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Endividada, Portuguesa destrói piscinas para construir “camelódromo”

Devendo 350 milhões de reais e com seis presidentes em cinco anos, a Associação Portuguesa de Desportos enfrenta seu pior momento

Por Sérgio Quintella Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO , Mariana Rosario Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 14 fev 2020, 16h00 - Publicado em 27 jul 2018, 06h00

Um dos mais tradicionais clubes da capital, a Associação Portuguesa de Desportos vive um pesadelo digno das tragédias contadas em fados lusitanos. A organização, cujo time de futebol lançou jogadores como Djalma Santos e chegou a ser vice-campeão nacional em 1996, amarga uma dívida recorde de 350 milhões de reais. O calvário começou em 2013, com o rebaixamento do time à série B do Campeonato Brasileiro. Desde então, a equipe sediada no Estádio do Canindé, na região central, foi caindo, caindo…

Um dos principais golpes no campo veio no ano passado, quando ela ficou fora da quarta e última divisão do torneio. Para piorar, neste primeiro semestre, novamente não conseguiu subir para a série A1 do Paulistão, da qual saiu em 2015. Quanto mais escorrega nos campos, menos receita a instituição angaria com direitos de televisão e patrocínios, e mais endividada fica. No ano passado, quase metade de seu terreno de 102 000 metros quadrados (a outra metade pertence à prefeitura) foi levada a leilão por duas vezes, mas não houve interessados. A atual diretoria investe em uma empreitada desconexa da bola para tentar amenizar a situação de penúria.

A inauguração do estádio, nos anos 70: história de glórias (Museu Histórico da associação Portuguesa de Desportos/Veja SP)

A aposta da vez consiste na construção de uma espécie de “camelódromo”, chamado de Feirinha da Madrugada da Portuguesa. Para isso, destinaram-se duas áreas de 28 000 metros quadrados no total, o equivalente a três campos de futebol. Serão 5 000 estandes voltados sobretudo a ambulantes que atualmente trabalham de maneira irregular nas ruas do Brás, bairro vizinho dali, e comercializam em sua maioria produtos piratas.

Os organizadores, entretanto, atestam que não haverá itens falsificados nesse novo local e todo o comércio estará de acordo com a lei. A iniciativa poderá render a princípio 20 milhões de reais ao clube. O anúncio do projeto, ou a falta dele, pegou sócios e conselheiros de surpresa. Eles não esperavam pela chegada, em maio, de máquinas e escavadeiras que demoliram o complexo aquático do clube, fechado havia um ano por falta de manutenção. “Tudo foi feito sem nos consultar”, reclama António Sérgio Pinto Ribeiro, ex-presidente do conselho deliberativo da Lusa.

O atacante Dener, após marcar contra o São Paulo, em 1992, no Canindé (Djalma Vassao/Estadão Conteúdo)

Tão logo soube da obra, em junho, a Prefeitura Regional da Mooca a embargou por falta de alvará. Mas já era tarde. As quatro piscinas e a arquibancada de 130 metros de comprimento, inauguradas em 1965, acabaram praticamente aterradas. Como continuou a demolição, entre outras infrações, o clube foi multado mais três vezes. Os valores de todas as sanções chegam a 463 000 reais. Depois disso, os trabalhos foram suspensos, mas a ideia persistiu.

Em seguida, a gestão iniciou o asfaltamento de uma área próxima, de 12 000 metros quadrados, até então reservada a eventos como a famosa festa junina — extinta no ano passado. “Recorremos das multas e vamos dar continuidade ao projeto”, garante o presidente da entidade, Alexandre Barros, 43, radialista. Ele herdou do pai o amor pela equipe e pela profissão. A ideia é arrecadar 150 000 reais por mês com a locação dos dois espaços, quando o centro de compras estiver funcionando integralmente.

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José Silvio, Felipe, Lorenzo e Manuel Gaspar (em sentido horário): quatro gerações de fãs (Aleandre Battibugli/Veja SP)

A feirinha da Portuguesa será bancada pelo ex-pastor evangélico Diego Araújo Agiani, 36, com histórico complicado. Ele responde no Ministério Público de Barueri, na região metropolitana, a dois processos por estelionato. Além disso, o empresário foi acionado judicialmente, no início deste mês, por não pagar pensão alimentícia a um filho fora do casamento. “O menino é o amor da minha vida, e os casos criminais foram arquivados”, defende-se Agiani, que cobrará 10 000 reais de cada vendedor a garantia de um ponto. “Temos mais de 5 000 interessados”, calcula ele, que dividirá com o clube esses lucros.

