Os Papais Noéis das crianças carentes
Conheça as histórias de quatro pessoas da capital que se desdobram nessa época do ano para realizar os sonhos de quem vive na miséria
Mamãe Noel dos Correios
A administradora de empresas Izabel Cristina Amaral Pereira, de 58 anos, é provavelmente a campeã em atender os pedidos das crianças que escrevem ao Papai Noel pedindo algum presente. Os Correios não têm esse levantamento, mas a empresa admite que Izabel está entre os paulistanos que mais colaboram com o programa Papai Noel dos Correios, no qual a estatal arrecada doações de quem queira realizar o desejo das crianças que escrevem ao bom velhinho. Até hoje, ela já atendeu a 5 000 correspondências, das quais 1 300 foram só este ano – a entrega dos presentes começou há quinze dias e vai até domingo (24).
O trabalho teve início em 2006, quando uma colega a chamou para adotar algumas cartinhas da campanha. Escolheram doze correspondências, compraram os presentes e foram entregá-los pessoalmente. “Fiquei muito emocionada com o que vi, a alegria das crianças em receber um simples carrinho. Elas moravam em um barraco e não tinham um grão de arroz em casa. Aquilo mexeu demais comigo”, relembra.
Em outubro do ano seguinte, ficou sabendo que os alunos de um colégio de alto poder aquisitivo no Morumbi estavam doando brinquedos usados, mas ainda novos e de alta qualidade. Izabel lembrou-se das cartinhas e aceitou os objetos.
“Fiz uma relação de tudo: quantidade de bonecas, bolas, jogos etc. Aí, fui aos Correios buscar as correspondências que se encaixavam nesse lote”, comenta. A administradora, no entanto, se empolgou e pegou mais cartas do que tinha de brinquedos a oferecer. Eram 87 pedidos, ao todo. Com a ajuda de uma amiga, a bibliotecária Regiane Pereira dos Santos, 52 – que atua com ela nesse projeto até hoje –, passou a solicitar a conhecidos as doações que estavam faltando, e, pouco antes do Natal, conseguiu fechar a lista.
Então, não parou mais. A cada ano, aumentava a quantidade adotada: 400, 600, até passar de 1 000 por ano. Para alcançar a meta, ela conta com a ajuda dos funcionários da Universidade de São Paulo (USP), onde trabalha há trinta anos. “Quando chega a época da campanha, o jornal da universidade a divulga, convidando as pessoas a participar”, conta ela. “Também peço doações via Facebook. Estipulo uma data para que os brinquedos sejam entregues, e, quando recebo, dou baixa no caderninho. É tudo devidamente anotado, para não perder o controle.”
Quando sobram cartas, Izabel compra os presentes com o dinheiro arrecadado em outra ação, um bazar montado todos os anos em um espaço da Escola de Educação Física da USP, no qual vende roupas usadas. “No fim de novembro fizemos uma edição, que rendeu, em três horas, 1 800 reais”, comenta. “Todo o dinheiro vai para o projeto do Natal.”
Segundo Izabel, muita gente tem uma ideia errada sobre a campanha dos Correios. Uma das crenças é de que a grande maioria das crianças só solicita coisas caras, como bicicleta, tablet ou videogame. “Tem algumas que pedem, sim, mas elas não são a maioria. Infelizmente essas cartas acabam sendo deixadas de lado, são as que sobram no final da campanha. Elas não pedem porque são gananciosas e sim, porque têm sonhos, como qualquer outra da mesma idade”, lamenta. De acordo com a administradora, uma grande parte de pedidos nem é de brinquedo e sim, itens para a casa: cesta básica; cama, colchão e até cadeira de rodas.
Como atende grandes quantidades de pedidos, o critério usado por Izabel na hora de escolher as correspondências a serem adotadas é optar por desejos simples, como bolas, carrinhos e bonecas. “Mas quando a carta é muito triste, acabo pegando, mesmo que o presente seja mais caro”, explica. “Nesse caso, peço doações ou uso o dinheiro arrecadado no bazar para comprar.”
Uma das cartas que mais a emocionou foi de uma menina chamada Emily, que pedia um chinelo:
“Olá, meu nome é Emily e tenho 10 anos. Estou na quinta série. Então, Papai Noel, estou lhe escrevendo para pedir uma roupa e um sapato. Se o senhor puder, manda também um chinelo, porque o meu está quebrado e minha mãe diz que ela só vai comprar quando receber o dinheiro da faxina. Só que eu pensei: ‘Ela vai pagar o aluguel. Como ela vai comprar o meu chinelo?’ Se fico falando para ela comprar carne, ela fala: ‘Filha, o dinheiro só dá para ovo ou salsicha’. Agora, me fala: como ela vai comprar o chinelo, desse jeito? Por favor, Papai Noel, manda esse presente para mim.”
Nesse caso, a administradora pediu autorização aos Correios para fazer a entrega pessoalmente, e levou, além do chinelo, um vale-supermercado, par de sapatos e um brinquedo.
