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Paulo Autran: o senhor do tablado

O ator esbanja vitalidade aos 83 anos e, entre dezenas de cigarros que fuma por dia, prepara-se para estrear O Avarento

Por Alvaro Leme e Katia Calsavara
Atualizado em 5 dez 2016, 10h20 - Publicado em 18 set 2009, 20h36

Vestido com um roupão azul, pijama de listras e pantufas, ele abre a porta de seu apartamento, nos Jardins. Caminha devagar, usa óculos e aparelho auditivo no ouvido direito. Nem parece o homem cheio de vigor que hipnotiza platéias há seis décadas. Acionado o gravador para o início da entrevista, é como se rejuvenescesse. Muda a postura, o jeito de olhar, a voz. Surge, então, o Paulo Autran que o público conhece. A mesma transformação deve acontecer a partir do próximo sábado (19), quando o maior ator do teatro brasileiro estréia sua nonagésima peça. O respeitável senhor de quase 84 anos – ele nasceu no Rio de Janeiro em 7 de setembro de 1922, dia do centenário da Independência, e vive em São Paulo desde criança – vira um gigante em cena para representar as pão-durices de Harpagon, protagonista de O Avarento. Com o texto de Molière, Autran pretende lotar mais uma vez a sala principal do Teatro Cultura Artística, que tem 1 156 lugares.

Quando uma peça sua fracassa, é vista por pelo menos 30.000 pessoas, caso de A Tempestade, de Shakespeare, que ficou em cartaz por seis meses, em 1995. Sucesso recente, Visitando o Sr. Green, do americano Jeff Baron, atraiu quase 200.000 espectadores em duas temporadas. Há quinze anos, Autran passou a anotar números invejáveis como esses numa caderneta vermelha de capa dura. Está tudo ali: quantas apresentações faz de cada espetáculo, o público total e quanto a peça lhe rendeu. “Tenho uma injusta fama de rico”, diz ele. Para estrelar uma peça, o ator cobra dos produtores um salário mensal entre 25 000 e 35 000 reais. Mais participação nos lucros da bilheteria, em torno de 20% a 25%. “Recebo quatro propostas por semana para estrelar comerciais”, afirma. Mas, como dificilmente topam pagar o que ele pede, cerca de 50.000 reais, é raro vê-lo na telinha. Aliás, Autran quer distância da televisão. Em todos os sentidos. Não dá a menor bola para o aparelho de 29 polegadas que mantém em casa (“Nem me lembro da última vez em que liguei a tevê”) e garante que não há dinheiro que o convença a voltar a trabalhar em novelas. “Só fiz papéis de débeis mentais”, diz. Sua última atuação em novelas foi em 1987, interpretando o milionário viúvo Aparício Varella, de Sassaricando.

Longe da rotina da TV, encontra tempo para fazer, além de teatro, cinema, um programa de rádio em que interpreta textos literários, o Quadrante, transmitido pela BandNews FM, e badalar. Muito. Adooora uma pré-estréia, seja de filme, seja de teatro. Quando não está em cartaz, sai à noite pelo menos três vezes por semana. Sempre acompanhado da atriz Karin Rodrigues, com quem oficializou o casamento em 1999, e do cigarro. Fumante inveterado, já chegou a dar cabo de quatro maços por dia. “Se estiver na rua e o cigarro dele acabar, é capaz de filar o de algum desconhecido”, conta o ator Elias Andreato, amigo com quem dividirá o palco em O Avarento. O exagero com o cigarro lhe rendeu, em setembro de 1983, quatro pontes de safena e uma mamária. Passou os nove meses seguintes longe do vício. Não agüentou. “É burrice minha, mas não consigo parar”, diz ele, jurando que atualmente é raro passar de dez cigarros por dia.

Autran esbanja fôlego, no entanto, para varar a madrugada pelo menos uma vez por semana no jogo de tranca. Karin Rodrigues e as assessoras de imprensa Célia Forte e Selma Morente são as parceiras oficiais. “Durante as partidas pedimos pizza (ele só come margherita), estrogonofe ou beirute”, conta Célia. Seus outros hobbies são montar quebra-cabeças de mais de 1 000 peças e ler – os autores favoritos são Eça de Queiroz e Guimarães Rosa. Enjoou do passatempo antigo de confeccionar tapetes (alguns, dizem as más línguas, bem feios). Vez ou outra, recebe grupos de amigos em casa e prepara suas especialidades: vatapá, picadinho de carne ou sopa de cebola. Aceita que somente cinco pessoas estejam com ele nessas ocasiões. É uma de suas poucas, digamos, manias. “Com muita gente, não dá para conversar direito”, explica. Outro costume inusitado é o de somar placas de carro quando está na rua e ver se, noves fora, o resultado é igual a zero. Claro que quando o seu motorista ou Karin está ao volante.

A relação com ela começou no teatro, evidentemente. Ficaram amigos e, desde 1974, mantinham uma cumplicidade muito grande. Casaram-se formalmente 25 anos depois, em parte para garantir que ela herdasse seus bens. Não fosse a união, as beneficiadas seriam as cinco meio-irmãs com quem o ator, que nunca teve filhos, mantém pouco contato. Karin e Autran moram em casas separadas, mas se vêem todo santo dia. Treze anos mais jovem, Karin afirma que as afinidades são o segredo para a relação dar certo. “Nosso humor e jeito de pensar são muito parecidos”, diz. Ao contrário do personagem sovina que está prestes a encarnar no palco, Autran gosta de lhe oferecer presentes caros. No ano passado, deu a ela um carro de 70.000 reais.

