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Os operários das alturas se profissionalizaram

Eles agora têm equipamentos, formação, procedimentos e até salários melhores

Por Daniel Nunes Gonçalves
Atualizado em 6 dez 2016, 09h10 - Publicado em 18 set 2009, 20h26

Do terraço no 23º andar do Instituto do Câncer, a 112 metros do chão, um homem observa o trânsito da Avenida Doutor Arnaldo. Sobe na mureta, vira-se de costas para a paisagem vertiginosa e pendura-se. Venta e faz frio na tarde de uma quarta-feira de junho. Suspenso por uma corda – e preso a outra, paralela, que entra em ação caso a primeira falhe -, Mauricio Gomes usa luvas, óculos e capacete semelhantes aos dos alpinistas. Contratado para fazer a manutenção da fachada, ele não é um limpador de vidraças qualquer. Conquista o cume de montanhas há 27 anos, já foi professor de escalada esportiva de mais de 3 000 alunos e gosta tanto de vãos-livres que ganha dinheiro montando circuitos de arvorismo em festas infantis. “Esse é meu ganha-pão, mas sempre que posso fujo para a natureza”, diz. Na mesma quarta-feira, ele exercitou sua habilidade fazendo a limpeza noturna de um frigorífico que funcionava a 10 graus negativos, suspenso a 40 metros de altura. “A única iluminação era a da lanterna do meu capacete”, recorda.

Longe do horizonte dos paulistanos do andar térreo, Gomes faz parte de um grupo de anônimos que tem mudado o perfil de quem trabalha nos pontos mais elevados da cidade. Responsáveis pela decoração de edifícios, construção de arranha-céus e instalação de cabos elétricos e torres de telefonia, os senhores das alturas têm se profissionalizado nos últimos cinco anos.

“Há uma exigência maior de formação, de equipamentos de qualidade e de procedimentos de segurança, especialmente por parte das grandes empresas”, afirma Gomes. Os populares cordeiros, operários que ficam atados a balancins e cordas gastas, podem estar com seus dias contados.

É claro que os trabalhadores sem instrução ainda são maioria nas obras pequenas e médias que mancham os jornais com acidentes de seu cotidiano. Só a movimentada construção civil paulistana acumulou nove desastres fatais em 2009 – uma média maior que o 1,25 óbito mensal dos últimos cinco anos. O mais recente deles ocorreu na segunda (6), quando dois homens que limpavam uma caixa-d’água em Itaquera sem equipamento de segurança viram ceder um andaime e caíram no poço vazio com 17 metros de profundidade. “Custa caro dar treinamento de acesso por corda e equipamento de primeira linha para todos os operários que hoje se apoiam em andaimes ou se penduram em cordas e balancins rústicos”, admite Antonio Ramalho, presidente do Sindicato dos Trabalhadores da Construção Civil, que representa 300 000 filiados. O Brasil perde anualmente 5 bilhões de reais com despesas de acidentes de trabalho. “Quem adia os gastos com prevenção paga o preço das indenizações”, afirma o auditor fiscal Antonio Pereira, do Ministério do Trabalho.

Segundo o Corpo de Bombeiros de São Paulo, que mobilizou onze homens no resgate com helicóptero na caixa-d’água de Itaquera, quedas assim foram responsáveis por 179 ligações para o número 193 em 2008. Para prestarem socorro a tanta gente, os bombeiros formam, todos os anos, especialistas em técnicas verticais. No mês passado, treze oficiais selecionados por aptidão física entre mais de quarenta candidatos concluíram as sete semanas do Curso de Salvamento em Altura. Eles enfrentaram provas espetaculares. Na Avenida Paulista, usaram a técnica da tirolesa para percorrer 150 metros de corda a 75 metros de altura. No Brooklin, cruzaram 15 metros de um prédio a outro fazendo evoluções em um cabo a 95 metros do asfalto.

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Há duas décadas, os próprios bombeiros não conheciam várias dessas técnicas. O aprendizado veio com as aulas de montanhistas como Nelson Barretta. Por doze anos, ele mostrou aos oficiais que manobras comuns em paredões de pedra e gelo eram possíveis também no ambiente de concreto. “Foi um movimento mundial: os escaladores passaram a bancar suas expedições com o pagamento por serviços prestados na cidade grande”, lembra Barretta, que teve uma de suas aventuras registradas em longa-metragem, o nacional Extremo Sul. A substituição de peões por esportistas de alto nível deu origem ao termo alpinismo industrial e determinou a profissionalização do trabalho.

