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Conheça as obras de expansão do metrô a 45 metros de profundidade

Para construir catorze novas estações e 17 quilômetros de trilhos, 8 500 operários abrem túneis

Por Daniel Nunes Gonçalves
18 set 2009, 20h27

A gaiola dá um tranco e começa a descer vagarosamente. Dentro do elevador, dez operários se distanciam da luz natural, do vento e dos sons da rua. Próximo à futura Estação Vila Prudente, o Poço Cavour, um buraco de 30 metros de profundidade, é um dos 42 canteiros de obras do metrô paulistano. “Os túneis de escavação são as áreas de maior risco”, explica a auxiliar de segurança Adriana do Couto, responsável por conferir se todos usam os equipamentos necessários: capacetes, botas, máscaras, óculos, protetores de ouvido e, em alguns casos, roupas plásticas, capas de chuva e luvas. Mais um baque e chega-se ao fundo. “Andem com atenção”, recomenda Adriana, que imediatamente retorna à superfície. Segundo os operários que trabalham em túneis, conhecidos como tuneleiros, mulher ali dá azar. O caminho pelo barro rumo ao escuro da caverna, enquanto se sentem o gotejamento das paredes úmidas e o cheiro de diesel das máquinas barulhentas, anuncia a visão de um admirável mundo subterrâneo, por onde circula parte do batalhão que desde 2004 constrói 17 quilômetros de vias e catorze estações. Com investimento de 10,1 bilhões de reais, a maior obra de engenharia urbana de túneis da história do Brasil busca tirar o atraso na expansão dos trilhos. “O objetivo é concluir até 2012 o equivalente a um terço do que foi produzido nos quarenta anos anteriores”, afirma o secretário de Transportes Metropolitanos, José Luiz Portella. Atualmente, a cidade conta com 61,3 quilômetros de vias em quatro linhas, que ligam 55 estações – muito pouco para seus 3,3 milhões de usuários por dia.

Debaixo da terra, a rotina sob a pacata Rua Cavour, que dá nome ao poço, é a mesma do subterrâneo de vias movimentadas como a Avenida Rebouças e a Rua Oscar Freire. Para amenizar a escuridão do ambiente há refletores de luz de 15 em 15 metros. Turbinas de ventilação colocadas em respiros abertos a cada 500 metros trazem ar da superfície, ao mesmo tempo em que expelem gases tóxicos de caminhões e tratores levados às profundezas por guindastes. Quem tem tendência à claustrofobia é imediatamente reprovado no teste de admissão das nove empreiteiras responsáveis pelas obras. Divididos em três turnos, 8.500 homens trabalham 24 horas por dia na expansão do metrô. Constroem a Linha 4 – Amarela (que terá 12,8 quilômetros e vai ligar a Luz à Vila Sônia) e expandem a Linha 2 – Verde (que por enquanto vai da Vila Madalena ao Alto do Ipiranga, mas que, com mais 4,3 quilômetros, chegará à Vila Prudente).

“O serviço era bem mais difícil 22 anos atrás”, conta Laércio do Nascimento, “frentista de túnel” na Estação Sacomã, que aos 8 anos de idade se esfalfava em uma mina de carvão e virou tuneleiro em 1987. “Eu suava feito doido para preparar o concreto manualmente, sem as máquinas que existem hoje.” Orgulhoso por ter furado “no braço” quatro estações da Linha 1 – Azul, Nascimento comanda um robô programado para fazer o trabalho duro. A evolução da tecnologia é evidente quando se comparam os métodos de escavação. Hoje em dia, o impacto na superfície é mínimo. “Para os primeiros 6,5 quilômetros de galerias metroviárias do Brasil, entre o Jabaquara e a Vila Mariana, em 1968, abríamos valas com 15 metros de profundidade ao longo de todo o percurso”, lembra o presidente do Metrô, José Jorge Fagali, que entrou na empresa naquele ano e hoje é o segundo funcionário com mais tempo de casa. “Por causa desse método, vias movimentadas como as ruas Vergueiro e Domingos de Moraes e a Avenida Jabaquara ficaram parcialmente interditadas por até três anos.” O número de desapropriações também foi reduzido drasticamente desde então: de 74 imóveis por quilômetro da Linha 1 – Azul para dezesseis imóveis por quilômetro na Linha 4 – Amarela. Nas intersecções com as linhas já existentes, o topo dos novos túneis chega a ficar a apenas 7 metros de distância da base dos túneis em operação.

