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Evocação

Por Ivan Angelo
Atualizado em 5 dez 2016, 19h45 - Publicado em 18 set 2009, 20h18

Onde está aquele menino? Evocação é mais do que memória, pouca coisa mais. Acrescenta à lembrança um sentimento de simpatia que transborda para o rosto; a atenção se ausenta, os olhos já não fixam o presente, os ouvidos se fecham. A pequena fuga para o passado faz brotar a pergunta: onde está? Muitas vezes é a nós mesmos que buscamos. Onde está, em que espelho da memória se fixou a imagem daquele menino magro, testando o físico em pose de halterofilista?

Onde está aquela menina que não o beijava, só a ele não beijava, mas que o olhava provocadora durante algum beijo?

Onde estão aqueles gibis, que ele guardava numa caixa debaixo da cama? Mandrake fazia um gesto hipnótico e o revólver do bandido virava uma flor, um adolescente gritava shazam e tornava-se o poderoso Capitão Marvel, Brucutu viajava no tempo para lá e para cá, Flash Gordon viajava por outros mundos – e o menino com eles.

E aquele livro, Uma História e Depois Outras…, com seu menino-herói, Pascoal-zinho, incorruptível, capaz de agüentar calado injustiças, intrigas, à espera de que a verdade prevalecesse – onde está? Na cabeça dos meninos do 1º grau, o pequeno herói convivia com Orfeu, Hércules ou Batman, num tempo em que os autores das histórias ainda não tinham importância, só contava a beleza dos feitos.

Onde está aquele time de futebol de botão? Ah, quantas vitórias, jogadas espetaculares… Em qual caixinha, em qual das casas onde ele morou ele teria ficado, em que mãos? E aqueles outros jogadores, os de verdade, heróis dos campos de futebol, que todos os meninos conheciam pelo nome, do goleiro ao ponta-esquerda, fiéis ao time —– onde estão?

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Evocação não traz nada ruim, é um passeio por alguma coisa que acabou sem nos ter sido tirada. É diferente do sentimento de perda, que causa sofrimento; diferente da saudade, que traz tristeza. É uma conversa afetuosa com o que foi.

Aquela cidade perfumada por magnólias, por exemplo. Gostoso lembrar seu aroma no frescor da noite, e transportar-se até lá. Um ano bom que passou – não qualquer um, mas aquele. Um amorzinho bom. Umas comidas, uns lugares.

Onde estão as neves d’antanho, où sont les neiges d’antan, como perguntava há mais de 500 anos o poeta François Villon? Onde estão os poetas que nos diziam nossas verdades e os ficcionistas que inventavam nossas mentiras?

Onde está o pecado? Não existe mais, vale tudo?

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Onde está aquele secreto hotelzinho na Praia de Iporanga, no caminho de Bertioga, a única construção que havia naquela baixada, só três quartos, sem telefone, sem luz elétrica, iluminada a lampião, na qual vivia o dono quase como um ermitão, e onde a única concessão era uma fantástica geladeira a gás?

E aquele cão, onde está, aquele divertido cão que gostava de ver a telenovela Pecado Capital, bastava ouvir a música-tema e ele se aboletava no sofá? Por falar nisso, era gostoso cantarolar a música da corujinha junto com as crianças (“Já é hora de dormir, não espere mamãe mandar”), dar um beijinho enroscado nelas e mandá-las para a cama. A televisão ajudava a pôr ordem no fim do dia.

Mais um ano se foi. Que terá deixado na vida pessoal de cada um, criança, adulto ou idoso, para ser evocado com um sorriso nos lábios numa dessas fugas da realidade que nos realimentam de otimismo?

Não ter mais a coisa não significa que ela faz falta, significa apenas que acabou. Um doce: ficou o prazer de tê-lo desfrutado, seu sabor permanece conosco. Como se alguém dissesse num fim de tarde em uma varanda: lembra-se? O cérebro passa o filme, mas não exclui a varanda e a tarde. Evocação é estar lá, sem sair daqui.

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