Usei um trecho do Machado de Assis cronista em uma das minhas crônicas recentes e logo me perguntaram como é que consegui encontrar exatamente aquela passagem para fechar “com chave de ouro” o tema das lendas que tomam o lugar dos fatos por se terem tornado mais interessantes do que eles. O trecho falava, se se lembram, do grito que não houve às margens plácidas do Ipiranga.
Caros, caríssimos leitores, o cronista é um fingidor. Ou antes: um prestidigitador. O que lhes foi servido como fim foi justamente o ponto de partida. Eu havia lido essa tirada do Machado, dizendo que preferia a lenda aos fatos da Independência, aí me lembrei de uma fala sobre lenda e fato em um faroeste clássico, e pensei: isso dá samba, no meu caso, crônica.
A data fortuita para publicá-la seria o 7 de Setembro. Enfileirei no começo algumas lendas que se sobrepuseram à história original, como os três reis magos, o capacete de chifres dos vikings, o cemitério de elefantes, Nero e o incêndio de Roma, o desenho do camundongo Mickey etc., e pronto. O fecho, Machado já me havia dado.
É invariável que perguntem, em festas literárias e palestras, quem é o melhor cronista brasileiro, na minha opinião. É tempo de campeões. Tempo de vencedores, de melhor isso ou melhor aquilo, de campeões em velocidade, em fogões, em reality shows, em dança de famosos, em canto pop, em ringues e octógonos, em pistas, em esportes, em vendas, em fortunas — natural que se procurem campeões da crônica.
Evito falar dos vivos e dos muito vivos. O meu é um critério literário, esgueiro-me dos meros contadores de casos, sem arte, e dos donos da verdade. Entre os recentes, cito Rubem Braga, três mineiros (Carlos Drummond de Andrade, Fernando Sabino e Paulo Mendes Campos), Nelson Rodrigues, mais para trás, João do Rio e, campeão, Machado de Assis. Com ele, saboreio a mestria no trato com a língua, visito uma cidade do século XIX, o Rio, apanhada por um mestre do olhar. Acostumados a um Machado mais rigoroso no romance e na poesia, vemos, na crônica, que ele frequentemente solta o verbo.
Quantas expressões do povo nessa prosa, ainda frescas, correntes, troco miúdo das ruas: “Fiquei meio jururu”, ele diz em 1889; “trocar as bolas”, no sentido de tomar uma coisa pela outra, nesse mesmo ano; um “rôlo”, em 1876, “que acabou por deixar dezenove homens fora de combate”; o preço dos ingressos para a ópera o escandaliza, em 1876: “Camarotes a 200 paus!”; deplora o câmbio, que “anda já tão safado”, em 1894; glosa a moda de perguntar “O que há de novo?”, em 1883, e comenta “o quilo bem pesado”, nosso conhecido nas feiras até hoje; queixa-se de “um sol de rachar”, em 1894; reclama da lentidão do bonde a esperar por um passageiro que aponta numa esquina, e adiante se repete “a mesma lengalenga”, em 1877; funcionários toscos da administração são “pés-de-boi”, em 1878, e o almofadinha tem “um ar pelintra”.
Nenhuma dessas gírias soa tão nervosamente divertida quanto esta, de 15 de abril de 1877, no excitado comentário sobre uma fortuna de 50 contos em letras de câmbio que o próprio dono queimou, um homem de boa posição, de bom nome e de crédito, acusado de tê-las falsificado. Somem as provas, desaparece o crime. Comenta Machado: “É de fazer tremer a passarinha”.
Que ele quis dizer com isso? É o que estou pensando? Sim, leem-se com gosto essas crônicas de um homem de gênio que morreu há 107 anos.