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Duas grandes estrelas dos palcos brilharam também no coração do ator: Odete Lara, com quem viveu um caso, e Tônia Carrero, sua paixão por dois anos. Por causa de Tônia, o sempre controlado Autran chegava a perder as estribeiras. Em 1958, cuspiu no rosto do jornalista e crítico Paulo Francis, que havia publicado um artigo ofensivo do qual mais tarde se arrependeria. E passou duas décadas de relações cortadas com Raul Cortez, que a destratou durante a temporada de Quem Tem Medo de Virginia Woolf?, em 1978. “Voltamos a nos falar quando ele se tornou o bom colega que deveria ter sido desde o início. O Raul era terrível na juventude”, diz, não sem emendar: “Senti muito a morte dele”. A forte ligação com Tônia tem um quê de gratidão. Foi ela quem o descobriu num grupo amador e fez questão de que trabalhassem juntos. “Quando o vi em cena pela primeira vez, fiquei apaixonada”, derrete-se a diva, chamada por Autran de Mariinha. Assim, entraram em cena juntos na primeira peça profisional do currículo dele, Um Deus Dormiu Lá em Casa, de Guilherme Figueiredo, em 1949.

Ser amável e respeitoso com os colegas é uma espécie de mandamento não escrito que ele segue. Nos ensaios, é comum vê-lo rodeado de jovens atores, contando histórias. Assiste a até três montagens por semana. Inevitavelmente, alguém pergunta o que ele achou. Aí, é quase sempre diplomático. Se achou ruim, dá um jeito de comentar alguma qualidade do espetáculo. “Só revelo o que não gostei aos mais amigos”, afirma. Nunca age como estrela, por mais que as décadas de sucesso lhe garantam privilégios de primeira. Exige apenas que seu camarim tenha água, café e… cinzeiros.

Segundo seus amigos, Autran também se delicia com uma boa fofoca, coisa que ele não assume. “Todo mundo gosta de contar novidades”, diz. “Mas não passo nada adiante se for desabonador para a pessoa.” A fim de manter o bom humor, um de seus traços marcantes, costuma cochilar com freqüência. Na temporada da comédia dramática Adivinhe Quem Vem para Rezar, encerrada em junho passado, levou uma cama dobrável para as coxias Brasil afora. “Paulo tirava uma soneca até dez minutos antes de entrar em cena”, lembra Cláudio Fontana, produtor e ator do espetáculo.

Boa-praça, paciente e bem-sucedido, Autran tornou-se quase uma unanimidade. Dificilmente alguém o critica, exceto quando ele parte para o ataque, como fez numa sabatina realizada pela Folha de S.Paulo, no ano passado. No evento, falou mal do diretor José Celso Martinez Corrêa, criador do Teatro Oficina. “O Zé Celso faz um teatro muito específico. Entrar no teatro para ver dois rapazes se masturbando não me interessa, absolutamente”, afirmou, para delírio da platéia lotada de estudantes e jornalistas. “Sempre o achei muito frio em cena. Uma coisa européia, de ‘sir’. Nunca vi uma entrega absoluta”, rebate José Celso. “Esse teatro que ele faz é para a terceira idade.”

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Apesar de rompantes eventuais, Autran cultivou muitos amigos ao longo da vida. Poucos íntimos, é verdade. Entre estes, o lugar de destaque sempre foi do advogado Fábio Vilaboim, que conheceu na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (sim, o mestre do tablado formou-se lá). Dividiram apartamento em São Paulo até a morte de Vilaboim, em 1989. “Só tenho boas recordações dele. Foi um grande irmão”, afirma o ator, que mantém fotos do amigo na estante de casa. Os dois foram sócios num dos seus raros investimentos fora do mundo das artes, a Pousada Pardieiro, em Parati, no litoral do Rio de Janeiro, que fundaram em 1971. Atualmente ele é sócio minoritário do negócio.

De olhos (um verde e outro castanho, coisa em que pouca gente repara) no futuro, o senhor dos tablados alimenta projetos. Um deles é levar O Avarento para Portugal no ano que vem: “Contra toda a lógica, continuo a fazer planos como se fosse viver eternamente. Meu espírito continua jovem. Não tenho medo da morte, mas viver é delicioso demais”.

“Tenho pena de quem pode trabalhar e se aposenta. A família começa a tratar você como um velhinho. Parar de fazer teatro e ficar chateando os outros em casa? Eu, não! O palco é um recreio, uma coisa que adoro”

“Nunca tomei Viagra nem nada parecido. Acho ridículo tentar continuar uma coisa que seu corpo se recusa a fazer. Fiz muito sexo na minha vida, apesar de não ter aproveitado a liberação sexual dos anos 60”

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“Teatro é a arte do ator. Cinema é a arte do diretor e TV, a arte do anunciante. Não há dinheiro que me convença a fazer novela outra vez”

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