Comércio popular do Brás e Bom Retiro se reinventa na crise
Veja as estratégias traçadas pelos redutos da moda para seduzir a freguesia diante de um cenário econômico pouco favorável
Fazia três anos que o movimentado comércio popular paulistano amargava faturamento em queda livre. “A bagunça política e econômica dificultou os negócios”, afirma Nelson Tranquez, presidente da Câmara de Dirigentes Lojistas do Bom Retiro. Segundo a Confederação Nacional do Comércio, 2016 foi o pior ano da história do varejo no país. A sangria estancou pela primeira vez nos últimos meses.
Em comparação com o mesmo período do ano passado, entre janeiro e maio, as vendas dos lojistas do Bom Retiro e do Brás, os principais redutos da moda acessível, cresceram 5%, desempenho acima da média. No varejo geral do setor de vestuário e calçados na capital, o aumento foi de 1%, de acordo com estimativas da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo (FecomercioSP).
No Brás, circulam por dia cerca de 100 000 clientes dispostos a abrir a carteira nas 5 500 lojas instaladas por lá, entre atacado e varejo. No Bom Retiro, cuja principal rua é a movimentada José Paulino, são 40 000 pessoas. Em um cenário de pontos encerrando as atividades, demissão de funcionários e vendas em baixa, os empresários desses bairros precisaram recorrer à criatividade para sair do buraco. Isso implicou apostas nos meios digitais, investimento em marketing, treinamento dos empregados e, claro, preços ainda mais sedutores.
Com isso, os empreendedores criaram uma espécie de manual de procedimentos que tende a ser copiado pelo restante do varejo. “O comércio popular é como um laboratório. Se dá certo ali, emplaca em outras áreas, como aconteceu com os parcelamentos das compras”, explica Altamiro Carvalho, economista da FecomercioSP. Ao longo da reportagem, confira detalhes das táticas usadas para conseguir fazer a travessia pelo turbulento mar da crise.
Vestidas para postar
“Mari Dalla está conosco, cliente. Vamos entrar?”, anuncia Susanna Kim, gerente da loja Linny, do Bom Retiro. Ao ouvir o nome, uma moça se anima. Tira fotos, grava vídeos e — missão cumprida! — faz compras. Muitas compras. Certo. Mas quem é Mari Dalla?
Trata-se de uma das integrantes de um ofício made in Bom Retiro, vertente das tão celebradas influenciadoras digitais: as blogueiras do atacado. Moças bonitas, estilosas e populares (a loira de Americana, no interior, tem mais de 220 000 seguidores no Instagram) embolsam uma grana boa para comparecer aos estabelecimentos do bairro, posar vestidas com peças de lá e, enfim, virar a cara do negócio na internet.
O Bom Retiro do século XXI fez da web uma vitrine — e, nesse caso, elas são as manequins. “Cheguei a ser expulsa de uma loja de departamentos porque tirei fotos das peças”, conta Gabi Sales, alagoana acompanhada por 1,1 milhão de pessoas. “Hoje não só sou bem-vinda, como ainda recebo para comparecer. Parece que o jogo virou, não é mesmo?”
É, é mesmo. Blogueiras do atacado embolsam entre 3 000 e 8 000 reais para ir a um comércio, fazer uma média com a clientela e posar com dez looks. Destes, três vão para suas redes sociais. Os demais ficam no acervo do contratante, que pode usá-los como bem entender. Por exemplo, para exibir num telão na butique ou mesmo em catálogo, enviado por WhatsApp para clientes. Às vezes, as imagens delas vão parar longe. Literalmente.
“Foi um choque quando me vi no site AliExpress”, conta Ariane Cânovas, com 710 000 seguidores. O que aconteceu: ela posou com um vestido de festa de 10 000 reais, alguém na China gostou, criou uma versão de 15 dólares e usou a foto no e-commerce, que vende para o mundo inteiro.
O investimento do atacado nessas moças tem a ver também com branding. É comum elas combinarem peças do Bom Retiro com acessórios das grifes Chanel e Yves Saint Laurent. “A gente monta nosso hi-lo: uma peça da etiqueta com algo internacional”, ensina Fê Marques. Cientes do ofício efêmero, algumas delas pensam em um plano B. “Pretendo abrir minha marca de atacado”, afirma a goiana Raiza Marinari.