A procura por cursos como o de acesso por cordas é um bom medidor dessa tendência. Criada dez anos atrás, a primeira escola dessa área, a Vertical/PRO, já treinou 10 000 alunos, 2 500 só no ano passado. Com a certificação, os especialistas em altura passam a ter salários valorizados, como no exterior. “Alguns ex-alunos meus ganham 5 000 reais para trabalhar por quinze dias pendurados nas plataformas de petróleo em alto-mar”, conta o proprietário Marcello Vazzoler, escalador que chegou a passar oito dias em um paredão e galgou neste ano os 5 895 metros do Monte Kilimanjaro, na Tanzânia. Com oito anos de experiência em cordas e estruturas metálicas como cordeiro, Girlândio Francisco da Silva, o Gil, participou de um curso bancado pela empresa que o contratou para limpar fachadas, a H3. “Meu salário passou de 700 para mais de 2 000 reais”, diz. “Cheguei a cair de 5 metros de altura no emprego anterior, e lembro de colegas que bebiam para conseguir encarar a altura e pintar prédios.” Além de aprender a reconhecer cordas e mosquetões distintos, Gil se inspira hoje em companheiros com excelência técnica, como o escalador Mauricio Gomes.

Apesar da semelhança, os equipamentos usados nas atividades urbanas verticais não são mais os mesmos dos esportes, como na década passada. Cintos, trava-quedas e talabartes ganharam versões industriais, mais robustas e precisas que as leves peças preferidas pelos montanhistas. “Antes, tudo era importado, agora há uma dezena de empresas brasileiras fabricando bons produtos”, afirma o escalador Marcelo Krings, dono da Soluções para Trabalho em Altura (STA), companhia para a qual presta serviços Nelson Barretta. Com contratos que vão de 2 000 reais a 2 milhões de reais, sua firma, diz ele, cresceu 200% em faturamento nos últimos dois anos.

“Há duas décadas, nem o cinto era usado”, lembra Márcia Queiroz Bonafé, eletricitária que hoje é obrigada a utilizar todo o arsenal de equipamentos possível. Primeira inspetora aérea a ficar pendurada em um helicóptero da AES/Eletropaulo, ela voa desde 1990 para averiguar o possível aquecimento dos cabos de alta-tensão manejando um aparelho que custa 160 000 dólares, o termovisor. Assim como os outros oito inspetores do ar e cinquenta eletricistas da empresa habituados às torres de transmissão, ela ganha um adicional de 30% pelo risco de sua função. “Adoro viver no limite”, conta Márcia, acostumada a pilotar sua moto Suzuki DR 650 no caminho para casa.

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Além de fazerem cursos específicos, os eletricitários seguem normas obrigatórias para evitar acidentes, algo impensável para a maioria dos 3 500 trabalhadores de acesso por corda no Brasil. Para reverterem o quadro, desde o ano passado representantes de oitenta companhias do ramo – 21 delas paulistas – reúnem-se mensalmente para estudar como devem ser os procedimentos mais seguros para esse tipo de atividade. “Criamos duas normas e esperamos que elas se tornem obrigatórias”, diz Erick Lage, da Associação Brasileira de Ensaios Não Destrutivos e Inspeção (Abendi), instituição certificadora credenciada à Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT). Por enquanto, grandes empresas adotam regras estrangeiras.

“Com ancoragem em dois ou três pontos, o risco de um acidente grave se reduz sensivelmente”, afirma o técnico em segurança do trabalho Gustavo Mendes. Com doze de seus 31 anos dedicados à escalada e ao resgate em altura, Mendes decidiu militar pelo tema depois de boas experiências em obras como a da Ponte Estaiada, podando grandes árvores e desenvolvendo equipamento industrial para empresas brasileiras. Para ele, falta às companhias seguir a regra de ancorar seus funcionários em um cabo sempre que estes estiverem a mais de 2 metros do chão. Isso inclui carregar um caminhão-cegonha ou pintar a fachada de um sobrado. “Essa primeira normatização dos trabalhos verticais é uma pequena mas importante iniciativa para que os acidentes sejam radicalmente reduzidos”, diz Rodrigo Ranieri, proprietário da Grade 6, que faz treinamento e serviços verticais. Com três expedições ao Everest no currículo, Ranieri conhece bem as limitações humanas. Ele era o parceiro de Vitor Negrete, o brasileiro que morreu ao voltar dos 8 850 metros de altitude da montanha mais alta do planeta, em 2006.

Uma mudança e tanto aconteceu em relação aos procedimentos anteriores às subidas a prédios e estruturas. “Passei por exames físicos, de cabeça e do coração para ser aprovado como operador de grua”, afirma o ex-sinaleiro Severino Moura da Silva, que transporta materiais pesados para dentro do canteiro subterrâneo de obras da nova Estação Luz do metrô, na Linha 4 – Amarela. Todos os dias ele tem a pressão e os batimentos cardíacos medidos. “Se apresentar qualquer alteração, ou até se eu tiver dormido mal à noite, não me deixam subir”, conta Silva. Para ganhar o salário dobrado, enfrentou a tremedeira no primeiro dia da nova função. “Já me acostumei, mas não perdi o medo, o que acho bom. É perigoso a pessoa ficar autoconfiante a 30 metros de altura ou mais.”

