para celular e computador. Gratuito.
Valorant Durante 25 rodadas, duas equipes de cinco jogadores se enfrentam em uma arena. Quem vencer treze rodadas primeiro ganha. Outro objetivo do jogo de tiro, em que os personagens têm poderes especiais, é plantar ou desarmar uma bomba. Disponível para computador. Gratuito.
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Nobru vê o jogador da seleção brasileira como seu maior ídolo
Filho de pais separados e com três meios-irmãos, Bruno Goes, então com 10 anos, guardava carros na feira, no Jardim Novo Oriente, na região do Campo Limpo, enquanto sonhava em ser jogador de futebol. Chegou a fazer algumas peneiras, mas não conseguiu atingir o sonho. Sua segunda tentativa de “ser alguém na vida” também foi frustrada depois que passou na faculdade de análise de sistemas mas não conseguiu pagar a mensalidade de mais de 800 reais. “Meu pai estava desempregado e minha mãe tinha renda instável como vendedora. Fiquei sem rumo na vida”, diz Nobru, que morava com o pai, Jeferson, e visitava a mãe a cada quinze dias no Morumbi.
Foi na casa de quatro cômodos e dois andares, em que a avó também habitava, que ele fez as primeiras transmissões no YouTube, como hobby, para ver no que ia dar. O fundo azul era na verdade uma toalha velha, presa com pregadores e um prego. Sem celular, ele precisava pedir um aparelho emprestado, o que nem sempre ocorria. “Meu pai tinha de mandar currículo e minha avó ficava fofocando com as amigas pelo telefone”, brinca o menino, que é evangélico, não bebe nem fuma.
Primeiro amor, o Free Fire lhe abriu as portas para o inédito contrato com o YouTube, em 2017, que lhe rendeu 800 dólares, pouco mais de 3 000 reais. “A virada foi essa, quando ganhei meu primeiro salário. Era tudo muito duvidoso para mim. Como assim ganhar dinheiro no YouTube?” A fama lhe abriu uma segunda porta, dessa vez no seu time do coração. Campeão de Free Fire em 2019 pelo Corinthians, deixou recentemente a equipe para montar o próprio time, o Fluxo, que é um misto de gerenciamento de marca, da carreira pessoal e uma equipe profissional.
Enquanto lida com a fama e o dinheiro, Nobru se preocupa com a imagem, sua e do jogo em que atua. Visto como violento, o Free Fire é abolido por muitos pais. “Mas o gráfico do jogo não é muito bom. Por mais que tenha tiro e sangue, não tem realismo. É apenas diversão. Ninguém vai jogar e ficar doido da cabeça. Eu sempre posto nas redes meu estilo de vida saudável. Essa é a imagem que passo.”
Outra imagem que Nobru passa é a de admirador de Neymar. Não se importa de copiar o bordão “o pai” ao se referir a si, em terceira pessoa. Com 11,2 milhões de seguidores no Instagram e 30 milhões somando outras redes, o astro do Free Fire segue apenas 224 pessoas, entre elas o camisa 10 da seleção. “Sou muito fã, mas ele joga Counter Strike, e não Free Fire. Mas estou pensando em jogar para ver se me aproximo dele. Nunca falei com ele. Por mais que eu seja famoso, não usufruo desse reconhecimento. Fico receoso em mandar mensagem. Quem sabe um dia.”
Colaborou Humberto Abdo
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Publicado em VEJA São Paulo de 21 de julho de 2021, edição nº 2747