Reciclagem de funcionários…
Na guerra constante pelas vendas, nada mais lógico que reforçar as habilidades de quem atua na linha de frente: os vendedores. O Mega Polo Moda, o principal shopping do Brás, mantém uma iniciativa pouco comum. Oferece desde março treinamento aos funcionários de seus lojistas — o padrão é cada marca cuidar da formação e da reciclagem de seu pessoal.
Gerentes, vendedores e trabalhadores da área administrativa se encontram para aulas sobre técnicas de venda, atendimento ao cliente e até mesmo programação neurolinguística realizadas quinzenalmente na sexta, dia de menor movimento no local (no atacado, os dias nobres são de segunda a quarta, quando os lojistas adquirem o que venderão no varejo no fim de semana seguinte).
“A gente gosta de lembrar que seres humanos conversam entre si, CNPJs, não”, afirma Adelino Basílio, diretor comercial do local, que pretende atender 1 900 profissionais até o fim do ano com o programa.
… e de matéria-prima
A ideia de transformar “lixo” em dinheiro norteia a produção da Malagueta, encantadora loja de roupas e produtos para casa na Rua José Paulino. Para reduzir o desperdício, a marca apostou na criação de acessórios feitos com matéria-prima antes descartada. “Aproximadamente 20% do tecido cortado na fábrica vira retalho”, afirma Fernanda Matsumoto, uma das designers da empresa.
“Aproveitamos praticamente tudo.” O vasinho de cactos da foto abaixo é um exemplo. Custa 25 reais. Como os dois bairros somam 3 000 fábricas, o potencial de reaproveitamento é imenso.
Em média, 10% do material ali utilizado é jogado fora. Um projeto bem-intencionado, mas ainda sem data para sair do papel, que poderia mudar esse cenário é o Retalho Fashion, do Sinditêxtil-SP. A ideia é instalar no Bom Retiro uma oficina para separar e processar os resíduos, que seriam doados a catadores.
Visual caprichado
Deixar as fachadas e as vitrines mais atraentes é uma tática utilizada desde sempre pelo comércio. Porém, ela tem se intensificado no segmento popular (conhecido por ambientes nem sempre muito atrativos). Não basta a loja ser bonita, precisa ter cara de que, se transplantada da José Paulino para pontos chiques como o Shopping Iguatemi ou a Rua Oscar Freire, se encaixaria como uma luva.
Para isso, entraram em cena profissionais que têm no currículo passagens por grandes grifes, caso da especialista em visual merchandising Juliemy Machado, de 32 anos. Seu trabalho é pensar não só na decoração, mas também na seleção de produtos e em branding, ou seja, a identidade da marca. Passou pela nacional Ellus e atende a italiana Fendi.
“O Bom Retiro está para o Brasil como Nova York para o mundo: o que rola por aqui influencia o comércio do resto do país”, diz ela, que no bairro atende marcas de atacado como Manacá e Aqua.
Novidade todo santo-dia
A tendência fast-fashion, que consiste em lançar novas coleções em intervalos curtos, engatou a quinta marcha no segmento de vestuário popular. Em vez de as araras se renovarem com intervalos médios de quinze a vinte dias, a aposta de muitos empresários é fazer isso num prazo bem mais curto.
“A gente estima que cheguem de cinco a oito modelos novos por dia”, diz Kelly Lopes, secretária executiva da Câmara de Dirigentes Lojistas do Bom Retiro. “Quem não compra hoje pode não achar o mesmo artigo amanhã.”
Assim, os comerciantes esperam que os clientes apareçam com maior frequência e acabem investindo mais. “Se antes eu vendia um tipo de jeans que virava febre e todos queriam ter, agora preciso de variedade. As pessoas não gostam de parecer todas iguais”, acredita Lauro Pimenta, conselheiro executivo da Associação de Lojistas do Brás.
Gastronomia bacana
Comer bem não é exatamente a primeira coisa que vem à mente quando se fala em Bom Retiro. Ainda que o bairro abrigue restaurantes bons e tradicionais, caso do Acrópoles, foi só recentemente que desembarcaram por ali estabelecimentos moderninhos, desses que os hipsters adoram comparar com os de Nova York.
