Com medo, moradores atrasam ocupação de prédio na Cracolândia
Das 81 famílias que receberam as chaves, apenas 36 se mudaram para o local, região sofre com série de roubos e confrontos entre usuários de drogas e polícia
A primeira das oito torres do Complexo Júlio Prestes, conjunto habitacional com 1 202 unidades erguido na Cracolândia por meio de uma parceria público-privada que movimentou 1,4 bilhão de reais, ficou pronta em abril. Mas, das 81 famílias que receberam as chaves, apenas 36 se mudaram para o local. O principal motivo para a demora é a série de confrontos entre usuários de drogas, policiais militares e guardas civis que assola a região nos últimos meses.
No mais grave deles, no sábado passado (14), um frequentador da área, de 35 anos, morreu de parada cardiorrespiratória durante uma confusão com a PM. No dia seguinte, para fugirem de um conflito com a polícia, dezenas de dependentes químicos derrubaram o tapume do canteiro de obras vizinho, na Rua Helvétia, e seis deles avançaram até a entrada do edifício, na Avenida Duque de Caxias. Uma porta de vidro foi estilhaçada com uma pedrada e a grade da Praça Júlio Prestes, recém-reformada, sofreu avarias.
“Vi pela janela aquela multidão se aproximando”, relata a estudante de direito Albênia Paiva. “Eu me tranquei no quarto com minha mãe e a cachorra”, diz ela, que se mudou em junho. Apavorados com a violência, outros dois membros da família desistiram de se instalar ali e preferiram ficar em um imóvel alugado na Bela Vista.
Com doze a dezessete andares, as torres reúnem apartamentos de 41 a 51 metros quadrados, 95% deles destinados a famílias com renda mensal entre 1 100 e 5 700 reais. Os proprietários fizeram financiamentos de até trinta anos, com mensalidades médias de 600 reais. Apesar de aguardadas por anos, várias unidades do complexo permanecem vazias.
“Assustei-me com a região e estou visitando-a aos poucos, para ir me adaptando à nova realidade”, diz o estudante de radiologia Dilan Nascimento Farias, que poderia ter se transferido para o endereço há um mês mas continua com sua família em Perus, na Zona Norte. “Meu apartamento fica no 1º andar e tem grade, mas tenho medo de que atirem pedras durante a noite”, explica.
O casal Cintia Silva e Rodrigo Ribeiro também compartilha da insegurança do vizinho e ainda não se mudou, preferindo permanecer por enquanto no Paraíso, na Zona Sul, onde paga 1 000 reais de aluguel em um apartamento. “Sou técnico de teatro e chego do trabalho por volta das 3 da manhã”, diz Ribeiro. “Os ‘craqueiros’ ficam em volta do prédio e dificultam a entrada de moradores.”
Quem decidiu se mudar de uma vez se viu forçado a montar uma estratégia própria para enfrentar a insegurança da região. “Vou instalar uma chave tetra e um olho mágico na porta, e todos os dias tenho acompanhado minha esposa e filha de 15 anos até o ponto de ônibus do outro lado da rua”, diz o taxista João Amaro Moreira. “O centro de São Paulo sempre foi degradado. Estou otimista. Acredito que fazemos parte de uma revitalização”, afirma.
Antes de se mudar, há duas semanas, a assistente social Ana Maria Lima levou o filho de 12 anos para conhecer a área em frente à Estação Júlio Prestes, onde centenas de dependentes químicos se aglomeram. “Expliquei que ali vivem pessoas doentes e devemos ter cuidado com quem se aproxima”, diz. “Se preciso ir a um evento à noite, acabo dormindo na casa da minha mãe, na Zona Norte.”
Quando ficou pronto, o condomínio sofreu duas invasões, em abril. Na ocasião, cerca de trinta pessoas depredaram e roubaram objetos como cabos de eletricidade, pias e medidores de energia. Atualmente, os momentos de tensão ocorrem principalmente durante o serviço de limpeza da prefeitura, realizado pelo menos três vezes ao dia.
Responsável pelo complexo, a Secretaria Estadual da Habitação informou que houve recentemente um aumento no número de agentes de segurança privada, de catorze para 33. Além disso, o empreendimento foi rodeado por muros com arame farpado. Portas, janelas e corredores do térreo e do 1º andar ganharam grades — nada disso estava previsto no projeto original. “Nossa intenção é derrubar o muro quando todo o residencial estiver entregue, até setembro de 2019, se acharmos que ele não é mais necessário”, diz o secretário Paulo Matheus. “Até lá teremos mais de 4 000 moradores, uma creche e, em 2020, uma escola de música. Acredito que a segurança da área vai melhorar.”
Parceiro do governo do estado na empreitada, o consórcio Canopus montou uma equipe de sete assistentes sociais para atuar pelos próximos cinco anos junto às famílias. Uma vez por semana, eles se reúnem para debates sobre convivência e gestão do condomínio. A questão da segurança é um dos tópicos mais frequentes. “Explicamos que os novos habitantes precisam se apropriar do entorno. A região é muito rica em serviços e cultura e, com isso, os problemas da Cracolândia diminuirão”, argumenta a coordenadora do trabalho técnico-social Rosani Pinto.
Não é a primeira vez que o poder público afirma que o problema será resolvido. Em maio de 2017, uma megaoperação do governo do estado e da prefeitura prendeu 48 traficantes e acabou com o “feirão das drogas”. Na época, o então prefeito João Doria declarou, com pompa, “o fim da Cracolândia”. Pouco mudou. Seu antecessor, Fernando Haddad, dizia que 80% do fluxo de usuários ali havia caído em sua gestão, assim como o número de pontos de consumo de crack pela cidade. Os novos moradores terão de conviver com o fracasso de repetidas promessas.