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Usuários não são fiscalizados em hotel, mas criam regra de conduta

Acompanhamos a primeira semana do programa municipal que hospeda ex-moradores da favelinha do crack. Eles fazem o que querem, mas muitos brigam para manter a ordem

Por Luan Flávio Freires
Atualizado em 1 jun 2017, 17h25 - Publicado em 24 jan 2014, 19h18

Na região da Cracolândia, o relógio está prestes a marcar 23h, horário estipulado para que todos os cadastrados no Programa Braços Abertos voltem para os hotéis onde estão hospedados. As portas, entretanto, continuam abertas durante toda a noite e não há nenhuma movimentação mais apressada por parte dos que se reúnem para usar crack na Alameda Barão de Piracicaba, a poucos metros dos estabelecimentos. “Não posso ser um ditador”, diz Perseverando Alves, que é porteiro noturno de um dos hotéis. “Alguns saem de madrugada.”

Segundo a contabilidade oficial, 353 homens e mulheres que vagavam pela região aceitaram ingressar no programa municipal no qual ganham hospedagem em um dos seis hotéis da área. Para ter direito à vaga, precisam trabalhar como garis, serviço pelo qual recebem 15 reais por dia.

Apesar de todos os horários determinados estarem fixados na recepção, não existe rigidez ou punição para quem deixar de cumprir as normas. Não há verificação da entrada de drogas ou armas dentro dos estabelecimentos. “Não podemos ser muito rígidos, pois eles desistiriam rapidamente do projeto”, avalia José Alexandre Sanches, secretário adjunto do Desenvolvimento, Trabalho e Empreendedorismo.

O resultado tem sido ambíguo. Por um lado, os usuários seguem tão numerosos nas ruas que, quando escurece, fica impossível passar pelas vias onde se concentram. Por outro, dentro dos hotéis, muitos têm feito de tudo, ao menos nesses primeiros dias, para manter o ambiente salubre. 

Nos últimos quatro dias,  VEJA SÃO PAULO fez visitas diárias aos imóveis. Há um código de conduta acordado entre os hóspedes. A proibição de usar drogas dentro dos quartos, estabelecida pela prefeitura, iria por água abaixo sem a fiscalização. Os lugares pelos quais a reportagem passou, porém, não têm cara de cortiço. Valorizam, assim, a privacidade – o número de indivíduos por cômodo não passa de quatro, e casais tendem a ficar sozinhos ou com seus filhos. O espaço é equipado por aparelhos eletrônicos, cosméticos e outros itens, muitos adquiridos na rua. 

De acordo com o usuário Márcio Allan, de 42 anos, um dos cadastrados no programa, o “código de conduta” invisível foi consensual. “Decidimos juntos”, conta, fazendo referência a uma reunião entre os ex-moradores da favelinha antes de a hospedagem começar. Na conversa, ele fumava um cigarro do lado de fora do hotel Seoul, onde agora mora com mais três pessoas. “Só estou com o cigarro na boca por termos vindo para a calçada. Lá dentro, nem isso eu poderia fazer”

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Os desentendimentos também têm sido alvo de atenção. “Há alguns dias, teve briga aqui no hotel, o marido bateu na esposa”, relata. “Tiramos ele de dentro do quarto e colocamos na rua.” Manoel de Souza, 48 anos, dono do hotel Seoul, onde a briga aconteceu, confirma a história. “Teve briga, sim, mas nada de grave. O homem foi colocado pra fora, mas já está com a mulher dele em outro hotel que faz parte do programa.”

Antes de receber os usuários de crack em seu hotel, Manoel de Souza hospedava sacoleiros que vinham da Bolívia, do Peru e do Paraguai fazer compras na região. Para ele não foi problema receber os novos hóspedes. Dono do hotel Seoul e de uma pensão na Rua Barão de Piracicaba, o baiano de Guanambi já era solidário à situação dos viciados da Cracolândia e, afirma, há vinte anos os ajuda como pode.

Ele conta que o contrato com a prefeitura lhe garante 480 reais mensais por hóspede que estiver em seu hotel. Segundo ele, estão instalados no Seoul cerca de 115 pessoas e todos os quartos estão ocupados, o que dá um rendimento de aproximadamente 55 200 reais. “Recebê-los aqui me fez ficar alegre como um pai que vê o filho voltar para casa.”

Rotina aberta

A rotina a ser seguida começa cedo. A partir das 7h todos devem se apresentar no Bom Prato para o café da manhã, que é servido até às 8h30. É a estratégia para que compareçam à reunião feita na tenda da Secretaria da Saúde na Rua Helvetia, que começa às 9h. Dezenas saem de lá uniformizados e munidos de vassouras para fazer a limpeza das ruas da região. Em seguida, voltam ao Bom Prato para almoçar.

Nova rotina na Cracolândia
Nova rotina na Cracolândia ()
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A capacitação começa às 14h, na Barra Funda, para onde são levados em vans da administração municipal. “Na verdade, a capacitação é uma conversa, na qual se descobre o que eles faziam antes de vir morar na Cracolândia e o que eles estão aptos para fazer daqui para frente”, diz Carlos Alberto, diretor financeiro da ONG União Social Brasil Gigante, convidada pela prefeitura para participar do programa. Sérgio Luiz Bernardino, 50, está entre os que não pretendem continuar como varredores. Mostrando a carteira de motorista categoria E, ele diz que quer voltar a dirigir caminhões, como fazia antes de ir morar na Cracolândia. “É o meu sonho.”

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José Maria Vicente dos Santos, 40, afirma estar usando bem menos a droga. “Antes cheguei a usar quinze pedras por dia, na última semana inteira usei só duas”, diz.

O usuário Márcio Allan também quer parar. “Já cheguei a gastar 100 reais por dia no crack”, conta, mostrando algumas cédulas. “Hoje estou com dinheiro no bolso e não usei nada, quero parar.” Para ele, a venda e o consumo de drogas não diminuiu desde o começo do programa da prefeitura na semana passada. “É só dar alguns passos para conseguir qualquer droga”.

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