Moradores de ilhas do litoral paulista vivem no isolamento
Habitantes têm vantagens como acordar de frente para o mar e mergulhar no meio de golfnhos, mas sofrem com infraestrutura precária
O pescador Rubens de Oliveira, de 49 anos, ganha cerca de 300 reais por mês, menos da metade de um salário mínimo. Apesar disso, não reclama da vida que leva num belíssimo pedaço de terra no meio do Oceano Atlântico. Às 3 horas da manhã, sai com seu barco e lança a rede. Muitas vezes, cardumes de golfinhos curiosos lhe fazem companhia. No período de folga da tarde, um de seus programas prediletos é contemplar a vista para as praias do continente. Quando bate a fome, estica a mão e pega uma fruta do quintal — ameixa, carambola e jabuticaba, entre outras. Gastou 10 000 reais para construir uma casa de madeira de três quartos de frente para o mar. Não precisa pagar IPTU, pois o lugar pertence ao governo federal, que cedeu a área em 2012 para o uso dos caiçaras. A água vem grátis por uma mangueira conectada à nascente de um rio. A rede elétrica ainda não chegou, mas uma bateria de carro garante televisão ligada. “Tenho acompanhado jornal e visto muita coisa ruim”, conta Oliveira, que raramente arreda pé do local onde nasceu. “A cidade grande é barulhenta e abafada”, diz ele, que veio pouquíssimas vezes a São Paulo, uma delas para assistir a um jogo do Corinthians no Pacaembu.
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O pescador é um dos cinquenta moradores do Montão de Trigo, ilha a 10 quilômetros de São Sebastião, no Litoral Norte. De barco, a distância pode ser percorrida em vinte minutos a partir da praia de Barra do Una. De lá e de outros pontos da região é possível avistar o morro de 300 metros de altura que se destaca na paisagem da ínsula. Seu nome teria vindo daí, por lembrar de longe um amontoado de trigo. Ela faz parte do grupo de mais de 100 ilhas do litoral paulista. A maior, o Guarujá, com cerca de 290 000 pessoas, é quase uma metrópole quando comparada a esse e a outros refúgios semelhantes.
Para poder morar no Montão de Trigo é preciso ter nascido no lugar ou ser casado com algum nativo. O artesão Sérgio de Souza, de 32 anos, que era de São José dos Campos, trocou o interior pela ilha depois de conhecer numa viagem a São Sebastião a mulher, Ceumara Oliveira, 37. Ele estava vendendo bijuterias no centro quando puxou papo com ela, que estava passeando no pedaço. “Sou uma das únicas que não se casaram com primo”, conta Ceumara, sentada no sofá da sala de estar da residência do casal, que tem uma vista de dar inveja a muitos hotéis e mansões do litoral. “Por aqui, quase todos têm o sobrenome Oliveira”, completa. Outra “estrangeira” é Adriana Pessoa, 39, professora do colégio local. Nascida em Bebedouro, a 381 quilômetros da capital, formou-se em pedagogia e passou num concurso público em São Sebastião. Escolheu trabalhar na ilha. “No continente, a escola é uma instituição descolada da realidade dos estudantes, aqui isso não acontece”, compara. As primeiras aulas do calendário deste ano serão ministradas em uma piscina natural de água cristalina. As crianças aprenderão a mergulhar e farão um catálogo da fauna marinha.
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Para ensinar história, o cenário ideal poderia ser Búzios ou Vitória, a 28 e 40 quilômetros de Ilhabela, respectivamente. Ao chegar, o visitante tem de chamar algum morador para buscá-lo em uma canoa a remo. É a única embarcação que consegue atracar no “porto”: uma fileira de tábuas de madeira em cima das pedras. Há nas duas ilhas resquícios de antigos cemitérios indígenas datados da pré-história. Os atuais moradores misturam traços desses primeiros habitantes com os de europeus, mas nunca se soube direito como os estrangeiros foram parar no local. Um trabalho da arqueóloga Cíntia Bendazzoli pode ajudar a esclarecer o mistério. No fim do ano passado, ela encontrou um documento que mostra a doação de Búzios, no século XIX, para um filho de portugueses. Nos próximos meses, a especialista fará expedições para se aprofundar na investigação. “Há relatos de caiçaras sobre a presença de grande volume de louça em meio a ruínas de pedra e cal”, afirma Cíntia.
