Cara, passamos tanta coisa juntos, desde os anos em que a esquerda intelectual tinha charme, lembra?, não o charme chique daqueles boêmios que namoravam atrizes americanas no Copacabana Palace rodando gelinho com o dedo no copo de uísque, mas o charme descuidado daquelas pessoas que parecem saber das coisas neste país de segredos. Os intelectuais de esquerda eram os boêmios da política, nos últimos anos 60 faziam sucesso com as moças meio de família meio de esquerda, lembra?, todo mundo que lia um pouco de Sartre e de Herbert Marcuse e que memorizava sete frases espertas entrava no rol de intelectuais de esquerda, e nesse bolo iam jornalistas, diretores de teatro, atores, atrizes, autores, professores, poetas, cronistas, músicos, todos intelectuais, aspas. Íamos em bandos às praias, ainda dava para descobrir praias, uma ou outra moça tirava o sutiã, íamos em bandos para os botequins, ainda dava para descobrir botequins, e se discutia muito, salvava-se o mundo, salvava-se a classe operária, salvavam-se as matas, os rios, as baleias, os bichos, o país, Cuba, o Vietnã, enquanto os militares salvavam a pátria à maneira deles, ai de nós, ai ai ai de nós. O desconforto tinha seus confortos, dormiam dez onde cabiam três, comiam três onde havia para dois, até barracas de acampamento na praia tinham seus encantos de lua cheia e violão, sem perigo de assaltos, pois isso ainda não era um tipo de trabalho, um meio de vida. Festas! Passeatas de protesto nas ruas desaguavam em festas nos apartamentos, libertárias festas, libertinas, se nada é permitido, tudo é transgressão, tudo é política, arte é política, puxar fumo é política, sexo é política, inclusive da namorada com o amigo do casal, por que não, é preciso contestar a caretice, a moral repressora, tirar a roupa na festa, por que não, desnudar a amiga chapada apagada na praia, por que não, contestar o aperto, o arrocho, parafuso gira é para a direita e a cada volta do parafuso, mais protestos, correrias, bombas de efeito imoral. Ia dando no que daria até que deu no que deu. Vivemos aquele sumiço de amigos depois do AI-5, convivemos com aqueles fichários da polícia política nas portarias dos prédios, obrigatório preencher, dize-me com quem andas e descobrirei quem és. O amigo que participou de sequestro desapareceu, lembra?, até que um dia ele nos procurou para um clandestino abraço, bateu saudade, perigoso passeio de Fusca pela cidade, lembra que medo? E aquela nossa condução coercitiva por agentes da Operação Bandeirantes só porque éramos amigos do trânsfuga, lembra o medo de nos empurrarem lá para os porões? Foi aquele corre-corre de parentes, mulheres, noivas, para se livrarem de livros de história, filosofia e sociologia, jogados pela janela, pôsteres rasgados, raridades pop destruídas, cartazes, discos, por medo de que os agentes dessem buscas e vissem naquilo sérios indícios de atividade subversiva, lembra que era assim? Cara, tanta coisa passamos, anos, superamos problemas na família, depressão, pânico, psiquiatras, psicanalistas, endocrinologistas, engorda, emagrece, engorda, e vieram filhos, carga de temores e alegrias, festinhas de brigadeiros e natais de biscoitos de canela, praias rasas de baldinho e peneirinha, lembra?, a volta dos amigos exilados, a vida rodando, amigos começaram a morrer de aids, alguns deles velamos juntos, chegou e passou a época de buscar filhos nas festas da noite, outras políticas se desenharam, outros compromissos, amores, partidos, homens partidos, e vieram netos, e veio a grande radicalização, a intolerância, a impossibilidade de conversar, amigos, parentes de cara virada. Cara, tanta coisa passamos juntos e hoje a gente nem se fala. Qualé, cara?