Vedete dos canteiros por onde passa, o chamado megatatuzão é um dos principais responsáveis pelo nível de excelência das construções. Com o peso de 1.800 toneladas (o equivalente a 1 400 peruas Kombi), a escavadeira rastejante foi construída na Alemanha especialmente para furar os 7,5 quilômetros entre as estações Luz e Faria Lima. Suas peças vieram do Porto de Santos para o Largo da Batata, em Pinheiros, em 120 carretas. Com 75 metros de comprimento, foi montada a 30 metros de profundidade. A cavidade que abre na terra tem 9,5 metros de diâmetro e serve de passagem para duas pistas do metrô, uma de ida e outra de volta. Movida por energia eletro-hidráulica, utiliza uma potência de 5 400 kVA, igual à usada em uma cidade de 40 000 habitantes. Tudo isso para se mover apenas 5 centímetros por minuto. A supermáquina de 90 milhões de reais mobiliza 200 pessoas para funcionar. “O megatatuzão faz tudo: escava em média 20 metros por dia ao mesmo tempo que cobre as paredes do túnel com anéis de concreto”, afirma o ajudante de produção Paulo César Nóbrega, ex-vigilante da cidade paulista de Fartura, que tem sua primeira experiência profissional debaixo da terra. Embora o capacete vermelho mostre que Nóbrega se encontra no degrau mais baixo da hierarquia das obras (os engenheiros, de cinza, estão no topo da paleta de cores), ele conhece bem a máquina que maneja. Fala com propriedade dos anéis que impedem o túnel de desmoronar. Cada um deles é formado por nove partes de 4 toneladas e 35 centímetros de espessura. Hoje, o megatatuzão está parado na área da nova Estação República. Em maio, volta ao batente para concluir o último 1,8 quilômetro da Linha Amarela. Sairá das profundezas em julho, por uma vala próxima ao Terminal da Luz. “Estudamos a possibilidade de aproveitar 40% de sua estrutura nas obras de ampliação da Linha 5 – Lilás”, diz o gerente de produção Carlos Henrique Maia. “O resto vai para o lixo.”

Ao contrário dos tatuzões menores, que tinham sido usados no trecho do centro, na Linha 1 – Azul, e da Avenida Paulista, na Linha 2 – Verde, o megatatuzão possui uma câmara frontal que equilibra as pressões da terra e de possíveis lençóis freáticos que encontre pelo caminho – daí seu nome verdadeiro, Shield Earth Pressure Balanced, algo como “escavadeira de pressão balanceada de terra”. A novidade acaba com a antiga prática de preenchimento de uma parte do túnel com ar comprimido para evitar desmoronamentos. “Os funcionários precisavam trabalhar em turnos menores, pois era insalubre fazer esforço físico por muito tempo com pressão elevada”, conta o engenheiro civil Tarcísio Celestino, presidente do Comitê Brasileiro de Túneis. “Tratava-se de um método pouco produtivo.” No sistema atual, apenas a frente do megatatuzão, que pesa sozinha 700 toneladas, tem uma pressão equivalente à do entorno. Depois de passarem três horas ali para realizar limpeza e eventuais consertos, técnicos esperam duas horas em uma câmara hiperbárica. “É como aquelas usadas por mergulhadores de profundidade para regularizar a pressão do corpo antes de voltar à superfície”, explica o mecânico colombiano Luiz Gimenez, que ajudou a implementar metrôs em Portugal e na Venezuela. Ele é um dos vinte estrangeiros de cinco países que vivem em São Paulo especialmente para manejar o Shield.

