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Os transtornos causados pelas dezenas de prédios que nunca ficaram prontos

Esqueletos de construções inacabadas evidenciam calote milionário de construtoras, proprietários que ficaram na mão e ineficiência da prefeitura

Por Sérgio Quintella Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 14 fev 2020, 15h45 - Publicado em 10 jan 2020, 06h00
O "caveirão", na Rua do Carmo: prédio abriga moradores de rua e usuários de droga (Marcelo Sonohara/Veja SP)
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A propaganda do jornal Folha de S.Paulo, em 1964, parecia atraente: com uma entrada de 50 000 cruzeiros (cerca de 2 000 reais atuais) era possível começar a pagar por uma das mais de 2 000 vagas de garagem que seriam construídas em um edifício de 24 andares localizado na Rua do Carmo, 93, a poucos passos da então pujante Praça da Sé. Na época, os carros mais cobiçados eram o DKW Sedan, o Aero-Willys e o Puma. Meio século depois, enquanto esses veículos viraram peças de museu, o edifício-garagem, que deveria ter ficado pronto no ano seguinte, jaz praticamente invisível na paisagem da cidade.

Apelidado de “caveirão”, o prédio da Rua do Carmo é apenas uma das mais de quarenta edificações inacabadas encontradas pela Vejinha em São Paulo. Ao todo, mais de 400 000 metros quadrados de área (não) construída estão pela metade, mais que o triplo da estrutura do Edifício Copan, uma das maiores da capital. A prefeitura não tem números de “esqueletos”, mas, segundo estimativas do setor imobiliário, a quantidade pode chegar a 200. Nessa conta não entram os imóveis prontos, ociosos e degradados, marca registrada da região central.

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O anúncio do lançamento: eram previstas 2 000 vagas de garagem (Reprodução/Veja SP)

Interditado pela gestão Bruno Covas (PSDB) após o incêndio e o colapso do Edifício Wilton Paes de Almeida, no Largo do Paissandu, há quase dois anos, o prédio da Rua do Carmo está no meio de uma batalha jurídica. De um lado, a gestão municipal pede sua demolição, alegando questões estruturais, sanitárias e de segurança. Do outro, o dono do imóvel, que comprou o prédio em 2009 por 800 000 reais (cerca de 1,5 milhão de reais em valores de hoje) e luta há uma década para terminar a obra. “Mas a prefeitura não me dá trégua”, afirma o empresário Rivaldo Sant’anna, conhecido como Rico.

Ele se refere à cobrança extra de IPTU, desde 2014, com base em uma lei municipal que eleva o tributo para imóveis sem uso. “Como o meu prédio é ocioso se eu peço há anos que o alvará autorizando a obra seja emitido?” A conta do imposto predial e das multas aplicadas passa de 600 000 reais. “Vou questionar essa cobrança na Justiça. A única coisa que eu quero é terminar o prédio”, lamenta o empresário, que foi alvo de tentativa de grilagem há três anos mas reverteu o caso na Justiça.

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Rivaldo Sant’anna, o Rico, no “caveirão”: 4 milhões de reais para fazer escritórios “de cinema” (Alexandre Battibugli/Veja SP)

Se conseguir levar a ideia adiante, Rico pretende destinar sete ou oito andares para garagem de carros, e o restante será transformado em salas comerciais. O custo da empreitada está orçado em 4 milhões de reais. “Vou acabar com os estacionamentos clandestinos do centro e ainda por cima construirei escritórios ‘de cinema’”, prevê.

Para isso, porém, além de se entender com a prefeitura na Justiça, ele precisará expulsar do prédio os atuais habitantes. Embora esteja oficialmente desocupado, o caveirão abriga moradores de rua e usuários de droga. Eles ficaram no lugar das mais de sessenta famílias que foram despejadas por ordem judicial em 2018. Como as entradas foram emparedadas pela gestão municipal, a turma adentra a edificação por meio de buracos abertos na parede, na rua de trás. Atualmente, os seis primeiros andares estão parcialmente ocupados. Para irem de um pavimento a outro, as pessoas utilizam-se de portas velhas, madeiras sobrepostas, escadas em que faltam degraus, o que dá. Quando a polícia chega ou há uma movimentação estranha, elas fogem para os andares mais altos e recolhem as escadas.

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Lixo, entulho, restos de produção de cocaína (há plásticos, pinos e solventes abandonados espalhados pelos cômodos improvisados), móveis velhos, mangueiras emendadas umas nas outras e até pedaços de brinquedos completam o cenário. Árvores nascem nos andares, devido à umidade. “Problemas como armaduras expostas, crosta negra (acúmulo de sujeira oriunda de reações químico-físicas) e colonização biológica, evidenciada pela presença de vegetação na estrutura, sugerem a adoção de medidas emergenciais, como a recomposição dos elementos degradados, a começar pelo aço exposto e corroído”, afirma o professor de engenharia civil Joni Matos Incheglu, da Universidade de Mogi das Cruzes.

