Mudanças de mãos em ruas, como na Heitor Penteado, causam confusão
Em ritmo recorde, CET altera uma via a cada dois dias
Há poucas semanas, o diretor de planejamento da Companhia de Engenharia de Tráfego (CET), Tadeu Leite Duarte, perdeu-se em um emaranhado de retornos e conversões no bairro de Santo Amaro, ao tentar chegar ao Consulado dos Estados Unidos, na Rua Henri Dunant. O conhecimento técnico adquirido após 35 anos de atuação no órgão de trânsito, a familiaridade com a área que frequenta há décadas e mesmo a precisão do equipamento de GPS de seu carro não foram capazes de destrinchar as alterações no sentido de algumas ruas, ocorridas ali no ano passado. “A região mudou bastante e acabei dando voltas”, admite. “Só encontrei o caminho correto seguindo as placas que foram instaladas recentemente por nós.” Não está fácil mesmo para ninguém: se um dos homens fortes do trânsito paulistano passa por esses percalços, imagine a situação do motorista médio. Não é de hoje que nossas massacradas avenidas suam para escoar a massa de veículos despejada nelas diariamente. Enquanto o número de vias aumentou apenas 20% desde os anos 70, a frota registrada cresceu 700% no mesmo período, chegando à marca atual de 7,6 milhões de veículos — o número estimado que, de fato, circula nas ruas é 4,5 milhões. A pesquisa Origem- Destino, do Metrô, divulgada na semana passada, mostrou que os deslocamentos com carro, moto e táxi subiram 21% entre 2007 e 2012. Até hackers estão sendo convocados a ajudar na gestão de tráfego. A SPTrans criará na próxima semana o Laboratório de Mobilidade, em que especialistas em informática vão analisar dados gerados pelos meios de transporte.
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Esse notável enrosco ganhou um componente novo a partir do segundo semestre do ano passado. Desde outubro, 73 ruas da capital tiveram a sua mão de direção invertida, média de uma mudança do tipo a cada dois dias. É o dobro do que foi realizado em período semelhante de 2012. Trata-se da maior intervenção do tipo na capital desde a gestão do prefeito Prestes Maia, nos anos 60. Um terço dessas ações serviu para adequar as vias às novas faixas de ônibus ou a obras do metrô. Mas quase metade integra um plano da prefeitura para reorganizar o trânsito com a criação de um “siste ma binário de quadriláteros reticulados”. O nome é mirabolante, mas a ideia, simples. Ruas paralelas de mão única terão sentidos de direção contrários; o mesmo ocorrerá com suas perpendiculares. Ou seja, os quarteirões serão contornados no formato de um quadrado, algo semelhante ao que já existe na região dos Jardins. “A circulação das ruas nunca foi planejada, só adaptada no jeitinho para resolver questões pontuais”, explica Duarte. “Se havia uma demanda de tráfego em um cruzamento, simplesmente se instalavam uma conversão e um semáforo”, exemplifica.
Na teoria, parece bacana. Mas o pacote de mudanças em escala inédita deixou os volantes paulistanos mais confusos e nervosos. Nada supera o que aconteceu no Sumaré, que concentra a maior quantidade de reclamações enviadas à CET. Em janeiro, a Rua Heitor Penteado ganhou 2,7 quilômetros de faixas exclusivas para ônibus. Para garantir sua fluidez, foram desativadas as conversões à esquerda em três ruas locais: Apinajés, Pereira Leite e Oscar Caravelas. “Está bem difícil dirigir aqui, tem de dar uma volta enorme”, afirma a representante comercial Fabiana Andrade, que na segunda (10) reclamava da falta de sinalização clara para chegar à Avenida Professor Alfonso Bovero. Quase todas as faixas estão quebradas, rasgadas ou dobradas. Entre 17 e 18 horas, oito carros entraram irregularmente na Rua Apinajés, por desconhecimento ou malandragem. Os agentes da CET aplicaram 35 multas neste local em duas semanas. Com a alteração, os motoristas passaram a desviar para as estreitas ruas Monsanto e Miranda Montenegro, em área residencial. “As pessoas precisam se acostumar com a ideia de que nem sempre é possível ir em linha reta de um ponto a outro”, argumenta Duarte. Na mesma segunda-feira, em um intervalo de quinze minutos no horário de pico da tarde, nada menos que 250 veículos cruzaram essas duas vias, o que tem incomodado moradores. “A quantidade absurda de automóveis traz poluição, acidentes e assaltos”, reclama a artesã Beatriz Pereira. O taxista Walter Nascimento de Souza, que há oito anos trabalha em um ponto na Rua Borges de Barros, não consegue mais cumprir seu slogan: “Táxi no local em cinco minutos”. “Os retornos estão muito distantes”, lamenta. A opção mais próxima fica nas ruas Rifaina e Pedro Soares de Almeida, que tiveram o sentido invertido. “Até hoje tem uns desavisados que entram na contramão”, conta Souza. Bem perto dali, o cruzamento da Rua Pereira Leite registrou impressionantes 719 infrações no período de 27 de janeiro a 28 de fevereiro, quase uma por hora.