Nesse quesito, o Béni Café não tinha como ser mais Brooklyn. Só dá para lembrar que se está em São Paulo quando turmas de sacoleiros chegam em peso para provar os (deliciosos) bolos de cenoura com brigadeiro, coco e leite Ninho, além de tirar fotos para as redes sociais.
Inaugurado há um ano, o UM Coffee Co. segue a mesma linha e virou alternativa para o brunch (R$ 32,00). Entre os restaurantes, há várias opções de culinária coreana, colônia que predomina no pedaço. Mas não só: apesar de seu dono ser da Coreia do Sul, o Pho.366 serve pratos do Vietnã. Tem como especialidade variações de uma sopa de macarrão de arroz chamadas de pho.
Baixa no aluguel
Há dois anos, locar uma loja em um ponto nobre do Brás ou do Bom Retiro custava 30 000 reais mensais. Hoje, sai por cerca de 20 000 reais. Muitos proprietários abriram mão também do pagamento da luva, que chegava a 1 milhão de reais. No Shopping Mega Polo Moda, os lojistas ganharam desconto de 20% no auge da crise, em 2016 (agora os valores voltaram ao normal).
Com isso, boa parte dos inquilinos aguentou firme, ao contrário do que ocorreu em muitos centros de compras mais sofisticados, que ficaram com corredores cheios de tapumes.
“O aumento do preço do metro quadrado no Brás entre 2012 e 2016 foi de 8%. No mesmo período, a inflação chegou a 40%, ou seja, o valor real desses empreendimentos diminuiu”, diz Celso Petrucci, economista-chefe do Secovi, o sindicato da habitação de São Paulo.
Clientela na palma da mão
Enquanto muita gente usa o WhatsApp para jogar conversa fora, os comerciantes paulistanos aproveitam o aplicativo de maneira bem mais rica. Literalmente. Segundo a Câmara de Dirigentes Lojistas do Bom Retiro, em média 20% do volume de vendas no bairro — tanto no varejo quanto no atacado — se dá pelo aplicativo. É comum ver vendedoras com iPads, como na Codificada, do empresário Glauco Raucci.
Elas trabalham com uma base de clientes cadastrados, anunciando as novidades e a reposição do estoque. “Há quatro anos, uma funcionária sugeriu que eu apostasse na internet, mas duvidei”, comenta. “Hoje me arrependo de não ter entrado nessa antes.”
Vigilância reforçada
Cenas gravadas no Brás nos últimos anos pareciam coisa de filme de terror: gangues de criminosos espancavam e roubavam transeuntes e passageiros de ônibus, chegando a tirar motoristas de dentro do carro para fazer a limpa. Isso ajudou a afastar
ainda mais a clientela durante os tempos difíceis.
Na tentativa de diminuir a violência, foram instalados no bairro neste ano 258 câmeras de segurança ligadas diretamente ao Copom, a central da Polícia Militar, e ao Detecta, o sistema de monitoramento do governo estadual.
Os lojistas também receberam um login e uma senha para ter acesso às imagens. O mesmo sistema se encontra em estudo para o Bom Retiro, cujas ruas são vigiadas diariamente por cerca de setenta seguranças e policiais.
Ainda no Brás, os empresários negociam com a prefeitura o reforço no pedaço da Operação Delegada, o “bico oficial” que policiais militares fazem para a gestão municipal nas horas vagas. “Gostaríamos de ter 150 agentes a mais”, afirma Lauro Pimenta, da Alobrás.
Na prática, a tarefa principal desses vigilantes é coibir ambulantes, mas acredita-se que sua presença, com farda e equipamento da corporação, colabore para espantar a bandidagem.
Mais promoções e descontos
Na fase pré-crise, o padrão era que as épocas de troca de coleção fossem marcadas por queimas de estoque e liquidações homéricas. Agora, oferecer promoções virou regra, em vez de ser exceção. E não só de produtos prestes a ficar datados, mas de peças de novas coleções.
Basta dar uma olhada atenta nas vitrines da Rua José Paulino ou da Rua Oriente para atestar a grande quantidade de artigos com preços entre 10% e 30% mais baixos.
“Alguns endereços chegam a oferecer descontos de 60%, porque assim o cliente vem e, além dos produtos mais em conta, acaba comprando outros itens e aumentando o tíquete médio”, calcula Nelson Tranquez, presidente da Câmara de Dirigentes Lojistas do Bom Retiro.