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Livro inédito discute a baixa qualidade do ensino brasileiro

Leia, em primeira mão, trechos de 'País Mal Educado: por que se aprende tão pouco nas escolas brasileiras?', de Daniel Barros

Por Daniel Barros
Atualizado em 14 fev 2020, 15h58 - Publicado em 6 set 2018, 13h17

“Em 1890, o médico Antônio Caetano de Campos iniciou em São Paulo um processo de reforma educacional (…). A Escola Normal Caetano de Campos oferecia um curso mais longo do que os anteriores (quatro anos), tinha uma escola-modelo no prédio anexo — como cursos de medicina têm um hospital universitário —, também requeria a realização de uma prova para a admissão e depois ainda ganharia um curso de ensino superior para formar professores do ginásio e de outras escolas normais (…). Ao final da Primeira República, em 1930, o estado já tinha 49 escolas normais.”

“A partir da década de 1930, algumas das principais universidades do país, como a Universidade do Distrito Federal, que depois viraria a Universidade do Brasil e depois ainda a Universidade Federal do Rio de Janeiro, anexariam escolas normais e criariam seus Institutos de Educação.

Os cursos normais variavam de qualidade, mas eram muito práticos. Por serem uma espécie de curso técnico, feito durante o ginásio, eram voltados a capacitar o estudante para, imediatamente após a formatura, entrar em salas de aula de educação primária e ensinar o conteúdo de forma eficaz. Até os cursos de ensino superior, que formavam professores especialistas, como os de matemática, tinham essa mesma vocação para a objetividade.

Em 1939, nasceu o primeiro curso de pedagogia, na Universidade do Brasil. Ele deveria servir para formar técnicos da educação e formadores de professores nas escolas normais. Tanto que três dos quatro anos de sua duração eram focados em fundamentos da educação e apenas um ano era voltado à didática propriamente dita. A pedagogia decerto não preparava seus estudantes para a tarefa de ensinar crianças e adolescentes. Seu propósito era formar pensadores da educação. Mas, silenciosamente, esse curso também foi crescendo, em paralelo à expansão das escolas normais. Em 1968, quando decidiu empreender uma reordenação do ensino superior, o regime militar exigiu uma pequena adaptação do currículo do curso de pedagogia e despejou nele a formação de todo e qualquer profissional da educação. Os Institutos de Educação e as escolas normais foram, pouco a pouco, sendo esvaziados. Esses cursos primeiro pararam de atrair os melhores estudantes, e depois começaram a fechar por pura e simples falta de demanda. Em São Paulo, por exemplo, partes instrumentais importantes para a formação docente foram excluídas do currículo de quem estudava para se tornar professor, como metodologia do ensino da matemática.

Daniel Barros: pesquisa sobre as raízes do problema (Vitor Garcia/Veja SP)

Ao longo dos anos 1970, 1980 e 1990, os cursos de licenciatura específica (em matemática ou biologia, por exemplo) e de pedagogia tomaram rumos opostos. Mas nenhum privilegiou o que acontece na sala de aula na prática. O primeiro passou a focar demais o conteúdo das disciplinas (seja matemática, literatura, biologia ou história) e muito pouco em como ensinálas. Já a pedagogia dava como certo que os estudantes dominavam os conteúdos de matemática, português, ciências e humanidades (porque os tinham aprendido no ensino médio). Também partia do pressuposto de que os universitários aprenderiam a ensinar na prática e, portanto, focava sobretudo discussões mais teóricas.”

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“Em 1996, surgiu uma oportunidade para corrigir o erro dos militares com a Lei de Diretrizes e Bases, que foi aprovada naquele ano (…). Mas o Conselho Nacional de Educação, órgão vinculado ao MEC, adiou em anos a regulamentação dos cursos de pedagogia. Quando o fez, seguindo relatório de 2002 elaborado por um grupo de especialistas contrários aos Institutos Superiores de Educação, devolveu à pedagogia a prerrogativa de formar professores. O relatório é recheado de jargões e exageros ideológicos como ‘a docência no interior de um projeto formativo e não numa visão reducionista que a configure como um conjunto de métodos e técnicas neutros, descolado de uma dada realidade histórica’. Por fim, os parágrafos sobre formação de professores continuam na Lei de Diretrizes e Bases até hoje, mas viraram letra morta. O status quo permaneceu. Nada mudou.”

