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Mostradores que têm muito a mostrar

Feita com minúcia e precisão milimétrica, a pintura de esmalte volta à cena e transforma o visor de relógios em obras de arte

Por Rosane Queiroz
Atualizado em 5 dez 2016, 16h06 - Publicado em 20 abr 2013, 01h00

Com esmeraldas, safiras, diamantes e rubis incrustados em caixas de ouro, minutos, segundos e funções complicadas adquirem poder ofuscante. Desde a última década, no entanto, os mostradores da alta joalheria vêm fazendo um convite a um olhar com menos quilates para a passagem das horas, transformando a experiência de contar o tempo em algo extraordinário. Graças à esmaltação, o que está por baixo dos ponteiros deixa de ser uma tela em branco para revelar a réplica de um óleo do século XVII do pintor holandês Johannes Vermeer ou a paisagem de Paris numa miniatura detalhada e colorida. Com o esmalte, relógios ganham o status de objeto de arte.

O fascínio pela pintura esmaltada vem de longe. Criada na Grécia antiga, no século XVIII encontrou seu auge na relojoaria suíça — na qual permanece uma especialidade —, com desenhos complexos, em exibição permanente no museu da Patek Philippe, em Genebra. Com o tempo, como se deu com outros ofícios artesanais, a esmaltação passou a ser considerada kitsch. Até que, com o interesse por tudo o que é fora de série, renasceu.

“Assim como a tinta, o esmalte dá forma e cor à imaginação do artista”, diz Franck Juhel, diretor da Jaeger-LeCoultre na América Latina. “Dependendo de quem maneja os pincéis, o resultado pode ser tradicional ou moderno e tão diverso quanto o estilo de um artista renascentista e de um abstracionista.” No ateliê dessa manufatura em Vallée deJoux, a uma hora de Genebra, ao norte, essa arte ocupa lugar de honra. Especialmente na coleção Reverso, com reproduções de pinturas como Vênus do Espelho, obra de 1647 do espanhol Diego Velázquez, conservada na National Gallery, em Londres, e do expoente do art nouveau francês Alphonse Mucha. Tal gênero de pintura, segundo Frank Juhel, oferece a possibilidade de criar objetos sempar, forjar um monograma ou selar uma data com uma imagem memorável. O fundo do Reverso que reproduz Moça com Brinco de Pérola, conhecida como a “Monalisa holandesa” e exposta no museu Mauritshuis, em Haia, por exemplo, foi encomendado pelo curador de uma exposição no Japão de Vermeer, autor da tela em 1665. Dos cerca de 130 esmaltados lançados por ano pela Jaeger-LeCoultre, trinta reproduzem um quadro em miniatura. As criações sob encomenda têm espera de pelo menosum ano. Edições recentes exibem paisagens, retratos, aves e flores inspirados na estampa de sedas chinesas. A técnica de execução é o guilloché, gravação de um desenho repetido em ouro sob esmalte translúcido, que permite cobertura total ou transparente, de modo que o sistema do relógio fique à mostra.

+ Em vídeo, a esmaltação de um relógio Jaeger-LeCoultre

Cada segundo é precioso nessa arte. A produção de um único visor requer várias operações de gravação. Desenhos mais complexos exigem até 150 horas de trabalho. O processo começa com vidro, moído num almofariz de ágata, lavado e armazenado em água destilada. Aquecido em altas temperaturas, esse pó vira um líquido pastoso. A paleta de tons deriva do vidro colorido ou resulta da combinação de óxidos de metal com esmalte transparente, fruto do pó vítreo incolor. Cada movimento do artista é milimetricamente calculado, sem margem de erro. O pincel usado chega a ter apenas um fio na ponta. Para fixar cada revestimento, a base do relógio é aquecida a temperaturas entre 800 e 850 graus, com o tempo contado: de quarenta a sessenta segundos. Um trabalho assim chega a custar 1 milhão de reais (sem impostos) — cifra equivalente ao valor de um top de linha Chanel, cuja atração são rubis moçambicanos, que sai por 942 000 reais.

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“A alquimia entre o esmalte e o fogo é o que permite ao artesão revelar cores surpreendentes”, explica Charlotte Bordes, diretora de relojoaria da Cartier. A esmaltação é parte do patrimônio da grife francesa, que tem animais como tema recorrente. Um urso panda, um jaguar e joaninhas ilustram as novidades. Os Cartier são feitos em cloisonné (do francês cloison, divisão), estilo em que tiras finíssimas de metal são coladas na base do mostrador e formam o desenho a ser preenchido pelo esmalte — caso do contorno de ouro amarelo do leopardo, preenchido pelo preto, no modelo Jaguar. Há também as técnicas champlevé (esmalte embutido em fendas esculpidas no metal) e plique-à-jour (esmalte translúcido). A tendência atual é o paillonné, escamas cortadas em folha de ouro ou prata, em forma de flores, libélulas e arabescos, sob o revestimento translúcido. É a técnica eleita pela Vacheron Constantin para os três modelos masculinos da coleção Escher (de 1755, a mais antiga joalheria do mundo em funcionamento ininterrupto já esmaltou Marc Chagall em outra série).

Os desenhos intrincados de Colombe, Poisson e Coquillage são inspirados na obra do artista holandês Maurits Cornelis Escher (1898-1972) e limitados a vinte peças numeradas (veja de perto na abertura desta reportagem). Um contraste em relação à grisaille, até então em evidência, que privilegia a monocromia em tons de cinza ou marrom. A Piaget, por exemplo, utiliza esse recurso no feminino Phoenix, de uma coleção de vinte modelos inspirados na cultura chinesa. O exemplar traz o pássaro mítico em vinte tons de cinza, obra de Anita Porchet, uma das esmaltadoras mais cultuadas da Suíça. Na Patek Philippe, há relógios de bolso. É o caso do Matryoshka, pintado com 20 cores. As criações em cloisonné se resumem a quatro por ano. Os temas são variados: sob os ponteiros do mais recente Calatrava, galopa um cavalo.

Flores, aves tropicais e borboletas são recorrentes na DeLaneau. Em uma década, a grife suíça de relógios femininos fundada há 64 anos em Biel, a duas horas de Genebra, fez da esmaltação sua marca registrada. “Há um renascimento desse artesanato”, afirma Estelle Tonelli, diretora de comunicação da marca. Para realizá-lo, a DeLaneau mantém três artesãs, que Estelle define como “senhoras encantadoras”. E precisas. Elas executam uma técnica de 300 anos, a fondant de finition, sem pestanejar. Um erro na aplicação dessa camada protetora final de esmalte pode pôr o trabalho todo a perder (o acerto permite que o relógio sobreviva sem craquelar por séculos, garante o fabricante). “Hoje os projetos buscam incansavelmente a singularidade, mas sempre dentro da magia e poesia da esmaltação.” Se o tema é poesia, talvez nada supere a francesa Van Cleef & Arpels. Os relógios da linha Poetic Wish exibem cenas de Paris e um mecanismo de alta complicação, em que figuras em movimento sinalizam horas e minutos. São dois modelos: um masculino, com céu noturno azul sobre fundo de madrepérola; e outro feminino, com uma cena diurna. No Lady Arpels Poetic Wish, uma moça caminha até o centro do mostrador. Em seguida, uma nuvem se move em direção a ela. Quando as duas se encontram, os sinos da Catedral de Notre-Dame soam: é a hora cheia. Uma estrela cadente, por fim, sinaliza os minutos e sugere um desejo. O relógio silencia e a magia do tempo se mostra na paisagem em miniatura.

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