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Perdido

Por Ivan Angelo
Atualizado em 5 dez 2016, 19h44 - Publicado em 18 set 2009, 20h18

A Serra do Curral era o limite sul do horizonte, belo. Do alto, vislumbrava-se, longe, pequena, quase uma hipótese entre brumas, a cidade do ouro que os ingleses compraram. Separavam-nos penhascos e a grande mata.

Sentei-me para descansar da conquista do pico. Seria bom se tivesse trazido água. A lua cheia à minha direita, que me ajudara na refrega da subida, apagara-se com a chegada dominadora do sol, à esquerda. À frente, a “floresta emaranhada e pujante”, citada em reportagem por Olavo Bilac. Pedaço raro da Mata Atlântica, o mais próximo do cerrado, nele ainda conviviam mais de 100 espécies de aves, e macacos, micos, pacas, gambás, capivaras, jaguatiricas, cobras, lagartos, e árvores nobres, jacarandás, baraúnas, cedros, jequitibás, ipês, perobas…

Havia gente que descia por ali em grupos, cortava a grande mata e ia sair na vila do ouro. Num impulso decidi: vou lá. E desci, só, moço e temerário. Não levava água, botinas, protetor solar, boné, relógio, roteiro, juízo.

O começo de escorregões e esfoladuras, na parte mais íngreme, tentando equilíbrio como animal de quatro patas em vez de duas, pedras soltas rolando lá para baixo, fez-me vacilar a certa altura. Subir aquilo tudo de volta? Parecia impossível sem arbustos para agarrar. Preferi continuar a descer. Logo o mato começou a ficar mais grosso, eu procurava eventuais trilhas. À esquerda, descida; à direita, descida. Acabou-se a paisagem, mata fechada. E aí? Norte, sul, leste, oeste? O sol é peneirado pela esteira das árvores, não aparece, não dá certezas quanto ao rumo. Voz humana nenhuma, só o silêncio, pios de aves, frufru de asas e o frescor camarada da mata. O certo seria descer sempre, já que vinha do pico, mas e se passasse do ponto, baixasse numa garganta? Julgava encontrar trilhas – de gente ou de bichos? Nada, estrias das chuvas. Melhor ir bordejando, em vez de descer. Bordejando para qual lado? Andei durante um tempo longo demais para não ter chegado a alguma tapera, algum caminho batido. Prováveis trilhas não continuavam, alguma chuvarada as apagara. Bichos rastejantes chacoalhavam folhas sem que os visse, teias de aranha davam asco. A sede, que vinha aumentando havia horas, chegou a um ponto de obsessão. Julgava ouvir algum riacho, e é possível que houvesse, mas era temerário entrar no mato mais denso atrás de água. Nesse momento a gente se sente muito só, pequeno e incapaz. Um passarinho tem mais poder, acha o céu, sabe aonde vai. Sentei-me no chão algumas vezes, até sentir a boca menos seca e poder recomeçar. A certa altura, julguei ouvir vozes. Andei no que parecia ser a direção delas, gritei. Silêncio. Poderiam ser apenas um eco. Alucinação? Temia que anoitecesse, não imaginava quantas horas poderiam ser. Vontade de me deitar; não havia onde, perigo de bichos, medo de dormir. Minha lógica aconselhou-me a descer um pouco mais, algumas cotas. Ouvi, muito ao longe, mas ah, com que felicidade!, o cantar de um galo. Galo é civilização! Andei na direção que parecia ser a do canto, mas ele não se repetiu. Que diabo de galo que só canta uma vez? Desci mais, mais, cheguei a um caminho, uma trilha, certeza. E aí? Direita ou esquerda? As árvores acabanavam o mundo. Peguei a esquerda e encontrei um bendito riacho. Água limpa, cristalina. Ajoelhei-me na beira e bebi como um bicho, boca na corrente. O galo cantou de novo. Para lá! Um caminho interminável acompanhando o rego levou-me às primeiras casas, ao galo e, perguntando, vira aqui, vira ali, à praça central da cidade da mina de ouro. Tinha levado mais de dez horas naquela andança desnorteada.

Comi pastel de botequim, sentado muito tempo diante de uma cerveja, entrei na matriz, vi os altares atribuídos a Aleijadinho, voltei para casa de táxi. De ouro, só o dente do motorista.

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