Divorciada há vinte anos, Izabel é mãe de duas filhas, de 33 e 30 anos, com quem deve passar a noite de Natal. “Para mim não tem sentido sentar numa mesa com a minha família se eu não fiz nada pelo outro. Hoje, esse trabalho faz parte de mim”, conclui.
Parque de diversões na Zona Norte
Neste domingo (24), o trecho da Avenida Gustavo Adolfo em frente ao número 1 800, na Vila Medeiros, Zona Norte, vai se tornar um verdadeiro parque temático. Fechado para a passagem de carros, esse pedaço da via vai abrigar pula-pula, piscina de bolinha, escorregadores infláveis e uma imensa loja de brinquedos “de mentirinha”, com equipe de recreação, teatro e exposição de presépios. A ação, organizada pelo grupo Natal de Amor, contará com 350 voluntários e beneficiará 2 000 crianças de três favelas da região.
À frente do projeto está o advogado Silvio Luiz Lemos, de 56 anos. “Fazemos esse trabalho há treze anos. Toda edição tem uma novidade, mas a essência é a mesma desde o início: criar um ambiente mágico para crianças que, muitas vezes, nunca tiveram a oportunidade de entrar em uma loja de verdade”, diz ele.
A ideia de montar essa megaestrutura para a garotada surgiu em setembro de 2004. Com a ajuda dos familiares e amigos, passou a pedir brinquedos pelas redes sociais e a conhecidos. “O critério era que todos custassem, no mínimo, 40 reais e tivessem boa qualidade”, comenta ele. Conseguiu, naquele ano, 350 peças e a adesão de cinquenta voluntários. A quantidade foi aumentando ano a ano e, hoje, o número de arrecadações passa de 1 000.
A loja de brinquedos é montada em um salão da Avenida Gustavo Adolfo, que cede o espaço ao evento. Um colaborador fica responsável pelo estoque: quando alguma peça “esgota”, outra é colocada no lugar.
O espaço dispõe ainda de uma equipe fazendo pintura facial e esculturas de bexigas, um presépio vivo, no qual um casal com bebê interpreta José, Maria e o Menino Jesus, exposição com trinta presépios em miniatura, lanchinhos, banda ao vivo e uma árvore de Natal de três metros de altura. As crianças entram sozinhas no recinto e os pais ficam esperando do lado de fora. A ação, fechada às comunidades carentes da Vila Medeiros, dura a manhã toda.
Para organizar a entrega, o grupo faz o cadastramento das crianças duas semanas antes da festa. Pega o nome e idade de cada uma e entrega um tíquete, que elas deverão apresentar no dia do evento.
A operação custa, em média, 75 000 reais, valor arrecadado por meio de doações. Em 2016, o grupo conseguiu um superávit de 12 000 reais. “Com esse montante, pudemos dar início a outras ações durante o ano, entre elas, a distribuição de sopas em uma comunidade da Zona Norte”, conta.
O advogado diz que faz essas ações como um agradecimento pelos “presentes” que a vida lhe deu. “Sou casado há 34 anos com a Monica, uma mulher maravilhosa, que foi minha primeira namorada séria. Tenho três filhas incríveis, casadas com rapazes especiais, e três netos lindos”, descreve ele. “Não busco autorrealização nesse projeto. É uma retribuição pelo que já conquistei até hoje.”
“Faço isso pela minha filha”
No fim de abril de 2013, a consultora financeira Luciana Barreto dos Santos, de 41 anos, viveu a maior tragédia de sua vida. Sua única filha, Letícia, 13, morreu de meningite meningocócica fulminante após ficar dez dias internada na Santa Casa de Misericórdia, na Vila Buarque. “Parecia uma simples virose, mas algumas horas depois, ela começou a passar mal e foi encaminhada à UTI. Em seguida, entrou em coma”, relembra.
Depois disso, Luciana caiu em depressão profunda. “Só chorava. Larguei o emprego e não saía de casa”, conta ela, que também é mãe de um menino, Fernando, então com 6 anos. “Nem do meu filho eu conseguia cuidar. Não queria mais ser mãe, esposa, irmã, sobrinha. Só pensava em morrer.”
A situação durou até novembro de 2014, quando a consultora teve um sonho com a garota. “Ela segurava no meu rosto e falava: ‘Mamãe, mais amor. Mais amor a Deus e ao próximo.’ A partir daquele dia, comecei a pensar no que poderia fazer para mudar a condição na qual me encontrava.” Na mesma semana, teve a ideia de levar brinquedos às crianças da Santa Casa. “Tinha muita raiva do hospital pelo que havia acontecido. Essa poderia ser uma maneira de tirar aquele sentimento ruim de dentro de mim.”
Luciana obteve autorização da direção do hospital para fazer a ação, mas o número de crianças atendidas no local, incluindo as internadas – cerca de 300 –, era superior ao que poderia bancar do próprio bolso. Então, decidiu divulgar a história da filha no Facebook e o sonho que teve, para pedir doações. Em menos de um mês, conseguiu mais de 400 brinquedos.
