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Fura-Fila: outro trambolho na paisagem paulistana

Ele enfim começou a circular, cumprindo o previsível destino de enganar os incautos, espalhar feiúra e rasgar nova cicatriz no maltratado tecido urbano

Por Roberto Pompeu de Toledo*
Atualizado em 5 dez 2016, 19h22 - Publicado em 18 set 2009, 20h34

Mais de dez anos depois de concebido pelo renomado urbanista Duda Mendonça, o Fura-Fila enfim começou a circular, cumprindo o previsível destino de enganar os incautos, espalhar feiúra e rasgar nova cicatriz no maltratado tecido urbano de São Paulo. Desde o dia 22, ele funciona em caráter experimental, das 10 às 14 horas, sem cobrar passagem, percorrendo em vinte minutos o trecho de 8 quilômetros entre o Parque Dom Pedro II, no centro, e o Sacomã, na Zona Sul. O Fura-Fila engana os incautos porque é uma mera via exclusiva de ônibus em versão pirotécnica. Espalha feiúra porque, pendurado nas alturas, tal uma montanha-russa que, bêbada, tivesse escapado do Playcenter, faz figura de mais um corpo estranho a poluir a paisagem da cidade. Rasga uma cicatriz porque, como é característico das vias elevadas, arranha e separa, degrada e desorganiza, em vez de integrar e harmonizar os espaços urbanos. São Paulo ganhou um novo Minhocão. Perdão, Fura-Fila não. O novo apelido é Expresso Tiradentes. Fura-Fila, um nome esperto, de quem gosta de levar vantagem em tudo, bem ao estilo malufo-mendonciano, foi como se batizou o animal na campanha que, em 1996, elegeu Celso Pitta prefeito. Ele era apresentado, nos comerciais do candidato, em traços não muito distantes dos atribuídos aos foguetes que os desenhistas futurólogos imaginam ligarão Marte a Vênus, com escala na Terra. Ao impulso da imaginação mendonciana e da filosofia malufista, São Paulo ingressava na era espacial. Em comparação, os ônibus que efetivamente foram escalados para o serviço, iguais aos que operam normalmente nas ruas, são chinfrins. A partir do dia 9, encerra-se a fase experimental e o expresso funcionará das 4 horas à meia-noite cobrando passagem de 2,30 reais, igual à dos ônibus comuns e do metrô. O trecho ora em funcionamento será complementado, a partir do próximo ano, com uma extensão de 24 quilômetros até Cidade Tiradentes, no extremo leste da cidade. O delírio malufista previa um sistema que descreveria um anel de 70 quilômetros em torno do centro. Celso Pitta começou a obra, enterrou nela 270 milhões de reais e não chegou a lugar algum. A administração Marta Suplicy, às voltas com esqueletos de obra plantados à margem da Avenida do Estado, investiu mais 330 milhões, sem muita convicção. Também não chegou a nenhum lugar, mas ao menos deu um rumo mais útil ao empreendimento – arquivou a idéia de um círculo em torno do centro e optou por uma ligação expressa entre o centro e a Zona Leste. A administração Serra-Kassab confirmou a opção, e com isso – este o lado bom da história – Cidade Tiradentes, uma das regiões mais populosas, pobres e problemáticas da cidade, ganhará uma ligação rápida com a área central. O problema é: precisava ser desse jeito? Resposta: não. Faixas exclusivas, no nível do chão, dariam conta do recado. A vantagem de um sistema aéreo, como em boa parte é o ex-Fura-Fila, está em não enfrentar cruzamentos. A desvantagem é que um veículo sobre pneus, trafegando lá em cima, precisa ir devagar. Os cuidados com a segurança impõem-se com mais força do que se o veículo viajasse preso aos trilhos, como os trens (ou as montanhas-russas). A velocidade máxima é de 40 quilômetros por hora, enquanto o ônibus no chão, num corredor exclusivo, pode chegar a 50. A insensatez de inventar um sistema aéreo de ônibus completa-se com o desafio que será, para os passageiros, subir até as plataformas