Outra área com grande número de reclamações é a Mooca. Em fevereiro, o trecho da Rua dos Trilhos entre a Rua Bresser e a Praça dos Industriários ganhou mão única no sentido bairro. O objetivo era dar mais fluidez aos ônibus, que travavam a Avenida Alcântara Machado. A consequência foi a sobrecarga na paralela Rua da Mooca. O pior reflexo, porém, ocorreu na Rua Bresser, bloqueada em uma das extremidades e agora com mão única. Ou seja, liga nada a lugar nenhum. Em poucos minutos é possível presenciar diversos motoristas dirigindo até o fim da rua e dando meia-volta na contramão. “Mais da metade dos meus clientes desapareceram”, diz o comerciante Gercio Cardozo, dono de uma lan house. Os alunos da Faculdade São Judas, que fica a poucos metros, encontraram uma utilidade para o beco sem saída. “Ganhei um baile funk na porta de casa”, lamenta Claudia Menghetti. Um abaixo-assinado com mais de 2 000 assinaturas pede à CET que revogue a mudança.
Em um local específico, a recente reorganização não está relacionada à mobilidade. A pedido da Polícia Militar, o sentido do fluxo em um dos quarteirões da Rua Doutor Francisco Tomás de Carvalho, o ladeirão do Morumbi, foi alterado no começo do mês. A esperança é diminuir o número de arrastões durante engarrafamentos. A via passa ao lado da favela de Paraisópolis e é usada como atalho para evitar as encrencadas avenidas Giovanni Gronchi e Morumbi. Mas a medida não é unanimidadenem dentro da corporação. “O certo seria apresença ostensiva da polícia, e não da CET”,comenta o tenente Julyver Modesto de Araújo, presidenteda Associação Brasileira de Profissionaisdo Trânsito.Os motoristas que vão no sentido bairro passaram a utilizar duas paralelas: a Antonio Julio dos Santos e a João Avelino Pinho Melão. “A única diferença é ficar parado em outro lugar”, diz a esteticista Vanessa Medeiros.
Em obras desde 2007, a região do Largo da Batata tornou-se um caso único. As novidades são tão constantes que circular ali é como tentar decifrar um cubo mágico: arestas e esquinas mudam de posição e quase nunca se conectam. Na mais recente transformação, no ano passado, a Rua Cardeal Arcoverde foi bloqueada entre a Rua Teodoro Sampaio e a Avenida Brigadeiro Faria Lima, e as estreitas e residenciais Tucumbira e Guaicuí ganharam mão única para receber parte do fluxo. Com isso, a SPTrans precisou alterar o itinerário de sete linhas de ônibus. “Meu GPS não se atualiza na mesma velocidade em que as ruas mudam”, conta a representante comercial Michele Antoniacci, moradora da região há vinte anos.
Responsável por distribuir dados cartográficos e de tráfego a mais de 600 empresas, a MapLink tem seis funcionários dedicados apenas a atualizar a base de dados com as novas rotas. “Toda alteração tem um ritmo próprio: primeiro aumenta a lentidão, depois melhora, e por fim volta ao que era antes”, analisa o diretor comercial da marca, Frederico Hohagen. Segundo seus dados, o congestionamento médio diário na cidade no pico da tarde saltou de 372 quilômetros em 2012 para 444 quilômetros no início deste ano. Seu concorrente gratuito, o aplicativo para smartphones Waze, recebe cerca de 120 000 avisos de mudanças no trânsito de São Paulo por dia.
Especialistas concordam que a capital precisa de uma reorganização em suas vias, mas discordam da maneira como ela vem sendo executada. “Antes de alterar o fluxo em ruas secundárias, é preciso reforçar os principais troncos de escoamento, o que não está sendo feito”, critica Ênio Bueno, professor de engenharia de tráfego da USP. “Não adianta tentar organizar o trânsito jogando os carros de lá para cá.” afirma o tenente Araújo.
A CET reconhece que, em alguns casos, as medidas adotadas podem não ser as mais adequadas e diz que tem disposição para corrigir eventuais erros. “Estamos abertos à discussão e cedemos na Paes Leme, em Pinheiros, que ganhou um trecho de mão dupla”, exemplifica Duarte. Ele alerta para o fato de que o ritmo de alterações deve seguir o mesmo nos próximos quatro anos. “Sempre que surge algo diferente nas ruas, as pessoas fazem queixas”, comenta Felipe Bueno, diretor de Jornalismo da Rádio SulAmérica Trânsito. “Depois de três semanas, elas se acostumam.” Além de reclamar com as autoridades, resta ao motorista paulistano tomar uma dose a mais de paciência todos os dias para encarar as confusões e surpresas do labirinto criado pela CET na metrópole.