A fase inicial, com 2 700 barracas, deve ficar pronta até o fim de agosto. A segunda etapa depende do alvará, que, se tudo correr como esperado, demorará até seis meses para sair.

O dia a dia da Portuguesa equivale ao de um trabalhador que ganha pouco, está com o nome sujo, não tem crédito na praça e acabou impossibilitado de fazer movimentações bancárias por causa de penhoras judiciais. Todas as receitas obtidas com o aluguel de recintos, como o ginásio de esportes, locado à Igreja Renascer por 60 000 reais mensais, e a churrascaria virada para a Marginal Tietê, por 20 000 reais por mês, vão direto para os credores. No Campeonato Paulista da série A-2 deste ano, os 600 000 reais pagos pela Federação Paulista de Futebol também não desembarcaram no cofre da agremiação.

Barros: o sexto presidente em cinco anos (Alexandre Battibugli/Veja SP)

A Lusa se defende de mais de sessenta processos trabalhistas. Uma das soluções para ter caixa disponível é abrir oportunidades para eventos, do naipe de raves e shows (no ano passado, houve apresentação de Wesley Safadão), e cobrar dos interessados à vista, em dinheiro. Em 2017, rolaram vinte atrações do tipo, com uma receita de cerca de 500 000 reais, pagos com antecedência.

“Quando o oficial de Justiça vinha penhorar a renda, informávamos que o valor já havia sido usado para quitar salários”, diz o presidente, que calcula despesas de 1 milhão de reais por mês com a organização. Em relação a sócios, nos tempos áureos, o clube chegou a exibir 120 000 afiliados. Hoje, são 6 700. Apenas 700 deles precisam pagar a mensalidade de 50 reais, o restante está isento da taxa.

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Na sexta (20), enquanto falava a VEJA SÃO PAULO, Barros, que assumiu o comando da entidade em janeiro de 2017 (foi o sexto presidente em cinco anos), conversava com dirigentes sobre como criariam uma “vaquinha” para pagar um boleto de 1 650 reais. O documento precisava ser quitado até a segunda-feira seguinte. Assim, o Corpo de Bombeiros realizaria uma vistoria a fim de liberar o estádio a tempo da estreia da Copa Paulista, uma competição com equipes pequenas que destina ao campeão uma vaga na série D do Brasileirão ou na Copa do Brasil. Em 5 de agosto, o time estreia em casa contra o Nacional, da Barra Funda.

Lucas dos Santos: atleta encontrado morto na piscina do complexo (Antonio Cícero/Agência Gazeta Press/Veja SP)

Uma das dívidas do grupo tem a ver com a trágica morte de um jogador da base em uma piscina do complexo, em 2016. No local onde Lucas Jesus dos Santos, 16, foi encontrado morto, não havia salva-vidas. “Nunca nos ligaram, fiquei sabendo do que aconteceu pela televisão”, desabafa Magda Santos, tia do jovem. O caso rendeu ao clube, em julho do ano passado, uma condenação de 450 000 reais, em valores atualizados. A depender da situação, a quantia vai demorar para ser liquidada. “Infelizmente não conseguimos honrar esse compromisso agora”, diz Barros.

Os últimos tempos, de pouco futebol e muita discussão nos bastidores, serviram para unir torcedores, que, vendo a degradação e o abandono das instalações do Canindé, promoveram por conta própria ações de manutenção. Por meio do grupo de WhatsApp chamado S.O.S. Estádio do Canindé, organizaram a reforma do centro de treinamento e um rateio de 16 000 reais para a pintura das arquibancadas. Parte da tinta foi custeada por um plano de saúde, que exibirá totens no campo por um ano.

O comandante da iniciativa é o aposentado Artur Cabreira, 61, amante do time desde pequeno. “Quero que acreditem que a Portuguesa ainda tem jeito”, almeja. O próximo plano é pôr fim às goteiras nas marquises do estádio. “Chove mais dentro que fora”, brinca Artur. A obra deve custar 100 000 reais, e a previsão é que o valor seja arrecadado em rifas e doações.

Mesmo em tempos difíceis, alguns fãs não deixam a paixão de lado. O empresário Felipe Gaspar, 29, integra uma família com quatro gerações de torcedores da Lusa. Quem começou o legado foi seu avô Manuel, 92, que chegou ao Brasil há cerca de sessenta anos e se encantou pelo rubro-verde. “Todo fim de semana os parentes se reuniam para comer bolinho de bacalhau e assistir aos jogos”, lembra Felipe.

