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Contra as estatísticas: histórias de mulheres negras que chegaram ao topo

Vejinha conversou com 11 profissionais que enfrentaram os percalços do racismo e da desigualdade para conseguir o sonhado sucesso na carreira

Por Sérgio Quintella e Júlia Rodrigues
5 abr 2024, 06h00

Triste herança do período colonial, a desigualdade social é um dos principais obstáculos para a melhora na qualidade de vida de milhões de pessoas que se encontram há séculos abaixo da linha da pobreza. Quando a lupa mira um perfil específico no mercado de trabalho, os índices são estarrecedores. Uma em cada seis mulheres negras ocupadas trabalha como empregada doméstica. Em média, segundo dados do Dieese, as domésticas sem carteira assinada recebem menos de um salário mínimo por mês, atualmente em 1 412 reais. Na outra ponta, outro levantamento, feito pela 99jobs, com 257 ocupantes de cargos de liderança, aponta que em 60% dos casos não há outra líder negra na empresa.

A despeito do abismo histórico que retira das ruas um número incontável de talentos, há muitos casos de mulheres que obtiveram êxitos nas carreiras, no setor público e no privado. A prefeitura de São Paulo merece destaque ao nomear três mulheres negras (duas estão de saída) para ocupar uma cadeira, algo inédito na história da metrópole. Vejinha conversou com elas e com outras profissionais que enfrentaram todos os percalços possíveis para conseguir obter o sonhado sucesso profissional, o que a grande maioria de mulheres negras talvez nunca consiga.

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Gráfico com dados do Dieese (Arte/Veja SP)

“Dá vontade de brigar, mas eu não tenho esse direito e preciso dialogar.”

Eunice Prudente, 77, secretária municipal de Justiça

Única professora negra na quase bicentenária Faculdade de Direito do Largo São Francisco, da USP, Eunice Prudente é uma das 27 mulheres do seu campus, em um universo de cerca de 300 docentes homens. Seu primeiro contato com a instituição ocorreu há mais de cinquenta anos, durante um passeio pelo então pujante centro histórico da maior metrópole do país. “Vi uma manifestação de jovens na frente da faculdade e fiquei emocionada. Eles falavam que não tinham medo de nada”, relembra a professora, que também acumula o cargo de secretária municipal de Justiça.

Nomeada pelo então prefeito Bruno Covas (PSDB), no início do atual mandato, ela permaneceu no posto com a assunção de Ricardo Nunes (MDB), após o falecimento do titular, em maio de 2021. O principal motivo para Eunice ingressar no serviço público, ainda nos anos 1970, foi a dificuldade em conseguir uma vaga de trabalho em companhias privadas. “Eu prestava os exames para admissão em empresas e quando saíamos eu ouvia meus colegas falando que não tinham ido bem nas provas, ao contrário de mim, que havia acertado quase todas. Porém, eram eles, os brancos, os escolhidos para as vagas. Isso ocorreu diversas vezes”, relata.

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Na chegada à USP, em 1985, a professora tinha o mestrado concluído e se tornou doutora em 1996. Agora, depois de décadas de serviços prestados dentro e fora das bancas acadêmicas, a também secretária não enfrenta nenhum tipo de racismo, certo? “Errado, pois, embora eu seja respeitada pela maioria, sempre tem aluno que provoca para saber o quanto eu entendo do assunto. Mas a psicanálise me ensinou a enfrentar e resolver essas situações de forma firme, sem brigar, embora às vezes dê vontade.”

“Não dá para olhar para a população preta apenas em novembro.”

Adriana Barbosa, 46, criadora do Festival Feira Preta

Entre os dias 3 e 5 de maio, o Festival Feira Preta ocupa um espaço de 220 000 metros quadrados no Parque Ibirapuera com um novo formato. Com o tema “Felicidade É a Nossa Revolução”, o evento deve receber cerca de 30 000 pessoas. A principal mudança é a data, já que o festival sempre aconteceu em novembro, mês da Consciência Negra. “Não dá para olhar para a população preta em um único mês, sobretudo quando se trata de geração de renda”, diz Adriana Barbosa, fundadora do evento.

