Teatro das ruas
Os próprios artistas desenvolvem a maquiagem e o vestuário para as personagens que interpretam.
Há talentos dramáticos pelas ruas. Mais precisamente: pelas esquinas. Os intérpretes têm variados estilos, encarnam numerosos papéis. As cenas são rápidas, mas nem por isso desprovidas de carga patética. Seu público-alvo é o dos automóveis que param nos sinais vermelhos do trânsito.
Os próprios artistas desenvolvem a maquiagem e o vestuário para as personagens que interpretam. Além de figurinistas e maquiadores, são diretores, criadores das falas e gestos.
Tem a mulher morena grisalha que vem com as cores da viuvez, um vestidão tingido de um preto já desbotado, tintura sob a qual ainda se veem apagadas flores, e ela traz jogado sobre um ombro e a cabeça um longo pano escuro à moda de xale que dá volta no peito e pende para trás do outro ombro, e das dobras desse xale puído brota a mão que ela estende para as pessoas do carro parado, enquanto murmura palavras que não se ouvem, embora o vidro esteja aberto. O lance dramático dela é não ser ouvida, de tão sem forças e sem ânimo. Seu número se resume a balbucio e gesto, que acredita ser suficientes para despertar a emoção que vai premiar sua cena com alguma moeda. Há anos ela se apresenta na mesma esquina.
Tem a família que traz colchão, pois seu espetáculo é noturno, próximo à Avenida Paulista. O colchão e os cobertores estropiados fazem parte do cenário e chegam numa Kombi velha, no comecinho da noite, junto com o elenco: uma mulher, uma adolescente, três, às vezes duas crianças. Ficam por ali, compondo uma cena de necessidade. Quando o sinal fecha na Paulista, as crianças vão até os carros e dão seu recado, em que entram as palavras trocado, pão, irmãozinho e fome.
A mulher de uma esquina de Perdizes, rua transversal da Avenida Sumaré, reveza seu lugar no palco com um jovem esmolambado e sujo que fala sem parar, como um doidinho de novela; fala rápido, um texto que mistura Deus com xingamentos. No fim do expediente, ou da última passagem pelos carros, pode ser visto tomando café com leite num bar próximo.
Há os que têm doenças verdadeiras, mas não dispensam a dramatização teatral, reforçam, exageram, tornam-se exibicionistas da própria desgraça, exploradores do seu infortúnio, e com isso afastam a simpatia do público, que desconfia de alguma tramoia.
De uns anos para cá, artistas circenses têm feito concorrência aos de teatro. Apresentam números com toscos malabares ou bolinhas, alguns são até hábeis, outros, bisonhos, nos dois casos acreditando oferecer, com seu pequeno show, certa compensação pelos trocados que esperam receber. Já os músicos de rua são mais raros, talvez por faltarem talentos. Na Sé, de dia, e na Paulista, à noite, aparecem alguns.
O momento seria bom para os hare krishnas. Lembram-se da cantilena mantra de alguns anos atrás, apresentada nas esquinas com sininhos e dança? Hare Krishna hare Krishna, Krishna Krishna hare hare, hare Rama hare Rama, Rama Rama haarêee. Poderiam se aproveitar da onda de indianismo kitsch levantada pela telenovela, mas eles desapareceram com seus incensos e desbotados mantos alaranjados.
No teatro das ruas, há ainda os que fazem papel de vendedores. Vendem balinhas empacotadas colocadas nos espelhos retrovisores, frutas, guarda-chuvas, mapas, bichinhos de pelúcia, carregadores de celulares… Enxotam pedintes e bêbados, que atrapalham os negócios.
Dos programas sociais brasileiros, o mais antigo, o mais amplo, o mais visível não é um daqueles criados pelos governos. Seus beneficiários recebem a pensão pingada de mão em mão, direto do contribuinte. É o Bolsa Esquina.