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Parente como a gente

Por Walcyr Carrasco
Atualizado em 5 dez 2016, 19h46 - Publicado em 18 set 2009, 20h18

Sempre achei exageradas as festas da minha família. Risadas, brigas e reconciliações eram comuns. Fofocas a granel. “Fui sorteado!”, imaginava. “Família assim, só a minha!” Recentemente, fui à festa de 90 anos da avó de um amigo meu. Uma das filhas, proprietária de um restaurante, fechou o estabelecimento. E cada um contribuiu com uma parte. Contrataram cantores. Encomendaram bolos. Serviram saladas, cabrito com hortelã, pernil assado, filé ao molho madeira e doces variados a cerca de cinquenta pessoas, entre parentes e amigos. No começo, todo mundo se abraçava e trocava beijinhos.

– Nossa, como você está bonita! – dizia a prima.

– E para você o tempo não passa, tia!

Uma felicidade só. Dali a pouco, ouviu-se um grito:

– Vagabunda! Pare de dar em cima do meu marido!

A mulher de um neto gritava com a prima do rapaz, vestida com um tomara-que-caia.

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– Só estava dançando! É meu primo, acha que não tenho vergonha na cara?!

– Aposto que brincavam de médico!

– Sai daqui! – gritou o marido, dando um safanão na esposa.

Veio a turma do deixa-disso. O marido foi embora furioso. A mulher chorava. Algumas tentavam consolar. As outras pichavam.

Após enxugar algumas cervejas, um dos tios ia de um em um. Abraçava.

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– Eu gosto de você! Eu gosto de você!

E chorava, dependurado no pescoço alheio.

Um casal separado há vinte anos, com filhos e netos, se beijava na boca.

– Mamãe sempre foi a mulher da vida do papai! – comentou o filho.

– Espera a mulher atual dele ver essa foto! – filosofou a irmã.

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A tia mais falada, de vestido bem curto, dançava animadíssima com dois sobrinhos garotões. As outras desciam a ripa:

– Essa aí nunca teve jeito!

A velha permanecia sentada na cadeira, observando tudo em silêncio. Passou a infância no campo. Colheu café. Tirava água do poço. O que pensaria diante de tanta animação?

Duas noras entraram com um bolo enorme. As filhas se juntaram à mãe comovida. Acenderam as velas.

– Assopra, mãe, assopra! – entoaram.

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A avó ficou vermelha. Um olhar irônico, surpreendente, iluminou seu rosto. Ergueu um braço e bradou:

– Saravá! Salve! Salve!

Tinha incorporado um caboclo! Meu amigo comentou:

– Sempre desce uma entidade quando ela fica emocionada.

Gritou com todas as forças:

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– Vai embora, deixa minha avó soprar as velinhas!

– Vô não! Vô não!

A velha se agitava. Ninguém tinha coragem de segurá-la – afinal, quem tem coragem de brigar com um caboclo? A entidade queria beber. Nova correria para impedir a velha de agarrar uma garrafa. A confusão durou até a filha caçula sentar-se a seu lado e pegar em sua mão. Ela desincorporou no ato.

– Quando isso acontece, só a caçula resolve – explicaram-me.

A avó permaneceu sentada, mexendo a cabeça devagar. As filhas ajudaram a soprar as velas. Serviram o bolo. Lágrimas escorriam pelo rosto da aniversariante. Outro neto se aproximou:

– Tudo bem, vó?

– Não sou eu que estou aqui… Não sou eu! – disse ela.

Quis saber se a velha seguia alguma das religiões afro.

– Não, nunca frequentou. Eu não sei como baixam essas entidades – disse o neto que me convidou.

– Mas agora se trata dela mesma. Fingiu que não é ela para disfarçar a emoção – explicou outro.

Era lindo ver aquela avó chorando, aquecida pelo amor de filhos, netos, bisnetos. Quando viva, a maior alegria da minha mãe era juntar os três filhos. Imagino a felicidade em compartilhar os 90 anos com todos os parentes! Saí da festa com a certeza de que famílias são todas iguais e ao mesmo tempo cada uma tem algo de especial. Parente é como a gente. Mas isso é muito bom.

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