A programação terá a tradicional feira de empreendedores, com 170 empresas de ramos como beleza, gastronomia e bem-estar, além de oficinas, palestras e shows de Preta Gil, Luedji Luna, Tasha & Tracie, entre outros. Ao longo de seus 22 anos, o festival acompanhou o progresso da questão racial no país. “Desde o fim da escravidão, as mulheres negras compõem boa parte dos empreendedores do Brasil. Hoje, há dados sobre o consumo e o empreendedorismo, e precisamos tirar a lupa do assistencialismo e começar a pensar em desenvolvimento econômico”, conclui.

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Adriana Barbosa (Evensen Photografy/Divulgação)

“Quando há reunião com homens, preciso falar firme para me posicionar.”

Aline Torres, 38, secretária municipal de Cultura

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Militante da juventude do PSDB desde a adolescência, Aline atuou nas duas pontas do funcionalismo público. “Já fui estagiária, assessora, diretora e agora secretária”, diz a chefe da Cultura, que marcou para sábado (6) sua despedida do cargo, para concorrer ao posto de vereadora, agora pelo MDB. A experiência obtida em duas décadas na base migrou para a pasta, mas engana-se quem pensa que a relação com um setor majoritariamente masculino e branco foi tranquila. “Quando coordeno programas que envolvem outras secretarias, com muitos homens, quase nunca consigo me posicionar”, diz Aline, sem transformar isso em problemas maiores.

“Sei que é uma questão estrutural e também sei que, para conseguir me posicionar, preciso falar mais firme.” Do seu trabalho como a primeira secretária negra de Cultura da cidade, Aline vai levar a importância em passar boas mensagens. “As pessoas me falam que elas não precisam ser empregadas domésticas, elas podem ser o que quiserem.”

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A secretária municipal de Cultura Aline Torres (Agliberto Lima/Veja SP)

“Eu represento o ‘é possível’ para as mulheres negras no Brasil.”

Rachel Maia, 53, CEO da RM Company

Rachel Maia, a primeira mulher negra a alcançar o cargo de CEO em uma empresa global no Brasil, ainda é inspiração para outras líderes que vieram depois. Além disso, a empresária se dedica a um projeto que visa a mudar a realidade de pessoas como ela. A ONG Capacita-me oferece cursos gratuitos com foco no mercado de trabalho. “No primeiro feirão de empregabilidade que fizemos, 48% dos participantes saíram contratados”, conta. Já despontaram da iniciativa várias jovens negras com grandes talentos. “Recentemente, uma ex-aluna lançou um livro. Outra trabalha para a ONG e mora em Londres”, orgulha-se.

Desde 2018, Rachel, que passou pela diretoria de marcas de luxo como Pandora, Tiffany & Co. e Lacoste, toca sua própria empresa, a RM Company, de consultoria em sustentabilidade e diversidade para negócios. “Decidi abranger um escopo maior e influenciar mais pessoas positivamente”, diz. Para a empresária, o peso da representatividade que ela carrega tem dois lados. “As pessoas me cobram para levar outras mulheres pretas para cargos de liderança. É desafiador, mas eu faço com amor, pois a história foi injusta com esse gênero e essa raça”, diz.

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Rachel Maia, primeira mulher negra a alcançar o cargo de CEO em uma empresa global no Brasil (Renato Pinheiro/Divulgação)

O ministério atua em várias frentes para enfrentar essa realidade, a partir da qualificação pela educação, com a renovação da Lei de Cotas nas universidades, e por meio de editais de bolsas para pesquisadoras negras fazerem intercâmbio, além de preparação específica para concursos.

Anielle Franco, ministra da Igualdade Racial
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Anielle Franco, ministra da Igualdade Racial (Ricardo Stuckert/Divulgação)

“A transformação acontece quando percebemos pessoas negras em todos os espaços.”

Chantal Pillet, 40, advogada

Mesmo em momentos de lazer, quando faz aulas na Hípica Paulista, no Brooklin, Chantal Pillet depara com a desigualdade. “Eu sou a única mulher negra aluna de lá e isso causa uma transformação no lugar”, diz. Desde jovem, a advogada se acostumou a ser a única negra nos espaços em que frequentava, principalmente no mundo corporativo. Hoje, após cinco anos como diretora de compliance do Grupo Carrefour, cargo que deixou em agosto passado, ela é sócia do Blanchet Advogados, um dos maiores escritórios especializados em governança e estruturação de negócios do país.

