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Os campeões dos transplantes: histórias de uma nova vida

Os avanços da medicina nas cirurgias que envolvem órgãos vitais fazem com que paulistanos vivam mais e até se tornem atletas de alto desempenho

Por Rosana Zakabi Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO , Mariana Gonzalez Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 1 set 2017, 06h00 - Publicado em 1 set 2017, 06h00

A economista paulistana Patricia Fonseca nasceu com uma insuficiência cardíaca grave e, segundo os médicos, não chegaria a 1 ano de idade. Passou por diversos tratamentos e, ao contrário do prognóstico inicial, conseguiu prolongar a vida, mas com uma série de limitações. Apesar dos cuidados, sua saúde piorou e a única solução possível foi um transplante.

Em julho de 2015, entrou em uma das salas de cirurgia do Hospital do Coração e passou por uma operação de onze horas. Ficou internada no centro médico durante um mês. Nesse período, chegou a tomar sete drogas por dia para evitar problemas de rejeição ao órgão. Aos poucos, começou a fazer ali mesmo pequenos exercícios. “O ritmo da recuperação dela superou as expectativas”, comenta Carlos Hossri, cardiologista do HCor que até hoje acompanha a evolução da ex-paciente.

E que evolução! As caminhadas na esteira ergométrica logo viraram corridas. Em seguida, Patricia passou a realizar treinos de natação e ciclismo. Há dois meses, participou da Olimpíada dos Transplantados, em Málaga, na Espanha, na categoria triatlo. Não levou nenhuma medalha (ficou em sexto lugar entre sete competidoras), mas foi a primeira transplantada de coração a completar uma prova da modalidade em quase quarenta anos desses jogos.

Fachada do HCor (Reprodução/Veja SP)

O evento contou com a presença de outros brasileiros, caso do bancário Rodrigo Machado, 45, e do médico Edson Arakaki, 55. O primeiro conquistou cinco medalhas na natação — duas de ouro e três de prata —, e o segundo, outras duas, no tênis (prata e bronze).

Patricia, Rodrigo e Edson fazem parte de um time que virou símbolo do enorme avanço ocorrido no universo dos transplantes. Até algumas décadas atrás, as chances de sobrevivência dos pacientes eram mínimas, e mesmo quem conseguia resistir tinha um cotidiano complicado. Hoje, graças ao desenvolvimento da medicina, boa parte dos operados leva uma vida normal. Alguns iniciam atividades físicas ou retomam os treinos e se tornam aptos a participar de provas de alto nível.

Em 2016, foram realizados na capital 2 243 procedimentos envolvendo coração, pulmão, fígado, pâncreas e rim (os órgãos vitais mais transplantados no país), número 98% acima do registrado em 2000, segundo a Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (Abto).

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Nesse período, a taxa de sobrevida também aumentou, de acordo com dados do Sistema Estadual de Transplantes, da Secretaria de Estado da Saúde: em operações no coração, subiu de 56% para 77%; no fígado, de 61% para 73%; e no rim, de 80% para 92%. No caso de transplantes de pulmão, o índice hoje é de 81% — dezessete anos atrás, eles nem entravam nas estatísticas, pois eram raríssimos.

Apesar de não envolver partes sólidas do corpo, o de medula óssea também está entre os procedimentos vitais mais realizados. Em 2016, foram feitos 1 000 só no Estado de São Paulo. A principal razão para os bons resultados são os progressos científicos na área. “Novos estudos possibilitaram preservar melhor os órgãos e aumentar a qualidade da saúde dos pacientes que vão recebê-los”, afirma Wellington Andraus, coordenador de transplantes de fígado do Hospital das Clínicas.

Uma das grandes novidades dos últimos cinco anos é a técnica de perfusão, que consiste em injetar no órgão, por meio de uma bomba, uma solução de concentração plasmática, que funciona como sangue artificial. O método prolonga em até quatro horas a vida útil do órgão fora do corpo humano.

“É o tempo de que os médicos precisam para tomar as providências necessárias”, diz José Eduardo Afonso Jr., coordenador do Núcleo de Captação de Órgãos do Hospital Israelita Albert Einstein. A perfusão pode aumentar as chances de êxito da operação em até 20%.

Hospital Albert Einstein
O Hospital Albert Einstein (Adriano Vizoni/Folha Imagem/Divulgação)

No sistema cardiorrespiratório, uma das maiores inovações da última década foi o ECMO, oxigenação por membrana extracorpórea. O dispositivo atua como um pulmão artificial e consegue manter o paciente vivo por semanas, até o novo coração começar a funcionar adequadamente.