“Em seu gabinete no Palácio do Anhangabaú, colado ao viaduto do Chá, o então prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, listou o que considera suas principais realizações ao longo de mais de sete anos como ministro da Educação. Era uma quartafeira de agosto de 2015. Antes de completar três minutos de conversa, ele disse, sentado no sofá onde geralmente recebia as visitas: ‘Mas sabe o que faltou? Se eu ficasse mais tempo como ministro, eu me dedicaria à formação de professores’. Naquele dia de agosto de 2015, Haddad falou de algumas medidas que tentou implementar, mas não conseguiu: 1) fixação de nota mínima no Enem para o ingresso nas licenciaturas, sobretudo pedagogia; 2) prova docente para avaliar professores; 3) condicionar a adesão de universidades a programas com financiamento do MEC à reforma curricular das licenciaturas. Todas essas medidas enfrentaram resistência. Logo no início da sua gestão, ele promoveu mudanças pontuais no currículo dos cursos de pedagogia e a reação foi rápida e violenta. Pouco mais de 100 estudantes vinculados a movimentos estudantis apedrejaram a fachada do MEC durante um protesto contra a mudança nas regras em maio de 2006. Outras entidades, como a Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação, também demonstram resistência velada a qualquer tentativa de modificar os cursos que formam professores. ‘Os que se opõem à reforma das licenciaturas acreditam que discutir didática específica é uma questão menor, que isso nivela os professores por baixo. Se você for ao site da Amazon e procurar how to teach maths, encontrará centenas de títulos. Se buscar por livros nessa linha em português, não encontrará quase nada. Existe um preconceito claro!’, diz Haddad. Depois da nossa conversa, eu fiz o teste. How to teach maths traz 1 026 resultados de livros no site da varejista americana Amazon. A pesquisa por ‘Como ensinar matemática’ no site da Livraria Cultura, a de maior acervo on-line no país em 2015, oferecia apenas onze resultados.

Para Haddad e a maioria dos estudiosos de reformas educacionais pelo mundo, a transformação das próximas gerações de professores só será possível com o seguinte tripé: melhor seleção de quem entra nas licenciaturas, maior qualidade no que vai ser ensinado nesses cursos e maior atratividade da carreira. O complicador é que esses três processos precisam acontecer juntos — afinal, o tripé é uma estrutura que não se sustenta sem uma das pernas.

A ideia do ex-ministro — que ele não implementou quando teve a oportunidade — é que o maior rigor na seleção das licenciaturas comece pelo menos no curso de pedagogia, que tem o quarto maior número de matrículas no ensino superior, apenas atrás de direito, administração e engenharia civil, de acordo com dados do Censo do Ensino Superior de 2016. A premissa é que, afunilando o acesso à pedagogia, o Brasil elevaria o nível de conhecimento dos professores dos primeiros anos da vida escolar no médio prazo. Mas de onde vem essa ideia?

Singapura: rigor na seleção dos futuros docentes (Divulgação/Veja SP)

A estratégia já foi testada antes com sucesso. Os exemplos mais impressionantes de reformas educacionais no século XX adotaram caminhos muito diferentes entre si. O que há de comum entre eles é justamente a maneira rigorosa como selecionam quem vira professor. Estou me referindo a Singapura, Finlândia e Coreia do Sul. Esses três países estão entre os mais bem colocados em todos os exames internacionais recentes, com destaque para o Pisa, realizado pela OCDE a cada três anos. A prova avalia os conhecimentos de adolescentes de 15 anos em mais de sessenta países.

Nos anos 1980, Singapura passou a exigir que apenas estudantes entre os 30% melhores de suas classes no colegial pudessem entrar nos cursos de ensino superior que levavam à docência. No Pisa de 2012, Singapura só ficou atrás da cidade de Xangai, cujos estudantes fizeram a prova representando a China. Portanto, trata-se do país mais bem colocado em matemática no mais importante teste internacional. Como Singapura é um país minúsculo e o regime local não é democrático, é fácil rechaçar suas soluções como particulares demais. Mas a Finlândia, o mais celebrado exemplo de reforma educacional do planeta, tornou o ingresso em cursos de formação de professores tão seletivo quanto Singapura.”

“As licenciaturas falham no cumprimento do seu papel mais elementar: ensinar a ensinar. Em uma de suas pesquisas, a professora Bernardete Gatti mostrou que, em licenciaturas como letras e matemática, as didáticas específicas ocupam apenas entre 5% e 11% do currículo. Em pedagogia, menos de 4% do currículo era dedicado a teorias didáticas, enquanto mais de 22% das disciplinas obrigatórias e outros 20% das optativas eram sobre teorias educacionais de outra natureza, como as relacionadas com sociologia da educação e história da educação. Bernardete observou também que as professoras primárias recémformadas em pedagogia geralmente não sabiam como alfabetizar uma criança. Em algumas circunstâncias, ela distribuiu questionários para verificar os caminhos usados na alfabetização e se surpreendeu ao ver que os processos considerados mais adequados, sobre os quais há farta literatura, eram desconhecidos pelas professoras. É como se um médico aprendesse apenas disciplinas teóricas como história da medicina e sociologia da medicina na faculdade e depois fosse colocado numa sala de cirurgia para realizar uma operação. A formação capenga, descolada da realidade de sala de aula, é uma reclamação frequente dos professores pelo Brasil.”

“Como tantos professores com quem conversei para escrever este livro, Homailson Lopes reclama que não aprendeu a manter os alunos focados, a elaborar provas ou a lidar com o frequente problema da indisciplina em sala de aula. Ele diz se lembrar de uma única matéria sobre o ensino da matemática durante a graduação. A aula estimulava os universitários a identificar qual era o modo de pensar da criança quando ela cometia um erro. ‘Mas didática de verdade eu só aprendi na prática’, diz. O seu caso ilustra o tipo de formação incompleta contra a qual Bernardete tanto luta. Uma reforma efetiva das escolas de formação de professores permanece pendente. E, a cada ano que passa, o Brasil perde a oportunidade de começar a renovar os seus quadros com professores mais bem preparados.”

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