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Terra de alguém: as milícias que atuam no Brás e loteiam espaços na rua

A polícia investiga casos de tortura, ameaças, sequestros e lavagem de dinheiro no maior polo comercial da América Latina

Por Sérgio Quintella Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
17 jun 2022, 06h00
Imagem mostra ambulantes e pedestres em rua do Brás
Reportagem de janeiro deste ano da Vejinha mostrou como funcionam as milícias que atuam no Brás (Alexandre Battibugli/Veja SP)
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Maior centro de compras popular da América Latina, o Brás recebe anualmente milhões de pessoas, vindas de todas as partes do Brasil, que buscam não só pelas mais de 5 000 lojas, espalhadas por 55 ruas, como procuram pelos cerca de 20 000 vendedores ambulantes (a maioria sem permissão da prefeitura) que comercializam diversos tipos de produto, em especial o segmento de vestuário. Tente andar a pé, de carro ou de ônibus por vias como a Tiers, Oriente, Monsenhor Andrade, Hannemann, entre outras, e perceberá o tamanho da desordem pública 24 horas por dia, exceção feita aos domingos, quando a região fica às moscas.

Uma investigação da Polícia Civil, iniciada em julho do ano passado, em parceria com a prefeitura, revelou que as vias do bairro são loteadas com marcações no chão por pelo menos dois grupos que cobram aluguel e taxa de iluminação (as ligações são clandestinas e feitas em postes irregulares) dos ambulantes. A essas milícias, que dividem os territórios em ala norte e sul, são imputados crimes como organização criminosa, extorsão, tortura, ameaça e lavagem de dinheiro.

No último dia 23 de maio, foram presas doze pessoas acusadas de fazer parte do primeiro bando, da região sul, entre elas Manoel Simião Sabino Neto, 44, presidente de uma associação de concessionários do Circuito das Compras e da Associação Desportiva São Caetano, time de futebol do ABC. Segundo as investigações, o grupo movimentou 50 milhões de reais nos últimos anos com a venda ilegal de boxes dentro do circuito (a Feirinha da Madrugada confinada, que conta com espaço para 6 000 boxes), o loteamento de espaços nas ruas da região e a transação de jogadores.

Imagem mostra homem sentado em uma poltrona

Manoel Sabino: prisão domiciliar

A aparência calma e tranquila do homem vestindo chinelo, calça de agasalho e jaqueta do São Caetano, que se preocupa com os onze remédios que diz precisar tomar para conter os efeitos de uma Covid prolongada, contrasta com a figura que aparece em vídeos gravados em seu próprio celular (e apreendido pela polícia) batendo em homens amarrados e subjugados, ameaçando outro que chamou sua mulher para sair e até falando que está com um estelionatário em sua posse.

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Manoel Sabino, um ex-camelô que morou dos 4 aos 7 anos em um orfanato de Guarulhos, nega (quase) todas as acusações e se diz perseguido pela Polícia Civil. Ele passou dezessete dias detido e foi colocado em prisão domiciliar por questões de saúde, após ter se tornado réu por associação criminosa. “Dormi o tempo todo na ‘praia’ (no chão). Eram treze homens na minha cela, onde caberiam no máximo seis. Todo mundo ali fumava, certamente piorando a minha saúde”, diz Sabino, que falou com a Vejinha em sua casa, em Alphaville, na última terça-feira (14).

imagem mostra homem agredindo outro
Agressão: “Vai apanhar mais” (Reprodução/Veja SP)
imagem mostra homem com o rosto no chão e uma sacola ao lado
Ações violentas (Reprodução/Reprodução)

Depois da prisão de Sabino e de outras pessoas, incluindo sua esposa, Franciely Augustaitis, e o vice presidente do São Caetano, Maurício Reigado, a Polícia Civil abriu na última semana mais seis inquéritos que apuram a prática de lavagem de dinheiro e extorsão. Essa segunda tipificação tem como provas mensagens e vídeos gravados no celular de Sabino. “Têm dois com os olhos vendados aqui. Deram um golpe de 800 mil em um doleiro meu. Parece que o Chinês está vindo trazer o $$$… Tem 30 minutos para trazer, senão vai para o sítio” (leia a transcrição abaixo).

