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A boa vida

Rica na agenda cultural e esportiva e com restaurantes e lojas dignos da capital francesa, Deauville revive o clima que fez da praia o refúgio da alta sociedade há um século

Por Simone Esmanhotto, de Deauville
Atualizado em 5 dez 2016, 16h06 - Publicado em 20 abr 2013, 17h21

Presidente da Saint Laurent, o belga radicado na Califórnia Paul Deneve sincronizou sua entrada no Instagram com o início da temporada 2013 de esqui nos Alpes. Na sequência, clicou os dois filhos patinando no gelo no parisiense Plaza Athénée. Depois, compartilhou a fila de consumidores encapotados à espera da abertura das portas da loja com a primeira coleção do novo estilista da marca, Hedi Slimane, em Osaka, no Japão. Por fim, num “insta” recente, aparece com os meninos na Praia de Deauville. Era de esperar que o executivo embarcasse rumo ao sol depois de um giro abaixo de zero. Ledo engano. Em meados de março, o sol no balneário que fica a nordeste de Paris, a duas horas de trem, brilhava por quatro horas. Sensação térmica? Dois graus centígrados negativos. Temperatura do mar cinza? Zero. Deneve aparece sobre a areia que se estende por 2 quilômetros metido num casaco três-quartos. Os meninos vestem doudounes, as jaquetas de náilon acolchoadas com penas e com capuz de pele. É difícil entender a cena, principalmente quando — caso nosso — se mora num país com 2 000 praias ao longo de pouco mais de 8 000 quilômetros de mar quente e esmeralda. Mas a presença de Deneve indica que Deauville tem muito mais a oferecer do que sol e mar a quem quer espairecer. Indica também que o balneário volta à rota de lazer de visitantes do naipe do café society que circulou aqui entre os anos 1890 e 1960 — do escritor francês Gustave Flaubert aos barões de Rothschild, passando pelo pintor holandês Keesvan Dongen, até Yves Saint Laurent, que financiou o restauro da Igreja de Santo Agostinho, do século XII, perto da sua antiga casa de verão.

O segredo da virada, depois de quatro décadas de desprestígio, foi fazer as pazes com a proposta de ser uma espécie de “Parisinha”, com as mordomias da capital, as alegrias da vida ao ar livre e a vantagem de contar com 4 000 habitantes infinitamente mais prestativos e bem-humorados. Foi em busca do balneário ideal que o meio-irmão de Napoleão III, o Duque de Morny, pensou em Deauville. Numa viagem pela Côte Fleurie (costa florida, em francês), os 40 quilômetros de extensão na Baixa Normandia, encantou-se com uma fatia de litoral vista a partir das montanhas de Mont-Canisy. Enxergou ali a possibilidade de juntar o mar com o estilo de vida da corte francesa e os hipódromos. Morny era um grande criador de cavalos. Para melhorar a genética dos animais, importou da Inglaterra um dos maiores campeões de turfe, o puro-sangue inglês West Australian, que, em dois anos de carreira, venceu nove entre dez provas. O empenho ajudou a região a se tornar referência na criação e venda de cavalos e nos esportes equestres. Há nada menos que 75 haras de puro-sangue e árabe no perímetro urbano, inclusive o que pertence à família Wertheimer, dona da Chanel. Os hipódromos seguem no centro da vida local. Dos 360 hectares da cidade, 115 são ocupados pelo Clairefontaine e pelo La Touques, de cujas arquibancadas a Maharani de Baroda, a maior cliente da joalheria Van Cleef & Arpels, e Yul Brynner, Oscar de melhor ator por O Rei e Eu, assistiram a corridas na década de 60. Brynner adotou a região e fotografou inúmeras cenas, expostas na orla à época da visita de VEJA LUXO, parte do festival de fotografia que convida grandes nomes e outros, promissores, a mergulhar no balneário como tema — vêm daqui as imagens desta reportagem.

Deauville foi erguida entre 1860 e 1864 — com as mansões de tetos múltiplos, fachadas de tijolo e ripas de madeira e a linha de trem que encurtou a distância de Paris para cinco horas de viagem. A proximidade bastou para que a alta sociedade parisiense decidisse levar a boa vida também por lá. Entre a belle époque e a década de 60, nem Biarritz, hoje a sete horas de trem ao sul da capital francesa, na Côte d’Azur, rivalizou com o destino. O auge da festa se deu entre as duas primeiras décadas do século passado. Datam de 1912 e 1913 os hotéis Normandy e Royal, onde funciona o restaurante L’Etrier, chefiado por Eric Provost, discípulo de Alain Ducasse. Ambos ficam de frente para o mar, ainda sob o comando dos descendentes de Lucien Barrière, donos ainda do cultuado Fouquetís, na Champs-Elysées. Nada, no entanto, diz tanto sobre a importância do balneário nessa época quanto a abertura da primeira loja de roupas de Gabrielle Chanel, financiada pelo amante inglês Arthur Capel, em 1912, ano da chegada da loja de departamentos Printemps. Na Rua Gontaut-Biron, a poucos passos do Normandy, Chanel passou a vestir a baronesa de Rothschild e amigas com peças mais simples e esportivas (a loja de Biarritz foi aberta três anos depois). À noite, a trupe se cruzava nas festas dos barões, que veraneavam na antiga casa do escritor Gustave Flaubert, a qual hoje, conhecida como Villa Strassburger, pode ser alugada para recepções. Em Deauville, Chanel se apropriou das camisetas listradas dos marinheiros para usá-las com pantalonas e alpargatas — e as chamadas marinières estão entre as atrações da lojinha mantida pela prefeitura no centro de turismo. A exemplo de inúmeros filmes rodados no balneário (entre eles, Mais uma Vez, Adeus, com Ingrid Bergman, e Um Homem, uma Mulher, com Anouk Aimée), Audrey Tautou vive Coco em Coco Antes de Chanel, no mesmo lugar onde a estilista se aprumou antes de abrir o número 31 da Rua Cambon, em 1918.

