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Limpando o celular

Por Ivan Angelo
Atualizado em 5 dez 2016, 12h52 - Publicado em 23 jan 2015, 19h36

O nome Ana e o número de um telefone aparecem na telinha. Já faz tanto tempo que o adicionei, não deve valer mais. Algum deus estará tomando conta de Ana? Nordestina, viajando em sonhos de atriz e de autora, bonitinha, perdidinha. Protejam, deuses, os sonhos dos jovens, que deles dependemos, para sobreviver e ter esperanças. Está entregue, amém, apago. Número do plantão de cardiologia do Hospital do Coração. Apago. Adeus, médicos, obrigado pela atenção, passou o pânico, eu me acostumei com São Paulo. Não ligo há tantos anos para Selma, por que iria ligar agora? Tinha o costume incômodo de chegar sem avisar, quantas vezes de blusa transparente, sem sutiã, desconfio que só para dar o que falar no antigo prédio onde eu morava. Tudo nela era bonito, e quando falava acrescentava à beleza a voz, com que ganhava a vida fazendo dublagem. Deus, terrível nas ironias, deu-lhe um pequenino tumor nas cordas vocais. Fala aos cochichos e já não é tão bonita. Seria impossível ouvi-la no celular. Vacilo, mas não apago. O profeta Ezequiel viu uma grande roda cheia de luzes e seres, girando e deslizando no espaço — alguns interpretam essa visão como um disco voador, 2 600 anos atrás. Meu amigo Ezequiel, quando chapado, também via rodas de fogo girando no ar, e eu dizia que ele era a minha única possibilidade de ser levado de carona numa viagem espacial. Perdi a carona, ele morreu. Com tristeza, apago o nome e o número. Outro. Quando a morte começa a frequentar nossa lista de contatos, pensamos no nosso nome no celular dos amigos… Apago Helena, fantástica fazedora de quibes.

Apago Denise, que me puxou pela mão sem uma palavra quando o elevador lotado parou no 8º. Achei-a muito prêt-à-porter. Quem é, quem é, quem é, fiquei pensando com o nome de dona Telma aceso na telinha, uma notação entre parênteses: saquinho de lixo. Lembro: uma mulher no ônibus com dois filhos devoradores: comiam banana, chocolate, pipoca, e ela não deixava que jogassem uma migalha no chão, recolhia embalagens e restos e os colocava dentro de um saquinho plástico, e explicou, diante do meu olhar indiscreto: andava para todo canto com um saquinho em que recolhia o lixo que produziam, e que se todo mundo fizesse assim a cidade não estaria suja como está. Anotei seu nome e telefone para sugerir uma reportagem e me esqueci. Liguei para reencontrá-la, ninguém atendeu. Lamentando ter perdido a cidadã exemplar, apago. Apago Chumbinho. Esqueci o nome, ficou anotado o apelido, delicioso e adequado. Vamos admitir: há gordinhas lindas. E o corolário: não há magrelas confortáveis. José vendia livros só de literatura e arte, e, não satisfeito em vendê-los, lia-os, discutia-os, propagandeava os que amava, promovia leituras coletivas, organizava círculos domésticos de leitores. Aparecia com insistência quase diária durante semanas, sumia meses seguidos. Faz alguns anos que não aparece, pode ter voltado para o interior. Apago. Se voltar, saberá onde me encontrar. Cláudio. Éramos amigos até aquelas duas semanas que precederam a última eleição. De repente, as conversas tornaram-se penosas, “como é que pode, você, uma pessoa bem informada…”; instalaram-se entre nós palavras indesculpáveis; posições que nunca foram divisórias na nossa convivência ganharam peso absurdo; opiniões geraram anátemas, e ficamos nisso: inconciliáveis. Lembrei-me do soneto de Vinícius de Moraes, aquele que diz que de repente, não mais que de repente, “fez-se do amigo próximo o distante”…  Apago. Meu irmão não quis se tratar de um câncer. Achava a morte menos trabalhosa. Apagou-se.

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