de embarque. Haverá elevadores, mas claro que nem de longe eles suportarão a demanda. A grande maioria terá mesmo de escalar compridas e altas rampas em espiral. O trecho entre o Parque Dom Pedro II e o Sacomã segue o leito do Rio Tamanduateí. Pobre Tamanduateí. Antes da explosão urbana do século XX, ele era bonito – sim, bonito! Entre outros depoimentos, temos o do naturalista Auguste de Saint-Hilaire, que visitou a cidade em 1822. O governo provincial ficava no Pátio do Colégio, no edifício que servira de colégio aos jesuítas. Escreveu Saint-Hilaire: “Das janelas do palácio que dão para os campos descortina-se uma vista maravilhosa (…). Abaixo da cidade vê-se o Tamandataí (sic), que vai coleando por uma campina semi-alagada (novembro), no fim da qual se estendem os pastos pontilhados de tufos de árvores baixas”. A Rua Boa Vista, no centro velho da cidade, tem esse nome porque dali se tinha a vista descrita pelo francês. O pobre Tamanduateí, um rio histórico, cuja proximidade determinou a escolha do local em que foi plantada a cidade, estava destinado a sofrer um massacre. Sucessivas retificações em seu curso acabaram com as sinuosidades, antes cantadas como graciosas. Virou um retão. Canalizaram-no, e foi como prender um pássaro na gaiola. Seu volume foi minguando. Cercaram-no de pistas para automóveis até bem junto às margens. Na década de 70, sofreu a mais inominável das agressões, quando simplesmente lhe tamparam um pedaço. O urbanista italiano Leonardo Benevolo, ao sobrevoar a cidade com o arquiteto Benedito Lima de Toledo e dar com aquilo, ficou perplexo: “Mas vocês vão tampar o rio?!”. São Paulo tem uma relação estranha com as águas. Ao mesmo tempo em que sofre de histórica nostalgia do mar, maltrata o que lhe coube de água como mãe perversa. Grandes avenidas foram construídas em fundos de vale nos quais corriam riachos. Até o Ipiranga de margens outrora plácidas foi condenado a esconder-se debaixo do asfalto. Em outras cidades, os rios, além de embelezá-las, servem de pontos de referência e organizam o espaço urbano. Em São Paulo eles são sepultados para dar mais espaço aos carros. O Expresso Tiradentes é a mais recente agressão contra o Tamanduateí. No início da viagem, é exatamente o tampão sobre o rio que lhe serve de leito. Depois alça vôo e, nos próximos 5 quilômetros, permanecerá na pista suspensa sobre os pilotis, altos de até 15 metros, plantados à margem do rio. Com cores fortes – um amarelão na pista, nas rampas e passarelas e um azulão nas estações –, a engenhoca sobressai como nova dona do pedaço. Lá embaixo fica um Tamanduateí amiudado e acovardado. É um retrato de São Paulo. Multidões de carros passando de um lado, outras multidões do outro, em cima um ônibus voador e, no meio da balbúrdia, o rio reduzido à miséria de um inimigo aniquilado. O ex-Fura-Fila mostra a que extremos pode chegar a doença brasileira da marquetagem na política. Nasceu da empulhação de um publicitário. Já que foi tão alardeado na campanha, teve de ser transformado em obra. Não tendo sido terminado pelo candidato eleito à sua sombra, legou aos sucessores o dilema de ou destruir o que já fora começado ou lhe dar algum destino. Entre duas alternativas ruins, optou-se pela segunda. Na brincadeira, aos 270 milhões de Pitta somaram-se os 330 milhões de Marta Suplicy e os 600 milhões de Serra-Kassab (entre os 150 milhões já investidos e os 450 milhões a investir), para concluir a obra. Total: 1,2 bilhão de reais. Um dinheirão mal aplicado e um trambolho legado à cidade, tudo nascido de uma trêfega fantasia de época eleitoral.* Roberto Pompeu de Toledo é colunista de VEJA e autor de A Capital da Solidão – Uma História de São Paulo das Origens a 1900.

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