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Uma realidade menos confortável é encarada pelos trabalhadores envolvidos na construção das estações propriamente ditas e dos túneis de terrenos rochosos ou mistos – caso do percurso entre a Faria Lima e a Vila Sônia, na Linha 4 – Amarela. O sistema de escavação ideal para esses trechos é o semimecânico, chamado NATM (New Austrian Tunneling Method, método austríaco que, apesar do nome, não tem nada de novo, pois foi patenteado na década de 60). A uma velocidade de 4 metros por dia, os caminhos são abertos por homens pilotando escavadeiras, instalando aros metálicos de sustentação e jateando concreto manualmente. Quando o terreno é muito rígido, entram em ação os “cabos de fogo”, operários responsáveis pelo manuseio de explosivos. “Com a escavadeira, levamos de duas a três horas para avançar 80 centímetros”, afirma o mestre-de-obras da Estação Tamanduateí, Sivaldo Gomes da Silva, com experiência de dezesseis anos em tunelaria. “Já fiquei só de cueca para aguentar o calor de 48 graus.” Entre os macetes que o ofício lhe ensinou está o uso de jornais entre as meias e as botas para reduzir a umidade nos pés. “Tenho amigos que falam alto e gesticulam muito, de tanto que trabalharam com barulho acima de 90 decibéis no tempo em que não se usavam protetores de ouvido”, conta.

A engenharia tuneleira é complexa. São necessários cerca de três anos para fazer a investigação geológica, o mapeamento das eventuais redes de tubulação subterrâneas e o desvio de dutos de água, gás, esgoto e telefone, além de cabos elétricos. Uma equipe de arqueologia escarafuncha o terreno: louças e cerâmicas do século XIX foram encontrados em Pinheiros e uma estrutura residencial do início do século XX, em Higienópolis. Alguns terrenos exigem que sejam rebaixados provisoriamente os lençóis freáticos. No entorno do novo Terminal da Luz, foi preciso abrir 89 poços de cerca de 30 centímetros de diâmetro, até que se baixasse o nível da água para mais de 45 metros. Maior que a Sé e com previsão de receber 600 000 pessoas por dia em suas duas linhas de metrô e três da CPTM, a nova Luz consumiu, sozinha, mais de 10 000 metros cúbicos de concreto, o que daria para encher mais de cinco piscinas olímpicas. Também impressiona a quantidade retirada de areia, argila e rochas. Só a câmara dianteira do megatatuzão engoliu 1,2 milhão de metros cúbicos até agora, com todo esse material sendo transportado por uma esteira que chegou a medir 5 quilômetros entre a Praça da República e a futura Estação Faria Lima. Dali, a terra foi removida em caçambas içadas por gruas e transportada em caminhões para aterros em São Caetano do Sul e Carapicuíba. Se ela enchesse uma caixa do tamanho de um campo de futebol, teria a altura de um prédio de cinquenta andares.

Por trás desse esforço está uma massa de homens-tatu anônimos com histórias de vida bastante parecidas. São migrantes do Norte e do Nordeste, como o ex-faxineiro pernambucano Samuel Ferreira da Silva e o ex-garimpeiro baiano Geraldo Dourado Ramos, que trabalham como assistentes gerais ganhando perto de 1 000 reais por mês. Muitos vivem longe da família, dividindo moradia na periferia com outros peões. Os mais experientes se orgulham de ter no currículo túneis de rodovias e de usinas hidrelétricas. Disputam ainda quem abriu mais quilômetros de metrô. Contados como feitos heroicos, os perigos de sua profissão são lembrados nas rodas de sinuca e cerveja no fim do expediente. O acidente na Estação Pinheiros, em janeiro de 2007, no qual morreram sete pessoas, tornou-se o episódio mais marcante, relembrado no último dia 25 com o tombamento de um caminhão à beira do abismo da mesma estação.

É por correrem riscos assim que os tuneleiros botam fé na proteção de Santa Bárbara, considerada a padroeira dos trabalhadores subterrâneos. Sua imagem pode ser encontrada nos canteiros de obras. Os momentos de maior comemoração são os encontros de túneis, quando as várias frentes de escavação semimecânica se cruzam debaixo da terra. “No dia do encontro, a gente desce de roupa limpa sabendo que vai ter pelo menos uma caixa de espumante de cada lado da parede a ser rompida”, afirma o tuneleiro Laércio do Nascimento. Satisfação ainda maior é ver a obra pronta. “Eu não resisto. Quando passo de metrô em alguma estação onde trabalhei, cutuco o passageiro ao lado e digo: ‘Fui eu que fiz'”, conta Nascimento. “Ainda que a pessoa olhe para toda aquela estrutura e responda, como fizeram uma vez: ‘Você? Duvido!'”.

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