Abandonado e sob risco de ruir, Quartel Tabatinguera pode virar habitação
Envolto em mistérios, como o que fala da existência de um túnel, prédio entrou no radar da PPP de requalificação do centro
Construído em 1842 às margens do Rio Tamanduateí, no Parque Dom Pedro II, o histórico Quartel Tabatinguera é hoje um amontoado de ruínas cercadas de entulhos e lixo por todos os lados.
Uma das poucas edificações não religiosas do século XIX ainda existentes na metrópole, o imóvel já abrigou, ao longo de quase dois séculos, uma chácara, um convento, seminário, manicômio (Hospício dos Alienados, fechado em 1903) e, mais recentemente, diversos grupamentos das Forças Armadas.
Em 1992, o local, que na ocasião servia como sede do 2° Batalhão de Guardas do Exército, foi transferido ao governo do estado. No início, o terreno, de 13 413 metros quadrados (dos quais, 8 482 são de área construída), abrigou unidades da Polícia Militar, mas há mais de vinte anos os barulhos de sirenes e soldados foram trocados por um silêncio que só é interrompido quando parte da edificação desaba.
O nível de deterioração do Tabatinguera é tão grande que uma parcela dos edifícios só não foi ao chão porque o entulho formado pelo furto gradativo das estruturas, como tijolos e madeiras dos pisos superiores, além de janelas e portas, lhe serve de sustento.
A constatação foi feita por uma empresa contratada por determinação da Justiça para elaborar um laudo sobre as condições dos prédios e posteriormente criar um projeto de escoramento das paredes. “Parte dos elementos colapsados ainda está exercendo alguma função de travamento acidental, sinalizando que as remoções dessas peças devem ser feitas de forma cautelosa e gradativa, evitando possíveis desabamentos em cascata”, diz trecho do documento emitido pela empresa CAT Engenharia Consultiva, em meados do ano passado, e obtido com exclusividade por VEJA SÃO PAULO.
Ou seja, sem conseguir retirar o entulho para calçar as estruturas, a empresa alega não ter condições de realizar a segunda parte do trabalho para a qual foi contratada. “Não existe nenhuma possibilidade de recuperação da estrutura (…) Recomenda-se a total remoção dos elementos, de forma cautelosa, sem uso de equipamentos pesados, evitando assim acidentes”, continua o parecer.
O trabalho realizado pela empresa de engenharia ocorreu após a Associação Preserva São Paulo acionar a Justiça, em 2010, para que o estado fosse obrigado a assegurar a estabilidade do prédio e promover o restauro do local.
Seis anos depois, o Supremo Tribunal Federal (STF) deu a palavra final, em veredicto favorável à associação, mas a decisão nunca foi acatada. Uma segunda ação, determinando o cumprimento da decisão transitada em julgado, foi protocolada em 2020, mas até o momento não houve nova sentença. “Nunca imaginei que nossa empreitada fosse tão penosa. O pior é que sucessivos governos não deram atenção e o laudo foi claro ao dizer que há risco de desabamento. Já imaginou se o prédio cai em cima de pedestres ou de carros?”, questiona o advogado Jorge Eduardo Rubies, presidente da Preserva São Paulo.
Sem obter êxito em duas empreitadas judiciais, Rubies lançou mão de outra ação, desta vez diretamente no STF, solicitando uma inusual intervenção federal no governo paulista, para que o prédio fosse enfim reformado. “Nosso pedido não foi por uma intervenção ampla, mas apenas em relação ao quartel”, diz.
Na última semana, o ministro Luís Roberto Barroso, presidente do Supremo, declinou do pedido, alegando que a ação deve ser direcionada à Justiça estadual de primeiro grau.
Independentemente do pedido de intervenção, o governador Tarcísio de Freitas anunciou, na sexta-feira 26, a reforma do quartel no âmbito da Parceria Público Privada (PPP) para a requalificação do Centro, cujo carro-chefe será a construção ou reforma de 382 000 moradias.
O plano geral engloba os bairros de Sé, República e Santa Cecília e prevê o investimento de 3,9 bilhões de reais em seis anos.
No caso específico do terreno do Quartel Tabatinguera, que é tombado pelos órgãos estadual e municipal de proteção ao patrimônio, a ideia é disponibilizar parte da gleba para a construção de prédios de apartamentos para famílias de baixa e média rendas.
Nesse caso, tanto Condephaat (estado) quanto Conpresp (municipal) precisam autorizar as intervenções, sem a necessidade de ser aberto um processo de destombamento, o que seria mais longo. A ideia de alterar parte do uso do terreno do quartel, além de possibilitar uma nova finalidade para o local, traria uma redução no custoso trabalho de restauro integral das edificações, orçado em 100 milhões de reais.
A dúvida é sobre o tempo estimado para os trâmites, pois os interessados no projeto (assim como por toda a PPP do Centro) ainda precisam se manifestar.
Apesar da possibilidade de uma resolução definitiva para as décadas de abandono, quem viveu por anos no espaço lamenta o grau de destruição. “Servi ali entre 1990 e 1991 como soldado da Terceira Companhia. Me lembro bem do paiol de armas que ficava nos fundos do terreno. Dá muita tristeza saber que nada daquilo existe mais”, conta o corretor de imóveis Clóves Roque Xavier, 52, uma das 22 000 pessoas que serviram no quartel ao longo das décadas.
Depois que deu baixa na carteira militar, Xavier ajudou a criar uma associação de reservistas e promoveu diversos desfiles no local. O último deles ocorreu em 2018 e contou com carros antigos, banda de músicos e batedores da Guarda Civil Metropolitana.
Enquanto o futuro do icônico quartel ainda é uma incógnita, seu passado abriga algumas histórias carentes de comprovação, mas que foram incorporadas aos contos do local. A primeira delas diz que o terreno, que abrigava uma chácara no período colonial, teria sido um presente de dom Pedro I para Domitila de Castro Canto e Mello, a Marquesa de Santos, sua amante.
A segunda versa sobre a existência de um túnel ligando o quartel à Catedral da Sé e construído após o golpe militar de 1964. “Nós não tínhamos acesso a ele, mas todo mundo sabia onde ficava. O túnel era utilizado apenas pelo serviço secreto e foi seccionado com a construção da estação de metrô da Sé nos anos 1970”, afirma o ex-soldado Clóves Xavier.
Não há nenhuma referência histórica sobre a passagem e a última possibilidade de comprovar sua existência está soterrada por toneladas de entulhos e escombros.
Publicado em VEJA São Paulo de 03 de maio de 2024, edição nº 2891