Diariamente, ela atua em comitês consultivos, que aconselham lideranças de grandes empresas em vários tópicos, inclusive em diversidade e racismo. “Não adianta ter uma porcentagem de pessoas negras na empresa se as lideranças do topo, como os conselhos, são homens brancos. A grande transformação acontece quando percebemos pessoas como nós em todos os espaços”, defende.

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A advogada especializada em governança Chantal Pillet (Nelson Toledo/Divulgação)

“Racismo é um crime inaceitável.”

Luana Alves, 30, vereadora paulistana

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Parlamentar pelo PSOL, Luana Alves foi a responsável por um marco histórico na Câmara Municipal paulistana. Em setembro de 2023, sua denúncia à Corregedoria da Casa resultou na primeira cassação por racismo de um vereador, Camilo Cristófaro (Avante). A votação, que acabou na condenação por 47 a 0 foi acompanhada por protestos antirracistas do lado de fora. O caso que gerou a punição ocorreu um ano antes, durante uma sessão da CPI dos Aplicativos.

Na ocasião, Cristófaro atuava de forma remota e disse a uma pessoa que estava ao seu lado, em um carro: “Eles não lavaram nem a calçada, é coisa de preto, né?”. Poucas horas depois, Luana e outros vereadores iniciaram os trâmites para uma punição exemplar. “Os protestos foram fundamentais, pois, se não fosse a pressão popular, ele teria saído impune”, lembra. Na época, Camilo disse que se referia a uma conversa com um amigo. “Muita gente acabou me conhecendo depois desse episódio. Conseguimos trazer mais políticas antirracistas para a Câmara depois disso”, conclui.

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A vereadora Luana Alves (Rafael Gonzaga/Divulgação)

“Passei anos sem poder usar o cabelo da forma como eu queria.”

Elza Paulina, 52, secretária municipal de Segurança Urbana

Empregada doméstica dos 12 aos 19 anos, em Marília, no interior, Elza Paulina veio para a capital com o intuito de trabalhar com segurança pública. Em 1986, foi aprovada no primeiro concurso para a Guarda Civil Metropolitana. Na época, as mulheres representavam 30% do efetivo da GCM, com grande representatividade de pretas e pardas. Apesar disso, o regimento interno da corporação privilegiava as mulheres brancas. “Os coques eram permitidos, mas como uma negra, com o cabelo não liso, faz para prendê-lo? Não dava. Quando cheguei, falaram que meu cabelo parecia um capacete e que eu deveria cortar. Usei o corte ‘joãozinho’ por muitos anos.”

As mudanças na instituição começaram em 2019, quando Elza assumiu o comando da guarda e passou a alterar o regimento. “Autorizamos até aplique nos cabelos”, comemora a secretária, que deixa o posto no sábado (6) para concorrer a uma vaga na Câmara Municipal.

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Elza Paulina, secretária municipal de Segurança Urbana (Agliberto Lima/Veja SP)

“Fui impedida de usar o banheiro feminino da academia.”

Raquel Virgínia, 35, CEO da Diversitech Nhaí

No dia 11 de maio, o Parque Ibirapuera vai receber a primeira edição do Transformas, evento gratuito que promove a inclusão de corpos diversos no esporte, como a comunidade LGBTQIA+, pessoas gordas e com deficiência. É uma iniciativa da Nhaí, startup que trabalha com projetos de diversidade para marcas. A inspiração veio de experiências pessoais da própria fundadora, Raquel Virgínia, que é trans. “Já fui impedida de usar o banheiro da academia, porque disseram que as alunas se sentiam constrangidas. Por isso, o slogan do Transformas é ‘Aqui todo mundo joga’ ”, conta Raquel. Das 6 da manhã às 9 da noite, a área externa do auditório vai receber aulas de modalidades como vôlei, basquete e atletismo. Haverá também rodas de conversa e shows.

Nascida na periferia da Zona Sul da capital, Raquel ficou conhecida por integrar a banda As Baías, quando se tornou a primeira mulher trans a ser indicada a um Grammy Latino, em 2019. Agora, além de dirigir a Nhaí, ela se prepara para estrear um álbum solo em junho.

