As memórias de Marcelo Rubens Paiva e família no filme ‘Ainda Estou Aqui’
Livro homônimo do escritor, de 2015, inspira novo longa de Walter Salles, que disputa indicação ao Oscar
Há uma certa comoção em paulistanos — e brasileiros — ao se referirem a Marcelo Rubens Paiva. O relato do escritor, jornalista, músico e dramaturgo de 65 anos nos livros autobiográficos Feliz Ano Velho (1982) e Ainda Estou Aqui (2015) ressoa até hoje.
Desde setembro, a celebração em torno do querido personagem paulistano ficou ainda maior, quando o novo filme de Walter Salles, inspirado na obra de 2015, ganhou o prêmio de melhor roteiro no Festival de Veneza.
O reconhecimento, primeiro de muitos, como a indicação da Academia Brasileira de Cinema para a corrida ao Oscar de melhor filme internacional, despertou a torcida pelo cinema brasileiro e os ânimos pela estreia. A espera acaba na quinta-feira (7), quando o Brasil poderá prestigiar a trajetória de força e superação em uma obra-prima da sétima arte.
A ideia para o longa, produzido por Maria Carlota Bruno e Rodrigo Teixeira, surgiu em 2016, logo após a publicação. “Quando o Waltinho me procurou, eu nem questionei”, conta Marcelo. “Primeiro, porque conheço o talento dele, sou fã de praticamente todos os filmes. Segundo, porque ele conheceu a minha família e conviveu naquela casa.”
O cineasta Walter Salles afirma que o livro “luminoso” marcou-o “profundamente”. “Ele escreveu ao ver sua mãe começando a perder a memória, ao mesmo tempo que o país começava a tentar resgatar a sua.”
Entre tantas recordações, Marcelo remonta a episódios como a interdição da mãe, Eunice, em decorrência do Alzheimer, o recebimento do atestado de óbito do pai, Rubens, no Fórum João Mendes, como seus pais se conheceram e a rotina em família na casa em frente à Praia do Leblon.
Mais além de registrar lembranças, a escrita transformou a visão do autor sobre a própria história. “Eu me considerava filho de um herói. Mas percebi que era filho de uma heroína. Meu pai ajudou pessoas perseguidas, mas quem viveu a ditadura inteiramente foi a minha mãe. Perceber isso me deu o empurrão para escrever.” Eunice Paiva participou da luta pela anistia, pelas Diretas Já e pela redemocratização.
O entendimento sobre essa “heroína silenciosa” é também o foco do filme. O longa é centrado no período do desaparecimento e assassinato de Rubens (interpretado por Selton Mello). Com a prisão do marido, Eunice (Fernanda Torres) decide começar a estudar direito e vira um símbolo da luta contra o regime militar, enquanto cuida dos cinco filhos sozinha.
“É a partir desse núcleo que se estabelece uma nova forma de resistência proposta por Eunice”, diz Salles. A família volta a morar em São Paulo, e a mudança serve como divisor de águas em sua história.
A escolha do trecho do livro surgiu na conversa entre Marcelo, o diretor e os roteiristas Murilo Hauser e Heitor Lorega. “Parecia injusto que ela não fosse a protagonista mais uma vez”, comenta Murilo. “Foi uma personagem que passou longe da narrativa central. Qualquer material sobre ela foi difícil de encontrar”, ele conta.
Para complementar as memórias de Marcelo, a equipe entrevistou as quatro irmãs do escritor, colegas de faculdade e de trabalho de Eunice e outras pessoas próximas. “Formamos uma colcha de retalhos sobre essa personagem fascinante, uma mulher muito importante para nossa história. Uma figura equilibrada em um cenário truculento”, completa Lorega.
Marcelo descreve a mãe como um gênio político: “Desde o primeiro dia, quando tudo começou, ela sempre dizia que nós não éramos uma família vítima. A vítima era o país, era a humanidade”.
A família mudou-se de São Paulo para o Rio em 1966, quando Marcelo tinha 6 anos de idade, após a cassação do mandato de deputado federal do pai pelo golpe de Estado em 1964. Em 1971, Rubens foi levado por militares para ser interrogado e nunca mais foi visto.
“Havia ali uma rotina de uma família com qualidades e defeitos, com alegria, com música, num lugar paradisíaco que era o Rio de Janeiro nos anos 60 e 70, e que de repente tem uma interrupção brutal”, narra Marcelo.
“Aconteceu com a minha família, mas também aconteceu com outras do Brasil e de outros países ditatoriais e acontece até hoje em favelas ou na Ucrânia, no Líbano. Fizemos uma história universal, e a prova disso é que o filme está sendo muito bem-aceito nos festivais internacionais. É a prova de que minha mãe estava certa. Isso não é um drama pessoal, isso é um drama que pode acontecer com todo mundo.”
Em 1974, a família volta para São Paulo. “Fomos obrigados a mudar. Não queríamos, estávamos muito bem lá. Mas, por outro lado, foi uma forma de assumir o luto”, conta o escritor.
