Como paulistanos lidam com convivências excêntricas
Bar e centro espírita no mesmo prédio, restaurante refinado ao lado de casa de garotas de programa...
É noite de sessão no Centro Espírita Mensageiros de Paz e Esperança (Cempe), instalado há dez anos no 1º andar de um predinho na esquina das ruas Mourato Coelho e Artur de Azevedo, em Pinheiros. Antes de começarem os trabalhos, os frequentadores conversam baixinho no ambiente de luz fraca. De repente, um zumbido, seguido de trepidação, atrapalha a calmaria e cria um clima de suspense. Logo se percebe, porém, que o barulho não é obra do além. O responsável, por sinal, está bem vivo e dá expediente no térreo. Trata-se do empresário Nelson Salim, dono de um bar batizado com o seu nome, especializado em culinária árabe. Quando ele liga os ventiladores de teto do estabelecimento, o ruído perturba a concentração dos espíritas. Apesar do contratempo, o clima entre os vizinhos nunca esquentou. “O Salim é solícito e desliga os equipamentos sempre que pedimos”, conta o médium Gustavo Rocha. O dono do bar também não reclama de quase nada. Afirma ficar incomodado apenas com as almas penadas que, segundo ele, rondam sua propriedade. “Já vi vultos por aqui, mas não tenho medo”, diz, em tom sério.
Dividir o muro da casa ou a parede do apartamento com um estranho resulta, não raro, numa relação tensa. Barracos entre moradores costumam engordar a crônica policial e até renderam bons clássicos da música popular, como o samba “A Semente”, de Bezerra da Silva, cujo protagonista acaba confundido com um traficante por culpa do dono da residência ao lado, que transformou o quintal numa plantação de maconha. Muitas confusões que começam por motivos banais terminam na Justiça. “Barulhos e vazamentos estão entre as principais causas dos desentendimentos”, afirma Juliana Ferreira, advogada e conciliadora do Tribunal de Justiça de São Paulo. Por isso, os exemplos de boa convivência entre gente de mundos tão diferentes podem ensinar algo em termos de tolerância e civilidade.
Como pode reagir uma pessoa que descobre, de uma hora para a outra, que vai ter de dividir o quarteirão com uma casa de diversão masculina? Isso aconteceu com o empresário Paulo Kress, sócio do requintado restaurante Kaá, no Itaim. No ano passado, ele estranhou a misteriosa reforma que estava sendo realizada num prédio de quatro andares a 100 metros dali. Depois de um tempo, ficou preocupado ao saber, através do burburinho das conversas entre os garçons, que o local em questão seria o novo endereço do Café Photo, conhecido ponto de garotas de programa. Dias após o início das atividades da casa, foi um alívio para ele ver que seus temores não faziam sentido. “A entrada do Café é feita pelo estacionamento lateral, então nem dá para notar o fluxo de pessoas”, diz Kress. “Não fomos afetados em nada, porque o cliente de lá não quer sair com a garota e vir para um lugar onde vai ser visto por todos.” Pode-se dizer que os responsáveis pelo Photo aprenderam com o tempo: no início dos anos 90, quando o negócio funcionava numa rua residencial do bairro, viviam em pé de guerra com os proprietários de apartamentos da região.
As zonas comerciais mais movimentadas da cidade acabam propiciando várias misturas curiosas. Um pedaço da Rua Frei Caneca concentra a boate gay A Lôca, dois botecos disputadíssimos, a Paróquia do Divino Espírito Santo, um motel e a Casa Pastoral, que recebe encontros dos Narcóticos Anônimos (NA). “Pediam para a gente evitar pessoas e lugares ‘da ativa’, só que as reuniões aconteciam à noite”, lembra Decka Barcelos, ex-frequentadora do NA e da vida noturna do bairro. Ela conta ter se esforçado muito para escapar às tentações. “Encontrava meus conhecidos na rua nos intervalos e estava em uma região de muito fácil acesso às drogas.”
Outras vizinhanças excêntricas dão motivo a gracejos. Um drive-in e motel na Avenida Alcântara Machado fica colado a uma loja de artigos de decoração para bebês, a Decorita Baby, que também está em frente a uma concorrente, a Alô Bebê. “Quem sai dali já sabe onde pode comprar os produtos para, quem sabe, a futura criança”, brinca a vendedora Teresa Arnaboldi, da Decorita.