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Há também um método pelo qual o coração é transportado imerso em uma solução de aminoácidos chamada Custodiol, que prolonga sua vida útil fora do corpo humano para cinco horas — nos líquidos salinos comuns, a média é de duas horas. “O InCor é um dos hospitais com maior experiência na aplicação desse procedimento no mundo”, afirma Fabio Gaiotto, coordenador da equipe cirúrgica de transplante cardíaco do local.

Outra novidade na instituição é o crossmatch virtual, sistema de troca de informações on-line sobre a compatibilidade entre doador e paciente. Ao contrário do método convencional, que demora seis horas para concluir se um órgão se encaixa em determinado perfil, o sistema virtual obtém a informação em minutos. “Isso tornou possível buscar um coração em locais distantes, com segurança”, explica Gaiotto.

Soma-se a isso o aperfeiçoamento dos imunossupressores, que impedem a rejeição. Hoje, drogas de última geração conseguem reduzir esse problema com mínimos efeitos colaterais.

“Eu tinha medo de fazer o transplante e depender dos remédios, porque, naquela época, há três décadas, eles baixavam muito a imunidade. Nos últimos anos, evoluíram muito, proporcionando-me uma qualidade de vida bem maior”, conta Edson Arakaki, que recebeu um novo rim em 2001. Até iniciativas simples, como a escolha do tipo de doador, vêm salvando vidas.

“Pesquisas atuais mostram que a chance de a operação de pâncreas dar certo é maior quando o doador tem menos de 50 anos e não é obeso. Então, temos evitado gente desse grupo de risco e aumentamos o sucesso no procedimento”, explica Vinicius Rocha Santos, coordenador do Programa de Transplante de Pâncreas do Hospital das Clínicas.

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No caso da cirurgia de medula óssea, uma das maiores evoluções nos últimos dez anos foi o crescimento no número de bancos de sangue de cordão umbilical e placentário, cuja rejeição é menor.

Na última década, o número de doações aumentou 45% no Estado de São Paulo. Em 2016, foram 2 757. Ainda assim, a fila não para de crescer. Na capital, cerca de 6 000 pessoas aguardavam pelo transplante no ano passado, e 330 delas morreram antes de recebê-lo.

O tempo de espera varia de quatro meses (fígado e pâncreas) a um ano e meio (rim). “A demanda é uma consequência da evolução do diagnóstico. Como as doenças são detectadas de forma rápida, mais gente entra na lista”, explica Marizete Peixoto Medeiros, médica sanitarista e coordenadora do Sistema Estadual de Transplantes.

Uma das grandes dificuldades do setor, segundo ela, é que, mesmo quando o indivíduo é doador, nem sempre a família autoriza o procedimento. A doação, no geral, precisa ocorrer após a morte encefálica (quando cessa a atividade do cérebro) mas com os órgãos vitais ainda funcionando. “Muitos parentes ficam com receio de liberar a retirada nesse momento”, diz Medeiros.

Patricia Fonseca, de 32 anos: prova de triatlo com o novo coração (Alexandre Battibugli/Veja SP)

O desenvolvimento da medicina não possibilita que qualquer transplantado vire atleta do dia para a noite, mas permite que indivíduos com predisposição genética a isso se dediquem a um esporte de alto desempenho. “Depois que comecei a treinar, quero ir cada vez mais longe”, afirma o maratonista Itamar Montalvão, 43, outro transplantado de rim.

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Há exemplos semelhantes no exterior. O mais famoso é o americano Aries Merritt, medalha de ouro na prova de 110 metros com barreiras nos Jogos de Londres de 2012. Ele recebeu um rim em 2015 e, no ano seguinte, voltou a competir. São histórias assim que inspiram outras pessoas. “Meu sonho é conseguir uma boa colocação competindo com atletas não transplantados no triatlo”, conta a economista Patricia Fonseca, que vem descobrindo, a cada dia, novos limites para o seu novo coração.

Coração de triatleta

Patricia Fonseca: vida nova (Leo Martins/Veja SP)

“Nunca tive uma rotina normal por causa de problemas no coração. Recém-nascida, já estava na UTI. Quando ia a um shopping muito grande, precisava andar de cadeira de rodas, pois não aguentava caminhar. Aos 14, passei por uma cirurgia para corrigir a válvula mitral, mas não resolveu o problema. Mais tarde, tive de parar a faculdade, pois não consegui frequentar as aulas. Pouco antes do transplante, em 2015, não tinha forças nem para falar.