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Policial vasculha ambientes do edifício usado por invasores (Alexandre Battibugli/Veja SP)
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Cômodo do “caveirão” fechado por tapume; ao lado Rivaldo Sant’anna, dono do prédio (Alexandre Battibugli/Veja SP)

Casos parecidos com o do caveirão são vistos na Liberdade, em Moema, na Sé e em Itaquera, entre muitos outros bairros. Na Zona Leste, um prédio de quinze andares, localizado na Rua Harry Dannenberg, foi totalmente invadido há quase duas décadas. Um laudo do Corpo de Bombeiros mostra que há pessoas residindo em compartimentos inacabados, o que dificulta a fuga em caso de incêndio. “Poderá causar inúmeras mortes e danos irreparáveis a várias famílias”, afirma o documento. Para complicar ainda mais a situação, a prefeitura não conseguiu até hoje localizar os proprietários do empreendimento.

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Esqueleto em Itaquera: pedido de demolição e donos desaparecidos (Alexandre Battibugli/Veja SP)

Não é por falta de legislação que casos como esses ficam tanto tempo sem solução. Sancionada em 2014 pelo ex-prefeito Fernando Haddad (PT), uma lei que prevê a readequação de imóveis ociosos ainda não foi regulamentada. Desde que destinados a moradia social, esses empreendimentos não precisariam enfrentar toda a burocracia de uma obra nova. “Hoje, um retrofit (reforma de equipamento ultrapassado) é considerado uma nova edificação e seu licenciamento demora três anos para ficar pronto. Quando é interpretada como reforma, a obra começa em trinta dias”, afirma o vereador José Police Neto, autor da lei que nunca saiu do papel. “Demolição é jeito burro de fazer a coisa. Quando a prefeitura briga com o proprietário, a solução se arrasta e todo mundo perde. Quando incentiva a ocupação dos prédios degradados, a cidade toda ganha. Londres e Lisboa dispõem de leis inteligentes para essa questão.”

A Avenida Paulista também tem um esqueleto para chamar de seu. Construído no número 1510, o Edifício Dumont-Adams, erguido em 1950 pelo engenheiro Plínio Adams, definha a olhos vistos. Tornou-se sem utilidade após obras de readequação inconclusas. Uma delas previa a instalação de um mirante, que desfigurou a fachada original mas ficou pela metade. O prédio pertence ao Museu de Arte de São Paulo, que o recebeu como doação da operadora de telefonia Vivo. A ideia é transformar o Dumont-Adams em uma extensão do Masp, com a construção de um túnel que ligue os dois imóveis, mas a execução depende de captação de recursos, orçados em mais de 100 milhões de reais. Procurado, o museu não quis se manifestar.

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Dumont-Adams, na Paulista: enquanto o túnel não vem, fica o esqueleto (Alexandre Battibugli/Veja SP)

A questão financeira também foi impeditiva para que um conjunto habitacional no Campo Belo, na Zona Sul, mudasse a vida de 300 famílias que moravam nas favelas da antiga Avenida Água Espraiada (a atual Roberto Marinho). A região, aliás, sofre há anos com a demora da conclusão (e a feiura) do monotrilho local. Concebido em 2008 pela prefeitura, o Estevão Baião, com 300 apartamentos divididos em três torres, começou a ser erguido dois anos depois, mas as obras foram paralisadas durante a gestão Haddad e posteriormente retomadas por João Doria em 2017.

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Tudo voltou à estaca zero no ano passado. “A construção foi interrompida devido ao não cumprimento do cronograma pela empresa contratada para a prestação do serviço”, afirma a prefeitura, em nota. O reinício do trabalho está previsto para o meio de 2020. “Enquanto isso, eu e meus cinco filhos continuamos morando em um barraco bem pertinho do prédio”, queixa-se a empregada doméstica Maria de Lourdes Pereira, 42, que aguarda na fila a entrega das chaves. Também para 2020 vai ficar a retomada das obras do Conjunto Habitacional Sabesp, em Heliópolis. Projetados pelo arquiteto Ruy Ohtake, vinte dos 22 edifícios conhecidos como “redondinhos” foram entregues, mas o restante, assim como outros dois vizinhos, foi invadido e a prefeitura conseguiu a reintegração de posse em abril do ano passado.

