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Médico português é processado pela USP por atuar em hospital de campanha

Para instituição, professor acumulou ilicitamente função pública; "Não faz sentido impedir um funcionário de ir para a linha de frente", diz ele

Por Guilherme Queiroz
Atualizado em 26 Maio 2021, 18h09 - Publicado em 26 Maio 2021, 17h22

A reitoria da Universidade de São Paulo (USP) move processo administrativo contra um ex-docente por ele ter trabalhado em um hospital de campanha de Porto Velho que atendia casos graves de Covid-19. O português Luís Moreira Gonçalves, 36, ex-professor do Instituto de Química (IQ-USP), é também médico e foi convocado emergencialmente pelo governo de Rondônia, no final de janeiro, quando a pandemia atingia de forma crítica a região Norte do país.

Por conta do processo, o médico preferiu pedir exoneração do seu cargo na USP, mas a investigação segue: caso Luís seja considerado culpado pela comissão da universidade, será formalmente demitido do serviço público e poderá ficar até dez anos impedido de exercer cargos como o de médico do SUS, ou outras funções sob contratação do Estado, incluindo a de professor.

A instituição alega que ele acumulou ilicitamente cargos públicos, pois, segundo a universidade, seu regime de contrato não permitia que o ex-docente exercesse outra função senão a de professor e pesquisador. “Não faz sentido que uma universidade pública impeça que um funcionário vá para a linha de frente ajudar. A USP estava praticamente fechada [em home office]. Se eu tenho disponibilidade e recebo um pedido de ajuda, como digo não? Ia ficar no sofá vendo Netflix?”, questiona Luís. “O que eu sinto em relação ao reitor (Vahan Agopyan) e ao vice-reitor (Antonio Carlos Hernandes) da USP é pena. Eu tenho muita pena de professores que não se preocupam com o mundo que vivem“.

O médico prestou depoimento para a Comissão Processante da instituição no dia 27 de abril. “Fizemos a defesa prévia e aguardamos a análise da comissão”, diz a advogada do médico, Fátima Conceição Gomes. “Ele seria punido por ter ido salvar vidas em Rondônia. A Constituição Federal permite a acumulação de cargos do médico, desde que haja compatibilidade de horários. No caso dele, que estava trabalhando em home office, perfeitamente cabível a acumulação”.

LINHA DO TEMPO

Doutor em química pela Universidade do Porto e mestre em medicina pela Universidade do Minho, Luís Moreira Gonçalves conhecia o Brasil desde 2011. Em 2017 foi pesquisador visitante na Unesp, quando ficou sabendo do concurso na USP. Decidiu se mudar de vez para o país e está por aqui desde 2018.

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Em junho de 2020, primeira fase crítica da pandemia no país, o Ministério da Saúde convocou médicos para trabalharem na região Norte por causa da escassez de força de trabalho com o aumento súbito de demanda, e ele se inscreveu. “Me chamaram para Manaus, Belém. Mas eu dizia do meu vínculo com a USP e, naquele momento, disseram que não queriam ninguém que já era funcionário público”, lembra.

Imagem mostra Luís sorrindo na frente de banner que diz: HCAMP Zona Leste CERO
Luís no Hospital de Campanha Zona Leste, em Porto Velho (Arquivo pessoal/Divulgação)

Mas em 2021, com o aumento súbito de casos e mortes em decorrência da nova cepa brasileira, Luís recebeu um e-mail do governo de Rondônia. Era 25 de janeiro. “Chegou o contrato temporário emergencial. Eles diziam que precisavam de médicos com urgência.” Dois dias depois, enviou uma mensagem para o departamento do Instituto de Química, verificando a possibilidade de licença.

“Acho que temos que ver a parte legal de tudo isso, se for possível por este lado, eu não faria objeções”, respondeu por e-mail o chefe do Departamento de Química Fundamental, Josef Wilhelm Baader. Logo depois, Luís foi orientado pela equipe do IQ-USP a tentar pedido de afastamento pelo portal dos funcionários. Em uma sexta-feira, dia 29 de janeiro, no entanto, Josef Baader pediu para que Luís não fosse para Porto Velho: “VOCÊ NÃO PODE VIAJAR DE JEITO NENHUM NESTA SEGUNDA-FEIRA, TEM QUE ESPERAR O SEU AFASTAMENTO SAIR”, diz o e-mail, em letras garrafais.

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EM PORTO VELHO

Luís, no entanto, desobedeceu a chefia e foi para Rondônia. “De sexta para sábado passei a noite em claro para tentar saber o que iria fazer. Sábado de manhã [30 de janeiro] tomei uma longa ducha, chorei bastante e decidi ir. Arranjei voo para Porto Velho, domingo, dia 31”, conta.

Às 8h do dia 1º de fevereiro, o médico estava no Hospital de Campanha Zona Leste, encarregado de dez pacientes de uma Unidade de Terapia Intensiva (UTI). “Eu não tinha experiência clínica”, lembra. “Estava totalmente aterrorizado. Em meu primeiro óbito, a paciente era mais velha do que eu só 6 meses e o segundo, mais nova”, afirma o médico, que tem 36 anos.

