“Não vou demolir”, diz dono do ‘caveirão’, prédio abandonado há 60 anos
Apesar de decisão judicial determinando a derrubada do edifício, na Sé, proprietário insiste em projeto de reforma do local
Iniciada em 26 de fevereiro de 1964, a construção de um edifício-garagem com mais de 2 000 vagas espalhadas em seus 24 pavimentos, localizado no número 93 da Rua do Carmo, próximo à Catedral da Sé, deveria ter sido concluída no ano seguinte.
Passadas seis décadas, o “esqueleto”, que acompanhou de perto e do alto a pujança e o declínio imobiliário da região, está no meio de uma batalha jurídica iniciada em 2018.
Nesse mesmo ano, a cerca de 1 quilômetro dali, a cidade testemunhou a tragédia do incêndio e desabamento do também abandonado Edifício Wilton Paes de Almeida, no Largo do Paissandu, que culminou com a morte de sete pessoas e deixou desabrigadas dezenas de famílias que nele viviam de forma improvisada.
Sob a alegação de que as ruínas do “caveirão”, como é conhecido o prédio na Sé, poderiam ter o mesmo fim, a prefeitura vem tentando na Justiça a sua demolição.
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Entre decisões de primeira instância favoráveis à municipalidade e recursos e tentativas de reversão por parte do proprietário, o velho prédio inacabado continua abandonado, com risco de desabar, além de ser submetido a sucessivas invasões e servir de abrigo para traficantes.
Em 31 de maio passado, uma nova decisão judicial, desta vez na segunda instância, determinou o prazo de trinta dias para a derrubada do imóvel, sob pena de multa diária de 500 reais, com o limite de 50 000 reais.
Desde então, o proprietário, o empresário Rivaldo Sant’anna, após perder o prazo para ingressar com um recurso, não se pronunciou mais no processo, mas as cobranças das multas diárias ainda não foram concretizadas.
“Não vou demolir, pois não posso gastar 2 milhões de reais para derrubar o prédio (valor estimado por ele) e depois ainda ter que pagar mais de 10 milhões de reais em multas que a prefeitura continua me enviando”, afirma Sant’anna, conhecido no pedaço como Ricco, sobre encargos pela má conservação do prédio e consequente risco à população.
“Sei que estou descumprindo a determinação da Justiça, mas estou tentando, em vão, a anulação das multas. Se anularem, começo a demolição imediatamente”, afirma Ricco, que não fez nenhum pedido formal à gestão municipal para o cancelamento dos débitos.
Além da dívida com autuações municipais, há ainda um montante de cerca de 2 milhões de reais referentes a cotas de IPTU em atraso.
Na última terça-feira (6), Vejinha esteve novamente no prédio com Ricco. A primeira vez havia sido em 2020. Assim como há quatro anos, logo na entrada, a parede de con-certo foi derrubada para servir de acesso ao térreo. Ali, entre toneladas de lixo e escombros, há ampolas de cocaína, marcas de fogo e muitos móveis jogados pelos cantos.
Nos andares de cima, cujo único acesso se dá por meio de escadas móveis de madeira, o cenário se repete: lixo, entulho e sinais de consumo de entorpecentes.
Nos seis primeiros pavimentos do edifício há indícios da presença recente de invasores, que podem estar fazendo uso pontual ou contínuo das instalações. “Vou mandar fechar a entrada novamente hoje, mas se você voltar amanhã, estará tudo derrubado de novo. Assim tem sido desde que comprei o prédio”, diz Ricco.
A ideia original do empresário, que adquiriu o prédio em 2012 por cerca de 2 milhões de reais, era construir oito andares de garagem e transformar os demais dezesseis pavimentos em salas comerciais. Sem conseguir da prefeitura o alvará para a obra — que poderia comprometer toda a estrutura — a empreitada não foi adiante.
“Agora eu poderia manter a ideia do estacionamento e construir moradias populares no restante”, diz, ignorando laudos que atestam a inviabilidade de futuras reformas.
“A estrutura vem sofrendo deterioração com o tempo, podendo vir a ruir, tendo em vista que o concreto armado já apresenta sua armadura exposta e sem condições de reparação, podendo assim vir a entrar em colapso, causando grave acidente na região”, diz um dos diversos pareceres emitidos pela prefeitura nos últimos anos.
Ao mesmo tempo que insiste em descumprir a decisão judicial e tentar, sem sucesso, desfazer o imbróglio que envolve o próprio prédio, Rivaldo Sant’anna afirma atuar na regularização de imóveis embargados pela prefeitura cidade afora.
“O meu trabalho é esse. Recentemente, fui contratado para tentar liberar um icônico edifício embargado há duas décadas nas imediações do Aeroporto de Congonhas. Vou conseguir, você vai ver”, acredita. Enquanto isso, seu caveirão segue se deteriorando na paisagem.
Publicado em VEJA São Paulo de 9 de agosto de 2024, edição n ° 2905