Imagem mostra conversas de WhatsApp
Sequestro “de mentira” (Reprodução/Veja SP)

Em outro vídeo, o mesmo Sabino interpela um homem que havia convidado Franciely para sair. Veja abaixo o diálogo:

— Eu assumo que mandei mensagem.

— Então fala: “Eu sou um talarico”.

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— Eu sou um talarico. Nunca mais vou fazer isso. Por favor, me livra da morte.

— Repete comigo: “Eu sou um bundão”.

— Eu sou um bundão. Eu já sei a pessoa que você é, sei que o buraco é mais embaixo.

— Você tomou uns tapinhas na cara?

— Tomei.

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No primeiro caso, do homem sequestrado, Sabino diz que não participou da ação e que tudo não passou de uma brincadeira com a esposa. “O pátio do Pari (onde fica o Circuito das Compras, uma área de 180 000 metros quadrados) é muito grande, circulam muitas pessoas. Há muitos seguranças lá que não são meus. Eu apenas filmei a ação de longe e dei uma contada de vantagem para a minha esposa.” Sobre a segunda ameaça, a justificativa é no âmbito moral. “Você é homem e sabe que se mexerem com sua família é complicado. Preferi defender a minha integridade a ficar com fama de frouxo.” Outros vídeos encontrados no aparelho, em que pessoas amarradas aparecem apanhando, também serão usados no processo de extorsão.

Imagem mostra dois postes em uma rua sem movimento no Brás
Poste clandestino: prefeitura precisa derrubá-los (Alexandre Battibugli/Veja SP)

Em outra frente, o inquérito de lavagem de dinheiro aponta diversos pagamentos em espécie feitos por Sabino aos jogadores (eles não são investigados) e ao ex-presidente do São Caetano Nairo Ferreira, e também para o que Sabino chama de “politicagem”. Na imagem achada no celular, ele mostra uma arma, dizendo que se tratava do VAR (o árbitro de vídeo), sobre maços de notas de 100 reais. Nesse momento aponta para um segundo revólver, que chama de “o juiz”.

Imagem mostra rua vazia no brás
Marcas do crime: rua do Brás demarcada para camelôs (Alexandre Battibugli/Veja SP)

Sabino diz que os pagamentos aos jogadores e ao ex-dirigente são legítimos. Essa mesma investigação está apurando possíveis pagamentos a agentes públicos (por isso o nome “politicagem”). Uma dessas pessoas trabalha em um alto escalão da Subprefeitura da Mooca e aparece em uma lista apreendida. A relação, segundo o acusado, não é de pagamento de propina, mas de pessoas que estão interessadas em adquirir boxes no Circuito das Compras. Uma empresa de factoring e uma de apostas, que têm a esposa de Sabino como sócia, mas segundo o acusado não estão ativas, também estão na mira dos investigadores.

imagem mostra bancas de camelôs iluminadas por luz furtada
Luz para todos: 15 reais por semana (Reprodução/Reprodução)

A negociação dos boxes no Circuito das Compras, de acordo com Manoel Sabino, é sua principal fonte de renda. Ele nega que atue do lado de fora, com os ambulantes ilegais. Como presidente de uma associação de concessionários, ele negocia a intermediação dos negócios, que também podem ser feitos sem sua atuação. “Eu brigo para que eles (o circuito) baixem o valor do aluguel que as pessoas pagam. Você acha que se eu atuasse do lado de fora, como falam, eu brigaria tanto pelos direitos das pessoas que querem e precisam de um boxe para trabalhar? Me consideram como um mafioso do Brás, mas vejo como uma perseguição contra mim. A quem interessa me tirar da jogada?”

Sem entrar no mérito das investigações pretéritas e futuras, o chefe da 1ª Delegacia Seccional do centro, Roberto Monteiro, afirma que há provas da atuação de Sabino, sim. “São provas robustas, que apresentaremos no curso do processo.”