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Ali, os moradores plantam o que comem em roças e criam galinhas. Em Búzios, há dois mercadinhos onde se compra de macarrão a bebida. Uma garrafa de Velho Barreiro custa 11 reais, quase o dobro do que em Ilhabela. A inflação da cachaça não incomoda, pois o consumo caiu desde a chegada da igreja evangélica Congregação Cristã no Brasil, há mais de uma década. “Todo junho tinha festa com forró e quentão. Agora, a maioria é crente”, afirma o pescador Olegário Costa, um dos poucos que não se converteram.
Como não há posto de saúde nesses lugares, a cada trinta ou quarenta dias, uma equipe da prefeitura de Ilhabela aparece por lá com médico, enfermeiros, dentista e psicólogo. As mulheres costumam ter os filhos no continente, principalmente desde que uma das moradoras de Búzios morreu no parto, em 1980. “Ela tentou ir para o hospital na última hora, mas o mar não deixou”, lembra Benedita Costa, de 51 anos. “A criança sobreviveu, ela não.” A mãe de Benedita também passou por um aperto há quinze anos, quando levou uma picada de cobra. Acabou salva com ajuda de um helicóptero da Marinha. Por causa do isolamento de Búzios e Vitória, no início do século XX o governo considerou enviar presos para alguma delas, projeto que não vingou. O encarregado de estudar o local, como engenheiro, foi o escritor Euclides da Cunha. Em seu relatório, ele registrou que Vitória tinha “capacidade para povoamento muitas vezes maior, explicando-se o seu abandono pela distância”.
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Naquela época, os moradores só podiam chegar a Ilhabela remando. A travessia podia durar um dia inteiro. Por isso, o avanço tecnológico mais celebrado até hoje por lá não foi a chegada das televisões, nem da energia solar, há dois anos, nem dos primeiros e poucos telefones celulares, mas a vinda dos primeiros barcos a motor, nos anos 70. Com um deles, o pescador Roberto Costa consegue fazer em “apenas” quatro horas o trajeto até o centro de Ilhabela, aonde vai uma vez por semana comprar gelo para guardar os peixes — não há geladeiras em Vitória. A infraestrutura continua precária e as dificuldades aumentam. O banheiro é no mato. Falta água. Os peixes estão diminuindo. “Tenho muita dor nas costas e no peito, mas o médico só vem uma vez por mês”, reclama Benedita Costa, de 66 anos. Cinco dos oito netos desistiram de viver assim e foram embora.
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No Litoral Sul a população também vem encolhendo. Apenas uma família mora em Juruvaúva, único povoado de Ilha Comprida sem rede elétrica. Os Ramos cultivam ostras, pescam camarão e servem as iguarias a turistas em um pequeno bar. “Antes tinha jogo de futebol de solteiros contra casados. Hoje não dá mais para formar um time”, conta o pescador Durval Ramos, de 53 anos. No município de Cananeia, a Ilha do Cardoso vive situação parecida. Transformada em unidade de conservação em 1962, possui uma extensa área de Mata Atlântica com belas praias e rios. Embora benéfica para preservar a natureza, a mudança de status do local trouxe transtornos para quem morava lá. Não se pode construir uma casa, reformar ou fazer uma roça sem autorização do governo. Os pedidos costumam demorar meses para ser analisados. É proibido levar animais domésticos. Os que chegam driblando a fiscalização são castrados. O veto à pesca e à agricultura fez com que o número de habitantes caísse de 389 para 270 no período. O acentuado aumento do turismo nos últimos dez anos, no entanto, tem mantido a nova geração ali. Noeli Neves, de 32 anos, trabalha como guia ambiental e faz-tudo no bar da família. É o que permite que ela fique onde nasceu. “Gosto de ter silêncio à noite e quero que meus filhos cresçam brincando, sem televisão nem internet. Onde mais conseguiria?”