Favela reconstruída com verba privada servirá de modelo para outras áreas
Comunidade com 200 famílias ganhou novo nome e será "reinaugurada". Parceria da ONG Gerando Falcões com governo estadual replicará ideia nos próximos meses
Até o nome mudou. A antiga favela Boca do Sapo, em Ferraz de Vasconcelos, município contíguo ao extremo da Zona Leste paulistana, agora se chama Favela dos Sonhos.
É a pincelada de acabamento de um projeto iniciado em janeiro de 2022 que reformulou totalmente a comunidade de cerca de 200 famílias. Feita pela ONG Gerando Falcões, a iniciativa usou 7 milhões de reais de doações e parcerias privadas. Será concluída em junho e replicada em outras áreas carentes da capital nos próximos meses.
As mudanças no bairro vão desde o chão, onde a lama deu lugar a bloquetes de concreto, até os céus, agora iluminados por trinta postes de energia solar (doados pela EDP e pela ONG Litro de Luz) e com dez pontos de wi-fi (cortesia da Vip Telecom).
Chegam, na verdade, além de onde a vista alcança. O desemprego atingia 75% da comunidade; agora, 96% dos moradores trabalham, graças ao mapeamento de vagas, à capacitação e à “ponte” feita pela Gerando Falcões com empresas da região, uma das mais carentes do estado.
A primeira experiência do projeto, que leva o nome de Favela 3D (“digna, digital e desenvolvida”), foi feita pela Gerando Falcões em São José do Rio Preto, no interior paulista. Iniciado em 2021, repaginou a Favela Marte, onde moram 240 famílias.
“Deu certo, mas era um modelo caro, custou 58 milhões de reais. Não seria possível aplicá-lo em escala”, diz Edu Lyra, 35, fundador da ONG. Optou-se, então, por um formato mais “pé no chão”, testado na Favela dos Sonhos e em outras duas — uma no Rio de Janeiro e a outra em Maceió, ambas em reconstrução.
Enquanto a Favela Marte recebeu casas de alvenaria e tubulações de saneamento básico, por exemplo, as novas áreas usaram soluções mais baratas, como casas de material reciclável e biodigestores para tratar o esgoto.
Na Favela dos Sonhos, são 23 biodigestores, que dão conta de 50%do saneamento da comunidade — eles limpam os despejos antes de serem lançados no córrego local, que corre a céu aberto e é bastante poluído. Com a nova abordagem, a ONG promoveu as mudanças no bairro com 12% do custo da experiência feita no interior.
No início de abril, a Gerando Falcões assinou um acordo com o governo de São Paulo para levar o novo modelo a mais nove favelas do estado, das quais sete ficam na região metropolitana da capital. “Até outubro, pelo menos metade delas entra na fase de execução”, afirma Edu.
O custo, de cerca de 6 milhões cada uma, será dividido entre os cofres público e privado. Os locais incluem a favela Haiti, na Vila Prudente, e regiões carentes de Guarulhos. “A previsão é que o nosso formato se torne uma política de governo”, diz Nina Scheliga, diretora de tecnologias sociais da ONG.
Na Favela dos Sonhos, um protótipo do modelo, os recursos foram só privados. A maior parte, 5 milhões de reais, veio de uma doação de MacKenzie Scott, ex-esposa de Jeff Bezos, o fundador da Amazon — ao todo, a bilionária americana repassou 25 milhões à ONG em 2022.
Os outros 2 milhões são parcerias com empresas: a Colgate entrou com oito casas, o Fleury instalou uma cabine de telemedicina e assim por diante.
“Fazemos em média 48 consultas por mês (o equipamento opera desde setembro) e, em 86% dos casos, o problema é resolvido no próprio atendimento”, diz Daniel Périgo, gerente-sênior de ESG do Grupo Fleury. “Para nós, é um aprendizado importante sobre uma classe social não atendida pela marca, o que no futuro pode ser uma oportunidade”, explica.
Desde que criou a Gerando Falcões, em 2013, Edu mostrou uma capacidade incomum para atrair o dinheiro de grandes empresários. Na fase inicial do Favela 3D, arrecadou mais de 100 milhões de reais, pelo menos a metade de doações privadas. “Tem dinheiro da família Diniz (de Abilio, fundador do Pão de Açúcar), dos Setubal (do Itaú), de Jorge Paulo Lemann (da Ambev)”, conta.
Nascido em uma favela de Guarulhos, filho de uma diarista e de um pai que chegou a ser preso por roubo a banco, ele assimilou um discurso que agradou ao andar de cima. “O Brasil não sabe a solução para a pobreza. Pedi que me deixassem tentar e falhar, que financiassem meus erros, para descobrirmos as soluções”, conta.
De lá para cá, viajou o mundo atrás de ideias — inspirou-se principalmente na bem-sucedida experiência de Medellín, na Colômbia — e criou uma rede de 1 300 líderes sociais nas comunidades brasileiras.
“Temos um plano, feito com a consultoria Accenture, de fazer 1 000 Favelas 3D no país nos próximos dez anos, ao custo de 5 bilhões de reais. E vamos fazer”, afirma.
A ONG desenvolve um software para gerir a reconstrução de áreas carentes, que já custou mais de 15 milhões e será doado a ONGs e governos. As inovações tecnológicas tiveram um papel importante na Favela dos Sonhos. Ali as casas não têm sequer CEP para receber encomendas.
Além disso, os comércios eletrônicos não se aventuravam a entrar na comunidade. Uma startup de entregas locais, chamada naPorta, levou à região um “CEP digital” criado pelo Google. A solução, integrada aos principais e-commerces, permite que compras on-line cheguem aos moradores.
“Realizamos entre 500 e 600 entregas por mês na Favela dos Sonhos e arredores, feitas de bicicleta por jovens da região”, diz Katrine Scomparin, 28, cofundadora do negócio, que recebeu 250 000 reais do gigante do Vale do Silício para disseminar a tecnologia — um novo contêiner da marca será inaugurado em maio na Brasilândia, Zona Norte.
Em junho, quando a favela for “reinaugurada”, a Gerando Falcões passará a gestão do projeto para uma ONG local, a Decolar. “Tivemos um ano de treinamento”, diz a diretora Carliene Ferreira, 32.
Pode-se discutir se o modelo dará certo em escala — e, como Edu previu, erros foram detectados no percurso. “Há moradores que não se adaptam às novas casas, ou a rotinas como pagar contas de água e luz”, ele diz.
Mas, enquanto se debate, a vida de muita gente já mudou. “Queria vender o barraco e sair do bairro”, diz Aline Melquíades, 37, moradora da Favela dos Sonhos com as três filhas. “Agora, todo mundo quer morar aqui. Tive oferta de 200 000 reais pela casa, mas não quero mais vender.”
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Publicado em VEJA São Paulo de 10 de maio de 2023, edição nº 2840