A felicidade segundo Sigmund Freud
Para Alexandre Carvalho, jornalista, estudioso da psicanálise e autor do livro "Freud sem Traumas", ser feliz provém de descobrir nossa verdade interior
Imagine degustar o seu drinque predileto ao mesmo tempo que recebe uma massagem deliciosa nos ombros e nos pés. Bom, né? Pois é exatamente assim que se sente um bebê sugando o leite materno. Está ali o mamá quentinho que, além de alimentar, tem poder analgésico, anti-stress. A voz e até o cheiro da mãe relaxam e acalmam. E o contato com o seio, para um neném, é a melhor experiência tátil do mundo.
Para Sigmund Freud, o prazer múltiplo da amamentação é o primeiro passo na direção do que vai se tornar a série de estágios do desenvolvimento psicossexual infantil. Só tem um probleminha aí: ainda falta todo o resto da nossa existência para tentar tornar perene o êxtase dessa felicidade efêmera.
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Quando mergulhei nas obras desse criador do pensamento moderno, para escrever o livro Freud sem Traumas, com a intenção de tornar mais acessíveis as teorias psicanalíticas ao leitor não especializado, descobri que Freud entendia que ser feliz equivaleria à expressão plena de nossos desejos. Mas nem todo desejo, principalmente o inconsciente, é compatível com viver em sociedade.
Não dá para ser um cidadão funcional bebendo gim o dia inteiro ou dando corda às suas fantasias sexuais mais extravagantes. A felicidade até seria possível, mas improvável: dependeria de a civilização acolher o cavalo selvagem dentro de cada um.
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Dois eventos próximos tornaram Freud bem pessimista. Um foi a I Guerra, uma carnificina bem mais chocante do que o conflito entre cavalheiros que se imaginava de início. O outro foi a morte de sua filha preferida, Sophie, vítima da gripe espanhola.
A partir de então, Freud lançou seu conceito de “pulsão de morte”, de que dentro de nós há uma vontade de matar e morrer, uma predisposição que “pode ser despertada com relativa facilidade e se intensificar em psicose de massa”. Se a gente pensar no nazismo e outros “ismos” recentes, até um bem pertinho de nós, brasileiros, fica difícil discordar.
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Juntando essa elaboração com o “mal-estar” que sofremos porque a sociedade barra os nossos desejos, o austríaco concluiu que tristeza não tem fim, felicidade sim.
Mas tem um outro lado na história bonita da psicanálise. Ao criar a mãe das psicoterapias, Sigmund Freud incitou cada indivíduo a um exercício transformador de introspecção, nos tornando heróis de nossas próprias vidas. A ingerir passivamente um comprimido para uma felicidade artificial, preferiu estimular que cada um pensasse profundamente na essência de quem é — e verbalizasse essa reflexão como uma aventura existencial.
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Sem o mesmo pessimismo do pai da psicanálise, acredito que a felicidade implica esse autoconhecimento. Encarnar totalmente a persona projetada por outros vai sempre nos afastar de uma felicidade viável — mesmo que episódica. Aquilo que eu desejo é algo que parte da minha essência ou uma forma de satisfazer à expectativa do outro?
Esse mergulho em Freud me fez crer que só a busca da nossa verdade interior é capaz de promover essa transcendência que entendemos como felicidade, modificando a relação com esse ego fugidio que projetamos nas redes sociais à espera de aprovação.
“Nunca é alto o preço a se pagar pelo privilégio de pertencer a si mesmo.” A frase é de Nietzsche, mas fala de uma autenticidade cara à psicanálise, que tem me transformado num homem mais fiel ao que percebo de mim mesmo — fruto de um estudo de anos a respeito do amante de charutos mais famoso da história. E de muita terapia também.
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Publicado em VEJA São Paulo de 15 de dezembro de 2021, edição nº 2768