Mais que um limpador de vidraças

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“Descobri meu amor pela altura escalando montanhas, aos 22 anos. Cheguei a topos como os do Pão de Açúcar e do Dedo de Deus, no Rio. Dez anos atrás me chamaram para montar decorações natalinas em locais de difícil acesso na cidade. Não parei mais. Trabalhei, por exemplo, na manutenção dos 1 600 metros de dutos de gás que descem a Serra do Mar e na pintura do topo da Ponte Estaiada, a 138 metros da Marginal do Rio Pinheiros. Também faço limpeza de fachadas. A do Instituto do Câncer (112 metros acima da Avenida Doutor Arnaldo, foto) levou vinte dias, com as quatro faces dos 23 andares sendo lavadas por quatro homens (cada um ganha 150 reais por dia). Mas minha rotina é bem variada. No mesmo dia em que limpei a fachada do hospital, eu me pendurei a 40 metros de altura para fazer a limpeza de um frigorífico, que fica num galpão gigante. Detalhe: o termômetro marcava 10 graus negativos e estava completamente escuro. Nada de paisagem. A única iluminação era a lanterna do meu capacete.”

Mauricio Gomes da Silva, 49 anos, alpinista industrial

Aventura que pode salvar vidas

“Sou um dos treze oficiais que acabam de se formar no Curso de Salvamento em Altura do Corpo de Bombeiros, o Cesalt. Durante 45 dias, os aspirantes a especialista nesse tipo de resgate aprendem a sair de situações extremas em grandes desníveis. Tivemos de simular a busca de vítimas em um teleférico e praticar rapel de mais de 100 metros na Rodovia dos Imigrantes. Em São Paulo, eu e amigos como o tenente Sergio Ricardo Vasconcellos (foto acima, à esquerda) usamos a técnica da tirolesa para descer, suspensos em uma corda, de um prédio de 75 metros em plena Avenida Paulista. A ideia era preparar-se para ocorrências comuns como a queda de limpadores de fachadas e de operários da construção civil. Em outra prova do curso, fizemos evoluções em uma corda que ligava, por 15 metros, dois edifícios. Difícil era olhar para baixo: a 95 metros dos meus pés passavam os carros e caminhões na Marginal Pinheiros (foto acima, à direita). Mas eu quis virar especialista exatamente por gostar de desafios. Adoro surfar em ondas grandes e praticar rapel nos fins de semana. E, no trabalho, já apaguei incêndio no 15º andar de um prédio e salvei uma suicida que tentava se jogar do 7º piso. Agora, formado, ganhei mais técnica. “

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Tenente Leandro Viana da Hora, 28 anos, bombeiro

Eletricitária voa baixo sobre cabos de alta-tensão

“Mexo com um produto perigoso: a energia elétrica. Vivo amarrada na lateral externa de um helicóptero para identificar o aquecimento dos cabos de alta-tensão. Os voos são baixos, a 30 metros do solo, e lentos, a 30 quilômetros por hora. Chego a 5 metros de linhas energizadas de 88 000 volts – como as da beira da Represa Billings -, voltagem 400 vezes maior que a dos chuveiros. O risco é grande. Dois anos atrás, uma aeronave bateu a cauda em um transformador e explodiu. Gosto de viver no limite até na volta do serviço, acelerando minha moto Suzuki DR 650.”

Márcia Queiroz Bonafé, 44 anos, técnica do sistema elétrico de campo

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Ele pilota gruas de até 120 metros

“Há seis meses fui promovido de sinaleiro a operador de grua. Entre os 280 homens que constroem a nova Estação Luz do metrô, da Linha 4 – Amarela, só mais dois fazem esse trabalho. Eu queria trabalhar no alto, até porque o salário é dobrado, mas tremi muito na primeira vez que subi. Passei pelo treinamento. Mesmo assim não perdi o medo, o que acho bom. É perigoso a pessoa ficar autoconfiante a 30 metros de altura ou mais – e existem gruas de 120 metros! Quando o vento passa de 42 quilômetros por hora, tenho de parar tudo e descer rapidinho. Dia desses até carreguei uma escavadeira de 22 toneladas para o fundo de um buraco de 38 metros. É ou não muita responsabilidade? “

Severino Marcos Moura da Silva, 31 anos, operador de grua

Da manutenção de ginásios à decoração natalina de shoppings

“Quando vai ter jogo da Confederação Brasileira de Voleibol, eu me penduro na cobertura do Ginásio do Ibirapuera (foto), 40 metros acima da quadra, para instalar câmera, tapar goteiras e trocar lâmpadas. Escalo desde os 17 anos. Subi montanhas com mais de 6 800 metros de altitude, voei de balão por uma década, participei de resgate em avalanche a 35 graus negativos e viajei oito vezes à Antártica. Descobri o filão urbano ao atuar como instrutor de atividades em altura dos bombeiros por doze anos. Crio soluções para instalações em locais de difícil acesso, da iluminação de um espetáculo à decoração natalina de shoppings. Não vou ficar rico assim, mas trabalho feliz com o que sei fazer de melhor. “

Nelson Barretta, 39 anos, alpinista industrial

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