Desde então, ficaram “reféns da ponte aérea”, mantendo apartamento na capital fluminense. “Já passei meses no Rio, minhas peças foram produzidas lá. Mantive a rotina e o estilo carioca de ser, de andar de chinelo e ser informal. Inclusive, meu apelido na escola era Carioca.”
Durante a entrevista à Vejinha em seu condomínio residencial, Marcelo foi cumprimentado com alegria por todos os vizinhos que passaram pela área comum da lanchonete, ansiosos para assistir ao filme. Em todas as interações, expressou seu humor afiado, sincero e brincalhão. O escritor, que pediu um suco de laranja e um bombom, não tem preferência entre as capitais e também dá seu valor para São Paulo, “cidade maior e cosmopolita”.
“A gente se parece bastante”, diz a irmã Ana Lúcia, 67. “Sempre fui festeira como ele. Vou todo ano para o Brasil e ele sempre escolhe um show para assistirmos. Já fomos ver Skank, RPM, Arrigo Barnabé.”
Para a consultora de empresas, que vive em Paris, o filme capta bem a essência dos cinco irmãos e dos pais e fala de momentos dramáticos, como a notícia do acidente de Marcelo, com delicadeza. “No dia em que mamãe colocou a gente em uma sala para contar do acidente, dizendo que não sabia se ele ia sobreviver, foi um choque enorme. Precisei tomar remédio. Somos tão próximos, ele é muito querido.”
Aos 20 anos, em dezembro de 1979, Marcelo fraturou uma vértebra do pescoço e ficou paraplégico após saltar de uma pedra em um lago raso, em um sítio em Campinas. Com fisioterapia e terapia ocupacional, voltou a mover as mãos e os braços. Teve de interromper a carreira de músico e a paixão por tocar violão, o que ele define como “grande frustração” da sua vida.
Quatro décadas depois, Ana presenteou o filho de Marcelo com uma gaita. “Quando eu vi, todo aquele conhecimento de teoria musical hibernado em mim foi retomado”, completa Marcelo. “Comecei a tocar gaita, reencontrei um amigo de infância e montamos uma banda.”
Assim surgiu a Lost in Translation, com versões em português de canções clássicas e contemporâneas. “No começo, não era uma coisa ambiciosa, mas ficou legal”, conta o músico e amigo Fábio França, 64. Eles se apresentaram no Bona no domingo (27) e já foram procurados pelo Blue Note para uma performance. “Considero o Marcelo um irmão. A maior qualidade dele é a animação. A banda teria acabado duas vezes se não fosse ele.”
“O Marcelo tem uma capacidade de trabalho impressionante. Se ele decide fazer alguma coisa, vai até o fim”, descreve Ana. Desde a escrita do livro, a relação entre os irmãos só se estreitou, diante das convocações da Comissão da Verdade. Outra atualização recente do caso foi a inauguração do busto de Rubens Paiva no Rio e em Brasília.
Além da agenda movimentada com Ainda Estou Aqui e os ensaios da banda, Marcelo prepara o lançamento de mais um livro autobiográfico. No novo capítulo de sua vida, o pai do Joaquim, 10, e do Sebastião, 8, reflete sobre a paternidade sendo cadeirante e passando por pandemia e divórcio. O Novo Agora tem previsão de lançamento para o início de 2025.
Retrato fiel à história
Diretor e roteiristas usaram livro, imagens e relatos como base para o filme. Confira a seguir cenas comparadas a fotos reais.
Quem é Marcelo Rubens Paiva
Diretor, atores e roteiristas descrevem o escritor.
“É um rockstar. A história dele é muito humana, transcende barreiras de língua.”
– Selton Mello
“Marcelo é punk rock. Parece que ele aprendeu com Eunice a não ocupar o lugar de vítima.”
– Fernanda Torres
“Para mim, é um craque. Um homem livre, de uma extrema generosidade e criatividade.”
– Walter Salles
“Ele me recebeu como um amigo. Brincalhão, com humor irônico, inteligente e doce.”
– Antonio Saboia
“Espirituoso, um cara muito solar. As pessoas são atraídas para ele no ambiente.”
– Heitor Lorega, roteirista
“Uma figura muito presente em São Paulo, em eventos políticos e culturais.”
– Murilo Hauser, roteirista
Trabalhos premiados de Marcelo Rubens Paiva
Antes de Ainda Estou Aqui, Marcelo viveu uma primeira onda midiática com Feliz Ano Velho (1982), livro brasileiro mais vendido dos anos 80, vencedor do Prêmio Jabuti. “Ele virou sex symbol da minha geração, enquanto ainda se recuperava do acidente”, diz Fernanda Torres.
Ganhou o Shell de melhor autor com Da Boca pra Fora (1999). Roteirizou Malu de Bicicleta (2010), premiado em Natal, a partir do próprio livro, e recebeu mais dois prêmios Jabuti, por Ainda Estou Aqui e O Menino e o Foguete (2016).
Publicado em VEJA São Paulo de 1° de novembro de 2024, edição nº 2917