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Imagem mostra delegado sentado em sua mesa
Roberto Monteiro: provas robustas (Alexandre Battibugli/Veja SP)

Enquanto aguarda as demais fases da investigação, a prefeitura vai estruturar duas grandes operações com a Polícia Militar para reocupar as ruas do Brás, de dia e de noite. Ainda sem data para começar e sob sigilo, a empreitada depende da assinatura de um decreto que vai regulamentar a atuação de PMs na Operação Delegada, o chamado “bico oficial”, em que agentes de folga ganham remuneração extra para trabalhar nas ruas.

Outro desafio da municipalidade é aproveitar as investigações policiais para mirar na distribuição das mercadorias ilegais. “A gestão do prefeito Ricardo Nunes é presente desde o início das investigações. Estamos muito confiantes de que elas apontem a origem e o fluxo dos produtos piratas que são vendidos no Brás. Também queremos chegar a esses”, diz o secretário-executivo Fábio Lepique.

Em outra ponta, o prometido “Boulevard do Brás”, na Rua Tiers, cujas obras deveriam ter começado no fim do ano passado, ainda não saiu do papel. Muito por pressão dos ambulantes que ocupam ilegalmente a via. Outro desafio é investigar os responsáveis pela chamada ala norte do loteamento do Brás e localizar um de seus líderes, um homem conhecido no pedaço como Major. Antes de tudo isso, a derrubada das dezenas de postes de luz clandestinos ajudaria a dar um aspecto de “tomada de território” por parte da administração municipal.

Imagem mostra maços de dinheiro sobre uma mesa e homem de boné vermelho em primeiro plano
Dinheiro em segundo plano (Reprodução/Reprodução)

“Não sou mafioso”.

Ex-camelô que dirige associação e time do ABC se diz perseguido pela polícia.

A polícia diz que o senhor comanda um dos grupos criminosos que atuam no Brás. O senhor é um mafioso como dizem?

Não, de maneira alguma. Me nomearam como um mafioso do Brás, mas já passei por diversos processos na Justiça estadual e federal e nunca me qualificaram como mafioso. A polícia veio na minha casa e fez uma operação pirotécnica, com repórteres de televisão entrando no meu condomínio. Quem autorizou a entrada deles?

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As investigações encontraram grande quantidade de dinheiro filmada em seu celular.

Muitas dessas fotos que o delegado divulgou foram tiradas da internet (ele mostra alguns exemplos).

Imagem mostra maços de dinheiro sobre uma mesa
Dinheiro na mesa (Reprodução/Reprodução)

Mas e as imagens em que o senhor aparece, as que estarão na nossa reportagem?

Na Feira da Madrugada circula muito dinheiro em espécie. Mas muitas das notas que eu apareço filmando não são minhas, eu apenas faço a intermediação dos negócios. E ganho uma comissão por isso.

O senhor fala que o dinheiro é para a “politicagem”. A quais políticos o senhor pagou propina?

A nenhum político. Acharam uma lista contendo nomes de pessoas interessadas na locação de espaços dentro da Feira da Madrugada.

E os vídeos que mostram o senhor ameaçando e subjugando várias pessoas? O senhor é um homem violento, um torturador?

Não, apenas defendo meus próprios direitos. Mas, no caso de sequestro, o que houve? Eu quis apenas impressionar a minha esposa. Não participei de nada.

Outra acusação é de que o senhor seria membro do Primeiro Comando da Capital (PCC).

Nego com veemência. Os policiais foram às ruas e a primeira coisa que perguntavam era sobre mim. Mas nunca me chamaram para depor.

O senhor usa o São Caetano para lavar dinheiro? E os 80 000 reais que foram pagos ao ex-presidente Nairo Ferreira?

Não me recordo desse pagamento específico, mas deve ter sido algum pagamento de contas. (Procurado, Nairo Ferreira não comentou o pagamento.)

Imagem mostra mulher com maço de dinheiro nas mãos
Olho no dinheiro: esposa também foi presa e solta (Reprodução/Reprodução)

 

 

 

 

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