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A empresária e cantora Raquel Virgínia (Diego Padgurschi/Divulgação)

“Conseguimos às vezes vencer o racismo com os ensinamentos de nossos ancestrais.”

Luana Xavier, 36, atriz e apresentadora

O monólogo Pequeno Manual Antirracista — A Peça, primeira adaptação teatral de uma obra da filósofa Djamila Ribeiro, está em cartaz no Centro Cultural São Paulo até 14 de abril. Em cena, a atriz e apresentadora Luana Xavier vive Bell, uma professora de uma escola pública da periferia que apresenta, com ironia e espontaneidade, um manual sobre o racismo para seus alunos (no caso, a plateia). “Aceitei a proposta sem nem ler o texto. É uma peça que todos devem assistir, principalmente os não negros”, diz a atriz em seu primeiro monólogo dramático.

A vocação aflorou logo na infância, inspirada pela avó, Chica Xavier (1932-2020), uma das maiores atrizes negras do país, que teve papéis em várias novelas de sucesso. “Algo que a Bell traz muito forte na peça é a ancestralidade, pois ela tem uma relação grande com a avó dela. Isso foi muito importante para mim, pois sempre tive a minha avó como a maior referência na vida”, celebra.

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A atriz e apresentadora Luana Xavier, estrela do monólogo ‘Pequeno Manual Antirracista — A Peça’ (Magali Moraes/Divulgação)

“O meu lugar é visto como não legítimo.”

Flávia Martins de Carvalho, 49, juíza no TJ de São Paulo e primeira ouvidora do STF

Formada em jornalismo e em direito, Flávia Carvalho refuta a tese de que basta querer para chegar lá. “Essa ideia passa a falsa impressão de que existe meritocracia no nosso país e coloca no indivíduo uma responsabilidade muito grande”, diz a magistrada, que está em Brasília desde 2021, cedida pelo Tribunal de Justiça paulista, para atuar como juíza-auxiliar no gabinete do ministro Luís Roberto Barroso. Após o ingresso de Barroso na Presidência da corte, Flávia foi indicada para a recém-criada Ouvidoria. Ali, recebe demandas internas e externas.

A despeito do posto atingido, a juíza diz que seu lugar é sempre visto como não legítimo. “Esse é o olhar do racismo, a mente da misoginia. Sofro um racismo sofisticado até hoje e minha conduta é medida de forma diferente da de um homem branco. Ele tem a competência presumida. Eu, não. Tenho que provar todo dia que sou digna de estar neste lugar.”

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Flávia Martins de Carvalho, primeira ouvidora do STF (Eduardo Bresciani/Divulgação)

“Perguntam: ‘Cadê o juiz?’ ”

Hallana Duarte Miranda, 34, juíza na comarca de Eldorado, no interior

Filha de uma empregada doméstica e de um lavrador, Hallana aprendeu a ler com os pais, em um sítio de Apiaí, no Vale do Ribeira, uma das regiões mais pobres do rico estado paulista. Aos 7 anos, ela e a família se mudaram para a cidade, para ter acesso ao ensino público. Formada em direito no Paraná, passou no concurso para o TJ paulista em 2019 e tomou posse dois anos depois. Seu local escolhido para atuar não poderia ser outro. “Sou juíza do meu próprio lugar”, diz.

Embora conheça cada palmo das estradas locais e seja reconhecida por sua atuação, Hallana afirma que é constantemente parada pela polícia praticamente nos mesmos lugares. “Não dou carteirada. Paro, pego o documento do carro, eles veem que sou juíza, pedem desculpa e me liberam. Mas na semana seguinte me param de novo”, afirma. No tribunal, a magistrada, que desenvolveu um programa para receber alunos da região e mostrar o sistema de justiça, diz ser mais respeitada, mas não é incomum testemunhas estranharem sua presença. “Perguntam: ‘Cadê o juiz?’.”

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Hallana Duarte Miranda, juíza do interior do estado (Paulo Santana/TJSP/Divulgação)

Publicado em VEJA São Paulo de 5 de abril de 2024, edição nº 2887

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