Tudo mudou após a operação. Concluí a graduação, comecei a trabalhar e fui morar com meu namorado. Além de ganhar uma nova vida, realizei o sonho de infância de virar atleta e participei de uma prova internacional de triatlo. Treino três vezes por semana no Hospital do Coração e criei um site, o Soudoador.org, para reunir depoimentos de outros transplantados bem-sucedidos. O objetivo é ajudar pessoas que passam pela mesma situação e incentivar a doação de órgãos.” Patricia Fonseca, economista

De volta às piscinas

O nadador Rodrigo Machado (Alexandre Battibugli/Veja SP)

“Sempre gostei de esportes. Na adolescência, treinava natação e, depois, passei a praticar corrida. Em 2012, aos 40 anos, tive de parar com tudo ao ser diagnosticado com leucemia; precisei de um transplante de medula óssea. Minha irmã prontificou-se a fazer a doação e, por sorte, os exames apontaram 100% de compatibilidade. Dois anos mais tarde, porém, descobri um novo tumor no sangue, o sarcoma, e tive de me submeter à quimioterapia novamente.

O tratamento foi difícil, até porque minha medula não era original. Em 2016, ainda em recuperação, voltei a nadar e, em oito semanas, comecei a competir. Há dois campeonatos mundiais de transplantados previstos para 2018 e estou me preparando para participar deles.” Rodrigo Machado, bancário de São Caetano do Sul

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Craque das raquetes

O médico Edson Arkaki (Alexandre Battibugli/Veja SP)

“Meus problemas nos rins começaram em 1986, quando fui diagnosticado com a doença de Berger, que leva à insuficiência renal terminal. Vivi com a enfermidade relativamente bem por quinze anos, mas, em 2001, fiquei bastante debilitado e precisei recorrer à operação. Os exames mostraram que minha irmã era compatível, e ela pôde fazer a doação.

A recuperação foi fantástica. Retornei ao trabalho em um mês e, em quatro, voltei a jogar tênis, ainda como amador. Conheci a Olimpíada dos Transplantados em 2009 e formei uma dupla com outro ex-paciente de rim, o Haroldo Costa, de Brasília. Desde então, participamos de todas as edições e já ganhei sete medalhas no torneio.

Muita gente tem medo de praticar esporte após uma operação complicada. Na verdade, a atividade física é fundamental para a pessoa voltar a ter uma vida normal.” Edson Arakaki, médico

Rumo à maratona de Chicago 

Itamar Montalvão: maratona em Chicago (Ricardo D'angelo/Veja SP)

“Quando nasci, fui diagnosticado com câncer congênito no rim esquerdo, e tive de retirá-lo. Por azar, aos 25 anos, descobri outro problema renal grave no direito, o único que me restava. Mudei meus hábitos do dia a dia, voltei a praticar exercícios e consegui conviver com a doença, chamada glomeruloesclerose focal, por uma década. Mas chegou uma hora em que não deu mais. Precisei fazer hemodiálise, entrei na fila e, em 2015, passei pelo transplante.

Dois meses após a operação, percebi que não sabia viver sem ter problemas de saúde. Então, decidi me dedicar a um esporte de alto rendimento. Comecei a treinar e, cinco meses depois, participei de uma corrida de rua, de 8 quilômetros. Desde então, já completei seis meias maratonas. Meu objetivo, agora, é fazer uma prova completa, de 42 quilômetros, no fim do ano que vem, em Chicago.” Itamar Montalvão, jornalista

MAIS ÓRGÃOS, MAIOR SOBREVIDA

A evolução dos transplantes em números

2 243 operações no coração, pulmão, fígado, pâncreas e rim foram realizadas na capital no ano passado, 98% mais que em 2000.

2 350% é quanto aumentou o número de cirurgias no pulmão de 2000 a 2016: subiu de 2 para 49.

38% é o porcentual referente ao crescimento da taxa de sobrevida de quem recebeu um coração novo. Em transplantes de fígado, foi de 19%, e de rim, 16%.

2 757 doações de órgãos foram feitas em 2016 no Estado de São Paulo, um aumento de 45% em relação a dez anos atrás.

1,5 ano é o tempo médio de espera na fila para obter um rim na capital. Para receber um pulmão, são dez meses; coração, seis; fígado e pâncreas, quatro.

Fontes: Abto e Sistema Estadual de Transplantes

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