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Melhor a lenda

Por Ivan Angelo
Atualizado em 5 dez 2016, 12h06 - Publicado em 5 set 2015, 00h00

Diz a lenda de Natal que três reis magos do Oriente foram visitar o recém-nascido Jesus em Belém. O Evangelho de Mateus, o único que menciona os visitantes, não diz que eram três nem que eram reis, diz apenas que “vieram uns magos do Oriente a Jerusalém”, seguindo uma estrela, com a intenção de adorar o menino. Variando conforme a tradução da Bíblia, eram magos, ou sábios, ou videntes, ou estudiosos das estrelas, mas não reis. Com o tempo, ganharam um número, nomes, origens, reinados, significados e tradição. É um dos casos em que a fantasia enriquece uma história e toma o lugar dela.

Quem não ouviu contar que Nero mandou incendiar Roma e, do seu terraço, contemplava o fogo enquanto tocava cítara e declamava seus poemas? O historiador romano Suetônio registra essa versão setenta anos após a morte do personagem. A cena combina com o imperador sanguinário, mas não teve confirmação como fato histórico.É mais interessante continuar acreditando que os vikings usavam aqueles capacetes de chifres, fantasia criada em ilustrações do século XIX, que os tornavam mais assustadores, do que substituir a imagem por outra mais real, depois que escavações nos túmulos mostraram que não havia um só capacete de chifres entre os despojos dos guerreiros nórdicos.

E por aí vai. A realidade é que o pintor Van Gogh decepou apenas o lóbulo da orelha, não a concha inteira; elefantes não têm cemitério; não eram três as caravelas de Colombo quando veio para estes lados, pois a Santa Maria era uma nau, maior e mais larga; Walt Disney não desenhou o camundongo Mickey; etc., etc.

Quando a lenda é mais interessante do que o fato original, ela triunfa na imaginação popular e muitas vezes na história escrita. Ficou famosa entre os cinéfilos uma frase de um jornalista na cena final do filme de John Ford O Homem que Matou o Facínora, de 1962. Resumindo, curto. Um advogado citadino, que nem sabia atirar, fica famoso por ter matado em duelo um perigoso bandido do oeste, e se elege senador. Muito tempo depois, no funeral do verdadeiro matador do bandido, que era o mocinho e eliminou o facínora atirando escondido nas sombras, o senador conta a verdadeira história ao jornalista e este se recusa a publicá-la, dizendo: “Isto é o oeste, senhor.

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Quando a lenda vira verdade, ficamos com a lenda” (This is the West, sir. When the legend becomes fact, print the legend).Essa frase tem um precedente histórico em Machado de Assis. Na crônica do dia 15 de setembro de 1876, ele abre um tópico com uma contestação da história oficial do grito da independência, em 7 de setembro de 1822: “Grito do Ipiranga? Isso era bom antes de um nobre amigo, que veio reclamar pela Gazeta de Notícias contra essa lenda de meio século. Segundo o ilustrado paulista não houve nem grito nem Ipiranga. (…) Durante cinquenta e quatro anos temos vindo a repetir uma coisa que o dito meu amigo declara não ter existido. Houve resolução do Príncipe D. Pedro, independência e o mais; mas não foi positivamente um grito, nem ele se deu nas margens do célebre ribeiro”.

Machado argumenta que seria fácil mudar a história em futuras edições dos livros, mas ficaria difícil refazer tantos versos escritos. O Hino Nacional já contava então 47 anos e dizia que o grito retumbante fora ouvido pelas margens plácidas do Ipiranga. Conclui o Machado: “Minha opinião é que a lenda é melhor do que a história autêntica. (…) Eu prefiro o grito do Ipiranga: é mais sumário, mais bonito e mais genérico”.

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