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Conjunto residencial Estevão Baião, no Campo Belo: mais um vazio (Alexandre Battibugli/Veja SP)
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“Redondinhos de Heliópolis”: reinício em meados de 2020 (Alexandre Battibugli/Veja SP)

Não é só na esfera pública que o adiamento da entrega das chaves prejudica os futuros moradores. Desde que a construtora Esser deixou de honrar os compromissos, em 2016, mais de 1 700 pessoas foram prejudicadas, entre elas alguns famosos, como o recém-falecido Gugu Liberato, o jornalista e apresentador Milton Neves e o chefe da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República, Fabio Wajngarten. Procurados, os dois últimos, que entraram nas empreitadas como investidores, não quiseram se pronunciar.

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Prédio da Esser em Santo Amaro: 540 unidades inacabadas (Alexandre Battibugli/Veja SP)

Além deles, há quem tenha acreditado nas promessas da Esser para comprar o imóvel da vida. É o caso da metroviária Isabel Cristina Conde, 57, que deu 175 000 reais de entrada com o objetivo de adquirir um apartamento de 58 metros quadrados no Charme da Villa, na Vila Prudente, Zona Leste, avaliado em 450 000 reais. O condomínio seria equipado com piscina, sauna, churrasqueira, salão de ginástica e de jogos. “A obra parou dois meses depois que eu fechei o negócio. Achei estranho e comecei a procurar os demais clientes. A Esser foi nos enrolando por mais seis meses, até que percebemos a situação real”, afirma Isabel, cujo marido estava com câncer na época da compra. “Ele morreu sem ver o apartamento pronto.” O empreendimento da Zona Leste foi suspenso com 55% da obra concluída. Em outubro, os futuros moradores conseguiram na Justiça a destituição da incorporadora e vão poder tocar a construção, orçada em cerca de 15 milhões de reais.

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Prédio na Vila Prudente: 15 milhões de reais para acabar a obra (Alexandre Battibugli/Veja SP)

Além da questão financeira, há quem tenha perdido o teto e o chão por causa da Esser. A empresária Luciedna Risério, 60, era dona de um estacionamento e um hotel na Rua Doutor Cesário Mota Júnior, em frente à Santa Casa de Misericórdia, no centro. Com o negócio, ela faturava 70 000 reais por mês. Em 2014, ela e o marido receberam uma proposta para a cessão do terreno em troca de quinze unidades do futuro empreendimento.

Enquanto as chaves não eram entregues, a construtora prometeu depositar 80 000 reais por mês. “Ela pagou direitinho por um ano e meio, depois disso começou meu calvário”, afirma Lúcia, como é conhecida. Sem o terreno, sem os negócios e sem os quinze apartamentos, ela viu tudo ruir. “Minha vida ficou deficitária, pois eu e meu marido recebemos apenas 1 000 reais de aposentadoria”, lamenta. Procurados, os irmãos Raphael e Alain Horn, donos da Esser e alvos de centenas de processos judiciais (são também investigados pelo Ministério Público por estelionato), não quiseram se manifestar.

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Luciedna, em Santa Cecília: sem terreno e sem o dinheiro (Alexandre Battibugli/Veja SP)

Não é de hoje que a compra de apartamentos na planta gera problemas aos adquirentes. Esqueletos da construtora Encol, que chegou a ser a maior do país e faliu nos anos 1990, espalharam-se pela metrópole e um deles ainda está de pé na Vila Gumercindo, Zona Sul. Outra empresa que quebrou e deixou clientes na mão foi a Atlântica, cujo dono foi acusado de vender a várias pessoas o mesmo imóvel. “É importante que os compradores formem comissões e exijam a prestação de contas antes de os trabalhos pararem”, afirma a advogada Viviane Amaral, especialista em contratos imobiliários.

A metrópole já teve esqueletos famosos que hoje são exemplos de empreendimentos de sucesso. O Hotel Holiday Inn Anhembi, na Zona Norte, e o Instituto do Câncer, na Zona Oeste, pertencente ao governo do estado, permaneceram anos inacabados. Outra edificação emblemática foi uma torre com 23 andares que ficou conhecida como “esqueleto da Eletropaulo”. Comprado em 2006 pela construtora WTorre por 350 milhões de reais (777 milhões em valores atuais), o terreno de 60 000 metros quadrados, mais que a metade da área do Parque da Aclimação, localizado na Marginal Pinheiros com a Avenida Juscelino Kubitschek, foi de mico imobiliário ao mais caro empreendimento da cidade em pouco mais de dois anos.

Após uma grande obra, a área obsoleta deu lugar a duas torres comerciais, a um edifício corporativo, ao Shopping JK Iguatemi e ao Teatro Santander. Foi vendida ao banco Santander em 2008 por 1 bilhão de reais (o equivalente a 2 bilhões de reais hoje). “Eu passava na porta do esqueleto e pensava que São Paulo não merecia um negócio horroroso daqueles”, conta Walter Torre Jr., que cogitou demolir o prédio e começar uma nova construção, mas, como as estruturas representavam 30% do andamento da obra, a escolha foi continuar dali em diante. Criou-se outro ícone.

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