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É hora de reinventar os calçadões do centro

Um lugar em que nada funciona à noite - e que demanda uma boa caminhada até um ponto acessível a táxi ou Uber - não é nada atrativo. Mas há soluções

Por Marcel Steiner
Atualizado em 6 mar 2020, 16h13 - Publicado em 6 mar 2020, 06h00

A tragédia urbana que se abateu sobre a capital no dia 10 de fevereiro acentuou o debate sobre os rumos que a maior metrópole brasileira precisa tomar. A chuva ilhou o centro expandido, gerou sofrimento e um prejuízo econômico incalculável, e mostrou (dessa vez com um forte tapa na cara) que o modelo de ocupação do solo, adotado desde o Plano de Avenidas de Prestes Maia até hoje, não funciona. O padrão automóvel- shopping-condomínio é um fracasso. Além de deprimente, convenhamos. Cidade boa e saudável tem vida nas calçadas. É por isso que todo mundo gosta de Paris ou de Nova York, onde as calçadas são atraentes, com mesinhas de restaurantes, vitrines charmosas e todo tipo de gente circulando.

Alargar os passeios, aumentando o espaço para pedestres, quiosques com cafés, canteiros com árvores e ciclovias, deveria ser meta de qualquer gestão da prefeitura. Nova York vem fazendo isso de maneira exemplar e Paris lançou um projeto incrível em que as calçadas são protagonistas. Até mesmo Lisboa, queridinha atual dos brasileiros, pretende vetar automóveis em boa parte do seu Centro Histórico.

Por aqui, curiosamente, a única região da cidade onde o pedestre tem prioridade é o centro, local em que há duas grandes zonas de calçadões: uma no centro antigo, onde ficam a bolsa de valores e o CCBB, e a outra entre o Theatro Municipal e a Praça da República. Os calçadões centrais foram criados na década de 70, com a inauguração do metrô, e depois disso nunca se questionou o seu sucesso na economia urbana. Ainda hoje o centro cumpre um papel de conexão intermodal e é por isso que há tanta gente lá — mas só em parte do tempo. À noite, é raro ver pessoas circulando por ali, com exceção da população de rua, que cresce em ritmo galopante.

Uma das políticas urbanas da atual gestão da prefeitura é “animar” com bares, restaurantes e eventos culturais o centro velho, onde até a década de 40 funcionavam praticamente todos os bancos, lojas, restaurantes e hotéis na cidade. Vejo essa política sem estímulo ao surgimento de novas moradias com um grande pé atrás. Um quarteirão saudável precisa ter comércio, moradia, escritórios e gente na rua. De preferência de várias classes sociais. Dia e noite. Para haver prédios residenciais e comércio noturno (bares, restaurantes e boates), o sistema de calçadões criados naquela época é um problema. Não no conceito em si, mas no desenho.

Calçadão híbrido no bairro de Chueca, em Madri: carros podem circular em baixíssima velocidade (Raul Juste Lores/Veja SP)

Cada gestão tenta ajustar os calçadões centrais à sua maneira. Em 2007, a prefeitura reabriu aos carros o calçadão da Rua 24 de Maio. Em 2015, em outra gestão, a Rua 7 de Abril foi fechada aos veículos e mais um calçadão foi inaugurado. Só ali passam 170 pessoas por minuto. Não fosse a execução desastrosa dessa nova rua de pedestres, que virou um case de fracasso e motivo de piada entre gestores públicos, a 7 de Abril teria ficado ótima. Agora, a prefeitura quer trocar o mosaico português de toda a região central por um piso de concreto, como o da Paulista.

O debate sobre o redesenho dos calçadões é antigo, mas a conversa nunca ultrapassou o círculo de urbanistas e funcionários da prefeitura. Volto a esse assunto em 2020. A ideia aqui não é acabar com nenhum calçadão, mas repensar seu desenho. Vamos combinar: o que foi construído está longe de ser bom, e o estado dos calçadões é uma lástima por causa da pouca manutenção e das obras malfeitas pelas concessionárias (por baixo dos passeios passam água, esgoto, cabos elétricos, de rede etc.), que toda hora quebram e remendam o piso.

Penso que algumas vias poderiam ser abertas aos automóveis, de forma cuidadosa, a baixa velocidade, pelo menos à noite, respeitando os pedestres, desincentivando estacionamento na rua e em edifícios privados. Reparem que, felizmente, o acesso de carros ao centro já é difícil graças a um anel viário criado décadas atrás. E essa política deu certo. Praticamente não há engarrafamento no Largo do Arouche, por exemplo.

Mas a capilaridade do automóvel em algumas partes do centro precisa ser revista, pois não há como morar ou abrir um restaurante numa rua onde automóveis são proibidos o dia todo. Se você quer pedir um Uber em casa às 3 da manhã para ir ao aeroporto, como faz? Anda três, quatro quadras com a mala e o celular na mão? E uma senhora com mobilidade reduzida, que usa andador e precisa ir ao médico fazer uma consulta? Ela não pode fazer uso de um automóvel? Salvo um exemplo aqui ou acolá, não há hoje uma loja bacana ou restaurante badalado na zona de calçadões. Só lanchonetes sem graça e lojas de produtos genéricos que abastecem o público flutuante de segunda a sexta-feira.

Rua Álvares Penteado, onde está o CCBB: no centro (Wsfurlan/Divulgação/Reprodução)

Apenas equipamentos culturais de alto nível (temos muitos!) não são suficientes para desenvolver a região. Uso o termo desenvolver e não revitalizar, faço questão de observar. É importante haver hotéis legais, lojas atraentes, um número enorme de bares e restaurantes disputados. Que atraiam turistas, principalmente de outras regiões do Brasil, que já adoram vir a São Paulo fazer compras, visitar exposições e sair para conhecer restaurantes. É o que a nossa cidade faz de melhor! Hoje tenho a impressão de que o centro é visitado por piedade. As pessoas vão lá passear e acabam destilando melancolia, imaginando como a cidade deve ter sido bonita antigamente. E saem deprimidas com a situação do comércio, dos equipamentos urbanos e das pessoas em situação de rua, totalmente desassistidas pelo Estado. Quantos restaurantes foram abertos na Rua Boa Vista ou na Barão de Itapetininga nos últimos anos? São ruas muito mais bonitas e opulentas que qualquer outra nos Jardins ou no Itaim. Há sempre um louco para abrir algo como a deslumbrante Casa de Francisca. Veja bem: chamo o dono de louco, com o maior respeito e admiração, por ele justamente ter criado uma das coisas mais legais que existem hoje em São Paulo, num local de difícil operação. Que um empresário comum, que só enxerga números à frente, jamais teria inventado. E há tantos palacetes que poderiam ter uso parecido por ali. Mas, enquanto não for possível pedir um Uber naqueles endereços, nenhum empresário mais conservador vai se aventurar. Ele vai continuar investindo numa unidade nova no Iguatemi ou no Higienópolis, ou, se for mais corajoso, na região da República-Vila Buarque, que tem recebido a maior parte do investimento priva- do no centro. E que, por coincidência ou não, é acessível para automóveis durante a noite.

>Marcel Steiner é empresário, economista pela FEA-USP e mestre em história da arquitetura pela FAU-USP.

Publicado em VEJA SÃO PAULO de 11 de março de 2020, edição nº 2677.

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