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Nós e a cidade

Por Ivan Angelo
Atualizado em 5 dez 2016, 12h03 - Publicado em 18 set 2015, 22h50

A gente patinhava em problemas, mas era animado. Tinha superado uma ditadura e seus absurdos havia apenas cinco meses, a inflação beirava 240%, acolchoada pela correção monetária, o presidente da esperança havia morrido sem tomar posse e no seu lugar entrara um reserva de bigodes, tínhamos a maior dívida externa do planeta, havia desemprego, carestia e aids, mas a gente estava animado. Tinha liberdade, o cinema ia bem, o nosso rock era vital, o teatro podia falar sem censura, a literatura respirava, os bares estavam cheios, a inflação aconselhava não deixar para amanhã o que se pode beber hoje, os restaurantes entravam em fase diversificada e sofisticada, a diversão abria endereços na cidade, os comportamentos abriam possibilidades — é, a gente andava animado. Foi então.

Surgiu na cidade uma revista para fazer a ponte entre os lugares e as pessoas. Esta revista. Eu trabalhava na imprensa diária em 1985, num jornal que também buscava camaradagem com o paulistano, e logo gostei desse jeito Vejinha de levá-lo pelo braço para aproveitar a vida. A primeira reportagem de capa, sobre o grande quadrilátero festivo dos Jardins, era isso, um flagra no novo jeito paulistano de estar. Por ali, nas ruas, encontrava-se gente inalcançável. A revista captara que havia ali, naquele espaço, um espírito, um jeito de ser mundano, moderno, sem pressa nem planejamento — não era uma “proposta”. O modelo não era o rico, era o descolado.

Trinta anos… O passado tem esse charme, o apelo dos bons tempos chega numa foto, numa página de revista. Éramos jovens, assim como os que amávamos ou desejávamos.

Algumas moças usavam transparências, outras fumavam charuto, certas usavam cueca samba-canção sob a saia porque “não marcava”, alguns rapazes se cumprimentavam com beijinho na boca (que a epidemia de aids logo aboliu). Os restaurantes e as atrações semanais, vistos assim em bloco na revista, já transmitiam a dimensão da metrópole da gastronomia, das artes, das modas, das compras. Eu costumava levar paraum amigo mineiro de Belo Horizonte, editor chefe de O Estado de Minas, um exemplar da Vejinha. A alegria dele era a seção de restaurantes. Salivava. Pedia a descrição dos pratos, dos sabores, dos ambientes, viajava. É o que deve acontecer ainda hoje com os leitores. Comigo acontece.

Deu-se então que, no fim de abril de 1999, me convidaram para ser cronista nesta última página, revezando-me com Walcyr Carrasco. Missão difícil, porque deveria suceder a um querido amigo e apreciado escritor, Marcos Rey, falecido havia pouco. Minha primeira colaboração foi publicada em 5 de maio de 1999. Cheguei pisando leve: “Mil perdões, leitores, por não ser paulistano. Não chega a ser um defeito, é no máximouma desvantagem”. Foram, até aqui, 422 crônicas; dos trinta anos da revista, temos dezesseis de vida em comum. Tratam-me bem os meus leitores, e procuro retribuir. Oferecem-me histórias, talvez imaginando que me falte assunto algum dia desses. Emocionam-se, contestam, apoiam, completam, contribuem e, não raro, fazem-me gentilezas. Escrevi certa vez sobre minha busca fracassada por jabuticabas no pé, nesta cidade que já teve tantas jabuticabeiras, e durante a semana recebi ofertas para ir à cata, até foto mandaram. Me esbaldei.

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