Saber se vestir virou uma obsessão depois de a prefeitura inaugurar, em 1923, Les Planches, uma espécie de deque à beira-mar. Perto dos grandes hotéis, placas ainda indicam que andar sem camisa, para homens, do asfalto para o centro da cidade, é proibido. Só é permitido nos 300 metros entre mar e areia e nas mesmas Planches onde, nos anos 20, os irmãos Seeberger, considerados os primeiros fotógrafos de moda de rua, registraram as roupas assinadas por Jacques Doucet, Jeanne Lanvin e Chanel, é claro, entre os principais costureiros da época. Com 623 metros de extensão de azobé, uma madeira do Madagáscar restaurada anualmente, o deque ainda serve de passarela e cartão-postal, junto com os guarda-sóis coloridos disponíveis para aluguel. De frente para a praia, ficam as 400 (impecáveis) cabines de banho (20 euros), um spa, um ginásio com piscina olímpica, uma pista de atletismo e outra de skate. A estrutura esportiva é tão variada e bem conservada que equipes se hospedam ali para treinar antes das competições (os equipamentos estão abertos para qualquer morador). Quem tem espírito individualista pode agendar um instrutor de ioga para praticar na areia ao pôr do sol, por exemplo. Ou, em férias com os filhos pequenos, programar aulas de equitação em pôneis. A ideia nessa cidade microscópica é jamais dizer não a qualquer pedido (decoroso) de um visitante, de forma que ele se sinta na mais cosmopolita das metrópoles (bistrô francocoreano? Tem, o L’Essentiel). “Viver do turismo nos ensinou que o real sentido do luxo é realizar as vontades de quem nos visita”, diz Sandrine Apreval, atendente na Martine Lambert. De 1975, a sorveteria local é deauvillaise até na receita: os 25 sabores têm como ingrediente básico o creme de leite das vacas normandas — o mais típico é o quiberon, doce de leite com manteiga salgada (conhecido como caramelau beurre salé). A manteiga, um dos produtos de terroir da Normandia, tem denominação de origem controlada. Idem para os queijos como o livarot e o pont-l’évêque, também de vaca. Aos domingos, os comerciantes perfumam o mercado público nas banquinhas bem organizadas em que são colocadas à vista as bebidas feitas com maçã, da sidra ao calvados, uma aguardente com até quarenta variedades do fruto normando. O calvados é a base do bentley drink, criado nos anos 20. Garrafas do produtor Christian Drouin foram oferecidas aos chefes de estado que ocuparam Deauville, preterindo Nice, na costa mediterrânea, para o encontro do G-8 em 2011 (uma dose de 50 mililitros de Drouin safra 1977 custa 221 reais no bar do hotel Fasano).

“Vendemos o pas de souci (em francês, ‘sem problema’)”, diz o prefeito Philippe Augier, 63anos. Alto, de olhos claros e sorridente, ele se empenha agora em tornar Deauville atraente para quem quer trabalhar a distância levando um vidão — sua meta é que até o fim deste ano a cidade inteira tenha fibra ótica, com internet de qualidade. Augier abandonou a carreira de CEO para, há onze anos, virar prefeito. Administra um orçamento de 40 milhões de euros. Boa parte desse montante vem das taxas do cassino dos Barrière no Royal. Uma parcela cada vez mais significativa provém da agenda cultural costurada com a história da cidade. Depois do festival de cinema, agora é a vez do jazz. “A programação permanente é a base da nossa economia.” Presidente do France Evénements, comitê que define a política do governo federal para eventos globais, Augier foi enviado pelo ex-presidente Nicolas Sarkozy à Inglaterra para descobrir por que os Jogos Olímpicos foram realizados do lado de lá, e não do lado de cá do Canal da Mancha. Estava prestes a explicar o motivo quando um aplicativo do seu iPhone indicou o gol do seu time do coração, Guingamp, contra o Auxerre. Ia retomar o discurso e o app apitou o segundo gol. Augier não pôde assistir ao jogo no campo dessa vez, mas pas de souci. Com o vidão de Deauville e dois gols em menos de um minuto, não há do que reclamar.

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