“Foram dias de desespero. Em uma noite, morreram três [dos dez que ele atendia] em oito horas. Outra vez, morreram cinco em uma noite. Mas quando o paciente sobrevive, você se sente muito bem. Eu não me arrependo de nada”, diz ele, que ficou em Porto Velho até abril.

BUROCRACIA 

Luís tentou pedir férias ao RH para regularizar sua situação na USP, mas não teve sucesso. Em 11 de fevereiro, foi avisado oficialmente pelo Departamento de Química que deveria voltar imediatamente para São Paulo, porque o seu contrato com Rondônia “se configura ilegal […], conforme o dispositivo que rege a atividade docente e que proíbe acumulação com outro cargo público, independente da carga horária”. A mensagem avisava que ele poderia ser alvo de processo administrativo que “provavelmente resultará no seu desligamento da USP”.

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O médico não voltou para a capital paulista e em 17 de março a reitoria abriu oficialmente a investigação. Em 12 de abril ele pediu exoneração da docência, mas o processo segue. Segundo a universidade, Luís estava em estágio probatório, nome dado aos três primeiros anos de prestação do serviço público, e por isso não podia licenciar-se “para tratar de interesses particulares”. O seu regime de trabalho, diz a instituição no processo, exigia “exclusividade”.

Foto mostra Fachada do Instituto de Química da USP
Fachada do Instituto de Química da USP (USP Imagens/Divulgação)

“Outra questão singular nesse caso é a punição ocorrer na USP, uma entidade do governo do estado de São Paulo, [que] tem aparecido nas mídias, lembrando que a prioridade agora é salvar vidas”, diz a advogada de Luís, Fátima Conceição Gomes.

“É como a reitoria encara os problemas: sempre por um viés formal. Se o professor estivesse na casa dele sem fazer nada, não teria acontecido. As aulas virtuais começaram em abril, praticamente toda a universidade está em home office. A universidade foi no fácil e no burocrático, em vez de tentar outra solução”, critica o presidente da Associação dos Docentes da USP (Adusp), Rodrigo Ricupero.

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Atualmente, Luís segue atuando em uma UTI-Covid e desde maio está em um hospital particular do Recife. “Recebi mensagem de alunos, docentes, colegas, me apoiando. Eu sei que a USP é melhor que a reitoria, que falhou feio, de uma forma que deveria ter vergonha”, diz. “Mesmo em Rondônia, mantive minhas funções de pesquisa, aula. Cheguei a sugerir que poderia doar o meu salário ao Hospital Universitário da USP, pedi licença não remunerada, o meu objetivo não era acumular salários. Se eles decidirem que sou culpado, vou ficar com essa marca no currículo”, diz o médico.

GOVERNO DE RONDÔNIA

O secretário da Saúde de Rondônia, Fernando Rodrigues Máximo, chegou a enviar no dia 17 de março um ofício para o reitor da USP, Vaham Agopyan, pedindo que Luís seja anistiado de “eventuais sanções administrativas por sua situação irregular decorrente do exercício de plantonista médico”.

No documento, Máximo diz que o profissional atuou “na linha de frente no combate dessa pandemia, tendo respondido ao apelo do estado de Rondônia, devido à falta de profissionais médicos na região”. E segue: “solicitamos a compreensão do magnífico reitor, que autorize o afastamento do professor doutor Luís Moreira Gonçalves”.

A Vejinha procurou o governo de Rondônia para comentar a questão, mas não obteve um retorno até a publicação desta reportagem.

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O QUE DIZ A USP

A reportagem questionou a reitoria por meio da assessoria de comunicação da universidade, mas recebeu um posicionamento do Instituto de Química. Por meio de nota, o IQ-USP diz que “recebeu a solicitação de afastamento dois dias úteis antes de sua posse como médico no estado de Rondônia e, sabedora de seus propósitos humanitários, a Diretoria envidou todos os esforços para que sua solicitação fosse deliberada”.

O texto diz, entretanto, que a documentação “apresentada de boa fé, informava que ele estaria em vias de acumular ilicitamente função pública no âmbito do governo do estado de Rondônia (não há tese jurídica ou precedente que teriam flexibilizado, durante a pandemia da covid-19, as exigências constitucionais de acumulação de cargos). Além disso, também violaria o Regime de Dedicação Integral à Docência e à Pesquisa (RDIDP) da Universidade para o qual foi contratado”.

O instituto diz que o professor, como relatado, foi alertado para aguardar a finalização do processo. “Apesar de sua conduta tê-lo deixado à mercê da máxima penalidade prevista no código disciplinar do servidor público, a ele foi dado o devido procedimento legal para sua ampla defesa. No entanto, preferiu solicitar sua exoneração”, diz a nota.

“O concurso público para a contratação emergencial de médicos no estado de Rondônia, ao qual o professor Gonçalves foi aprovado, teve chamada pública ainda em 2020. Não há qualquer registro de que o professor tenha procurado a Diretoria do IQ nesse período (anterior ao dia 28/01/21) para comunicar sobre sua intenção de atuar como médico clínico geral. O Instituto de Química não se recusaria a envidar esforços para esclarecer e orientar o referido professor quanto a essa situação, o que evitaria esse lamentável desfecho”, finaliza o texto.

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