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Antônio e seus famosos bolinhos de bacalhau: lanchonete fechada (Alexandre Battibugli/Veja SP)

O ponto mais tradicional do pedaço para saborear o salgado, no entanto, deixou de existir. Antigo dono da lanchonete Tri-Fita Azul, que funcionou por quatro décadas, o aposentado Antônio de Jesus da Conceição, 73, deu seu último expediente em maio. “Vendia 3 000 bolinhos em dias de partida”, recorda o senhor português. “Nos últimos tempos, não passavam de 200.”

Entre os torcedores ilustres, destacam-se o cantor Roberto Leal e o maestro João Carlos Martins. A dupla se apresentou em diversas festas da Lusa sem cobrar cachê. Na campanha de 2013, que terminou com o rebaixamento da equipe à série B, Martins deu palestras motivacionais para incentivar os esportistas. “Quando conversamos pela primeira vez, eles ganharam de 4 a 0 do ‘Coringão’”, lembra o músico. Os artistas também participaram de uma manifestação na Avenida Paulista, provocada pela punição da turma com perda de pontos no Campeonato Brasileiro de 2013. A polêmica se devia à escalação do meia Héverton, mesmo suspenso, na última partida do torneio.

O protesto, batizado de “Diga não ao tapetão”, não foi suficiente para fazer a equipe escapar de ser penalizada — e rebaixada. A situação foi a gota d’água para que o escritor e cientista político Jorge Caldeira largasse mão do entusiasmo. “O amor de cinquenta anos acabou. É uma viuvez”, lamenta. “A Portuguesa à qual estava acostumado, que brigava com os grandes, não existe mais.”

Roberto Leal e João Carlos Martins em manifestação de 2013: torcedores ilustres (Lincoln Pereira de Oliveira/Agencia Gazeta Press/Veja SP)

Outra personalidade que também vestiu a camisa da esquadra foi o apresentador Zeca Camargo, que conserva um carinho nostálgico. “Apesar de não acompanhar os jogos, sempre que perguntam meu time respondo: a Portuguesa. É uma paixão antiga”, explica.

Fundada em 14 de agosto de 1920, a Lusa surgiu da fusão de cinco clubes de origem portuguesa. Sua primeira sede foi instalada no Cambuci. Na década de 40, mudou-se para o Largo São Bento, no centro. Nos anos 50, reuniu um grupo de jogadores que se consagraram na seleção brasileira, como o lateral direito Djalma Santos e o ponta-direita Julinho Botelho.

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Na mesma década, adquiriu o terreno às margens do Rio Tietê, então pertencente ao São Paulo Futebol Clube. A inauguração do estádio ocorreu em 1972. A essência da associação por muito tempo consistiu em formar grandes atletas, a exemplo de Félix, Dener, Enéas e Leivinha. Até o atual técnico da seleção, Tite, jogou uma temporada pela Lusa nos anos 80, quando veio do Clube Esportivo Bento Gonçalves.

O último grande time do Canindé, que jogou em 2011 na campanha invicta da Série B, ganhou o apelido de “Barcelusa”, em alusão ao Barcelona, da Espanha. “Depois disso, foi só desgraça”, afirma o empresário Vital Vieira Curto, que mantém um “museu” do rubro-verde no Canindé. O lamento da torcida tem entre suas principais vozes o filho do homem que começou a construção da Portuguesa. “Foram quarenta anos de dedicação do meu pai a esse clube, que está sendo destruído por alguém que quer montar uma feirinha. É muito triste”, alfineta Marco Antônio Teixeira Duarte, cujo pai, Oswaldo Teixeira Duarte, que foi o principal dirigente da história da Portuguesa, dá nome ao estádio.

Grandes nomes da lusa

Djalma Santos. Lateral direito e campeão do mundo em 1958

(Cistiano Mascaro/Veja SP)

Edu Marangon. Atacante, foi em 1988 para o Torino, da Itália

(Reprodução Facebook/Veja SP)

Zagallo. Treinou a equipe rubro-verde em 1999

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(Eduardo Monteiro/Veja SP)

Tite. Técnico da seleção, fez seis gols em 22 jogos em 1984

(Antonio Lucio/Veja SP)

Basílio. Jogou onze anos na Lusa, até ir para o Timão, em 1975

(Lemyr Martins/Veja SP)

Leandro Amaral. Atacante nos anos 90, é campeão de gols no Canindé: 62

(Renato Pizzutto/Veja SP)
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