Pouco antes do Natal, ela foi fazer a entrega na Santa Casa acompanhada do marido, o encarregado de produção Valdomiro Ferreira dos Santos, 41, e cerca de dez parentes e amigos. Um deles levou atores fantasiados dos personagens Branca de Neve, Thor e Anna, da animação Frozen, para divertir a garotada. “As crianças enlouqueceram. Foi tudo muito bonito”, emociona-se ela. Depois da ação, ainda sobraram 100 brinquedos, que acabaram sendo doados aos pacientes do Itaci, Instituto de Tratamento do Câncer Infantil do Hospital das Clínicas.
Com a repercussão positiva, Luciana decidiu continuar o trabalho nos anos seguintes. Em 2015, arrecadou 500 itens. Em 2016, 600. E, este ano, 400 – a entrega na Santa Casa foi na terça (19), e no Itaci será na semana que vem. “Para nós, do hospital, essa iniciativa é imensurável. As crianças internadas aqui não comemorariam o Natal se não fosse por ela”, elogia Sara Neves de Souza, chefe de enfermagem da pediatria da Santa Casa. Atualmente, além de atender os dois hospitais, Luciana também leva os brinquedos que sobram às comunidades carentes da capital e Grande São Paulo.
Dois anos após o falecimento de Letícia, Luciana engravidou novamente. “O Raphael, de 1 ano e 10 meses, é quase um milagre. Na época, tomava antidepressivo, remédio para baixar a pressão, para dormir. Minha médica dizia que as chances de eu engravidar eram remotas”, relata. “Surpreendentemente, tive uma gravidez tranquila e meu filho nasceu super saudável. Agora não tomo remédio pra nada.”
A consultora confessa que ainda é difícil ir à Santa Casa. “Mas aí, quando vejo os rostinhos e recebo os abraços, me sinto reconfortada. São essas crianças que me auxiliam. Penso: elas estão lutando pela vida, e por que eu queria morrer?”, diz ela. “Percebi que posso fazer diferença no cotidiano delas e ensinar aos meus filhos que, mesmo quando a gente tem algum problema, é capaz de ajudar. ‘Amor ao próximo’, foi o que a Letícia pediu”, conclui.
Doutora Brinquedos
Todo mês de dezembro, a secretária Luci Alves, de 57 anos, encara uma verdadeira peregrinação pela capital e outros oito municípios paulistas para levar presentes a cerca de 5 000 crianças de comunidades pobres. Este ano, ela conseguiu arrecadar 10 000 itens, desde bonecas e bolas até livros infantis.
Seu trunfo para conseguir tantas doações é pedir pelas redes sociais objetos usados, que ainda estejam em boas condições. “Ao recebê-los, fazemos um trabalho de restauração cuidadoso e, no final, você não diz que é de segunda mão”, comenta ela.
Com a colaboração de outros voluntários – Luci dispõe de cerca de quinze ajudantes –, as peças são lavadas com água e sabão em pó, escovadas, reparadas (roupas rasgadas são costuradas, olhos faltando são recolocados, cabelos de bonecas são desembaraçados e arrumados) e colocadas dentro de um saquinho transparente junto com um livro e uma cartinha com mensagem natalina.
“Se o brinquedo é grande, ele vai sozinho no saco plástico com a carta e o livro. Mas se é pequeno, colocamos duas ou três unidades no mesmo pacote”, explica. Itens muito detonados, que não poderão ficar com aspecto de novo, mesmo após os consertos, são descartados.
Mãe de duas mulheres – uma advogada de 41 anos e uma fisioterapeuta de 40 –, Luci, que é divorciada, iniciou a ação em 2009, depois que um amigo teve um infarto e foi internado no Hospital Universitário da USP. Ao visitá-lo, ela conheceu uma palhaça profissional, contratada para relaxar os profissionais do local. Nos intervalos, a animadora brincava com os pacientes, sem cobrar nada.
“Me apaixonei pela atuação dela. Então, fiz uma promessa a Deus: se meu amigo saísse daquela situação, iria trabalhar nos hospitais públicos para levar alegria”. O rapaz se recuperou e a secretária cumpriu a palavra: passou a se vestir de palhaça e animar pacientes do Hospital Universitário e do Servidor Público Estadual de São Paulo. No mesmo ano, também começou a fazer a distribuição dos brinquedos no Natal.
Ao chegar às comunidades para levar os presentes, Luci e outros voluntários se fantasiam de palhaços e fazem uma espécie de teatrinho de 20 minutos para as crianças, com brincadeiras e cantigas. Em seguida, a secretária explica para as crianças o perigo das drogas, pedofilia e bullying, e as orienta como ficar longe desses problemas. No final, todos fazem uma oração e um dos voluntários caracterizado como Jesus Cristo entra no recinto para fazer a entrega dos presentes. “No final, fico exausta, mas com o coração alegre, porque tiramos um sorriso de uma criança carente, ou de um paciente desesperançado. Esse é o nosso pagamento”, diz ela.