O “parque” vazio do Sambódromo e os barracões inacabados de 200 milhões
Espaços ligados ao carnaval paulistano têm problemas estruturais e baixíssima integração com os bairros ao redor
Quando anunciou a concessão do Complexo do Anhembi ao setor privado, em janeiro, o prefeito Bruno Covas (PSDB) revelou um incômodo a respeito do Sambódromo de São Paulo, que ocupa um quarto daquela área: “ É muito pouco usado fora do período de Carnaval”, disse. Não é exatamente novidade.
Em 1996, ainda na gestão de Paulo Maluf, o mesmo problema atormentava a municipalidade. “O espaço serve apenas para o desfile das escolas de samba”, reclamava Ricardo Castello Branco, então responsável pela Anhembi Turismo. No ano seguinte, o sucessor Celso Pitta retomaria a cantilena: “Esse equipamento urbano não é adequadamente usado”. Já houve promessas de quadras de tênis, Parque da Mônica e de escola de gastronomia para aproveitar aquele semi-deserto de 100000 metros quadrados a apenas 3 quilômetros do centro
A investida mais recente surgiu às vésperas das eleições de 2020. Em outubro, Covas e a SPTuris, responsável pela passarela, correram para anunciar “uma nova área de lazer” para São Paulo no Sambódromo. Segundo funcionários envolvidos no projeto, a novidade foi preparada às pressas em cerca de um mês. Na presença da imprensa, o prefeito inaugurou as melhorias: uma ciclofaixa ao redor das arquibancadas, cinco food trucks e um pequeno museu com fantasias carnavalescas. A pista dos desfiles também seria aberta à população, para a prática de atividades de lazer.
Quatro meses depois, pouco progresso. A ciclofaixa segue sem integração com a malha cicloviária da cidade — pelo menos até as obras na Avenida Olavo Fontoura serem concluídas. Os food trucks até tentaram operar durante a semana, mas, sem público, agora aparecem somente aos sábados e domingos. Problemas estruturais como as goteiras, infiltrações e rachaduras no asfalto nem sequer começaram a ser resolvidos.
“Desde outubro, recebemos 15 000 visitantes, a maior parte nas últimas semanas graças a divulgações feitas pelas escolas de samba. É realmente pouco”, diz Luiz Alvaro de Menezes, presidente da SPTuris. Para comparação, a ciclovia da Marginal Pinheiros atraiu 80 000 pessoas apenas em janeiro. Na sexta-feira (12), VEJA SÃO PAULO visitou o Sambódromo e encontrou dois usuários ao longo de uma hora.
Na futura gestão privada, os planos para o Sambódromo se mantêm modestos. “A principal perspectiva é que seja feito um restaurante em um dos camarotes”, diz Menezes. A dificuldade em passar o Anhembi para o setor privado indica o tamanho do desafio. Em 2019, a prefeitura tentou vender o complexo por 1,45 bilhão de reais. Não houve interessados. Mudou o formato para uma concessão temporária, cujo lance mínimo seria de 54,5 milhões de reais. Após mais uma abaixadinha no preço, a GL Eventos arrematou a área por 53,7 milhões de reais para explorá-la por trinta anos.
“Será bom para a cidade. Após esse período, o espaço voltará para a prefeitura com as melhorias feitas pelo concessionário”, diz Menezes. A questão pode ter outro ângulo. “Nesse modelo, as empresas não fazem grandes investimentos estruturais, justamente porque terão de devolver a área”, diz o urbanista Nabil Bonduki, professor da FAU-USP. “Além disso, tornou-se improvável que a prefeitura consiga fazer uma operação urbana mais ampla para revitalizar a região, sem contar com o Anhembi no projeto”, diz. Bonduki atuou na gestão Haddad, que, por sinal, tentou emplacar um projeto chamado Arco Tietê naquele trecho, ideia que também não foi para a frente.
O Sambódromo paulistano, construído na gestão Luiza Erundina, nasceu controverso. O discutível projeto de Oscar Niemeyer sofreu alterações, como a inclusão de banheiros de alvenaria atrás das arquibancadas e de uma torre para os jurados, o que levou o arquiteto a renegar a autoria. A nova concessão reservará à prefeitura 75 dias por ano de uso da passarela. Eles serão destinados ao Carnaval (sessenta dias ao todo), desfiles cívicos e festas religiosas — uma exigência do lobby das igrejas na Câmara Municipal, para não pagar aluguel aos novos donos privados. Entre 2017 e 2019, a média de ocupação do Sambódromo foi de 47% ao longo do ano, sendo 17% (ou sessenta dias) de uso carnavalesco. Ou seja, após décadas de promessas, o Sambódromo ficava 190 dias por ano vazio. Em 2020, com a pandemia, o uso total caiu para 36%.
A poucas quadras do Anhembi ficam as duas Fábricas do Samba, onde as escolas preparam os carros alegóricos e fantasias. Pelo menos era essa a ideia. A chamada Fábrica do Samba 1, na Barra Funda, começou a ser construída em 2012 e tinha a inauguração marcada para janeiro de 2015, mas segue em obras. Somente sete das catorze escolas do grupo especial contam com galpões no espaço. As áreas que deveriam abrigar outras sete agremiações tiveram a construção retomada em novembro, com nova promessa de entrega para o fim deste ano.
Orçada inicialmente em 124 milhões de reais, a estrutura já consumiu 183 milhões — e precisará de mais 21 milhões para ficar pronta. A Secretaria de Obras alega que precisou readequar o projeto original, da gestão Kassab. Responsáveis pela Liga das Escolas de Samba, que administra o espaço, afirmam que as obras sempre contaram com a boa vontade orçamentária de todos os prefeitos no período, além dos governos federais (que deram 40 milhões de reais à empreitada) e de vereadores como Milton Leite (DEM) e Celso Jatene (sem mandato).
As demais escolas ficam relegadas à Fábrica do Samba 2, na Vila Guilherme, com barracões mais modestos. Palco de um incêndio em 2019, o local funciona sem o alvará dos bombeiros. “Nosso último Carnaval foi feito em uma tenda improvisada atrás dos barracões”, diz Pedro Silva, ex-diretor da Vai-Vai. No Rio de Janeiro, os desfiles são montados na Cidade do Samba.
Bem integrado ao entorno portuário, o espaço atrai milhares de turistas com bares, restaurantes e shows ao longo do ano. Já o entorno do Sambódromo carioca, da famosa Marquês de Sapucaí, continua sendo um quase deserto de moradias ou negócios, 37 anos após sua inauguração. Um túmulo do samba carioca, apesar dos repetidos investimentos públicos e de uma reforma geral em 2012. O complexo paulistano teve a quem puxar.
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Publicado em VEJA São Paulo de 24 de fevereiro de 2021, edição nº 2726