Celular ao volante é uma das infrações que mais crescem na cidade
Essa foi uma das causas do acidente que matou três pessoas no último dia 30 na Marginal Tietê
Os riscos de usar celular ao volante de um veículo são notórios. Especialistas em segurança no trânsito não costumam economizar ao enumerar os danos provocados à atenção de quem tenta digitar ou falar enquanto pisa no acelerador. “Em geral, nosso cérebro não comporta a missão de executar duas tarefas simultâneas”, afirma o médico Dirceu Rodrigues Alves Jr., diretor da Associação Brasileira de Medicina de Tráfego (Abramet).
Há, inclusive, quem compare esse comportamento ao volante com o ato de guiar embriagado. “As funções de controle dos impulsos são afrouxadas e a pessoa relaxa. É o mesmo efeito de um copo de cerveja”, diz o psicólogo Cristiano Nabuco, coordenador do Grupo de Dependências Tecnológicas do Departamento de Psiquiatria da USP.
As consequências dessa irresponsabilidade aparecem de forma gritante nas estatísticas. Um levantamento da Abramet mostra que o uso de celular na condução de veículos é responsável por pelo menos 150 mortes por dia nas ruas do país. Trata-se da terceira causa mais frequente, atrás apenas de excesso de velocidade e embriaguez.
A farta literatura sobre o assunto não é capaz de sensibilizar as pessoas que insistem em grudar no aparelho ao sentar no banco do motorista. Essa mania para lá de condenável está entre os fatores que provocaram um trágico acidente que matou três pessoas na capital no último fim de semana.
Por volta das 5 da manhã de sábado (30), a vendedora Talita Sayuri Tamashiro, de 28 anos, deixou a balada Villa Mix, na Vila Olímpia, em direção a sua casa, na Zona Norte. Na Marginal Tietê, próximo à Ponte dos Remédios, ela resolveu mexer no celular, preso no painel, para acessar o aplicativo Waze, que mapeia as melhores rotas no trânsito. O segundo de distração foi suficiente para que ela perdesse o controle de seu Honda Fit verde e colidisse com um BMW preto, estacionado no acostamento da via supostamente para a troca de um pneu.
No choque, Talita atropelou Raul Fernando Nantes Antonio, 48, Vanessa Lopes Relva, 28, e Aline de Jesus Sousa, 28, que também voltavam de uma noitada na Vila Olímpia. O trio morreu na hora. Se não bastasse a desatenção por causa do telefone, a vendedora estava com a carteira de motorista suspensa e um teste acusou a presença de 0,48 miligrama de álcool por litro de ar em seu sangue, o que equivale a três taças de vinho.
A dosagem acima de 0,34 é enquadrada como crime. “Essa concentração reduz a atenção, o reflexo, a força muscular e a capacidade de tomar decisões racionais”, diz o psiquiatra Arthur Guerra, coordenador do programa de estudos de álcool e drogas da USP.
O uso do celular em veículos na capital ganhou contornos de epidemia nos últimos anos. Somente em 2016, 492 183 paulistanos foram punidos por ignorar a regra, um crescimento de 30% em relação a 2014. Isso representa em média uma autuação por minuto.
Para efeito de comparação, o número de multas por falta de cinto de segurança subiu 1% no mesmo período. No primeiro semestre de 2017 ocorreram quase 200 000 infrações por causa do telefone no trânsito, ou 25% menos que nos seis primeiros meses de 2016. Mesmo com essa queda, a quantidade continua alta e preocupante.
A infração é registrada à moda antiga, de forma manual, pelos agentes de trânsito. É a popular “canetada”. Levando-se em conta apenas esse método de fiscalização, o manuseio de telefone ocupa a liderança entre os delitos de tráfego na cidade. No ranking geral da CET, está em quarto lugar, atrás de excesso de velocidade, violação do rodízio e invasão de faixa de ônibus, todas essas faltas detectadas por radar eletrônico.
Até o fim deste mês, o órgão mantém nas ruas uma campanha de conscientização. Além de alertas nos 75 painéis eletrônicos espalhados pela cidade, a companhia traz nas redes sociais frases sobre a prática ilegal, com a hashtag #naousecelularaovolante.
O sistema “analógico” de verificação leva a episódios bizarros no momento da abordagem pelos marronzinhos. “O mais comum é o motorista levar um susto quando percebe a presença do agente e atirar o aparelho no chão do carro”, afirma o diretor de operações da CET, Milton Persoli. Outros condutores lançam mão de subterfúgios como fones de ouvido ou conectores via Bluetooth presos à orelha. “Não pode nada disso, o único acessório permitido é o sistema de viva-voz integrado ao veículo”, explica Persoli.
No último mês, VEJA SÃO PAULO foi às ruas da capital para registrar flagrantes da irregularidade. Nas imagens, é possível encontrar não só donos de carros particulares como também motoristas de táxi, de ônibus e até motociclistas utilizando o aparelho com o veículo em movimento.
Há ainda quem tente se safar das penas com recursos enviados aos órgãos de trânsito. Cerca de 2% das autuações de celular ao volante são alvo de questionamentos por parte dos motoristas. Apenas 1% delas é revertido. “Isso só ocorre nos casos em que houve erro de informação no preenchimento da notificação”, afirma o diretor do Departamento do Sistema Viário, Edson Caram.
Com a insistência no erro e a baixa chance de sucesso nos recursos, não é incomum encontrar paulistanos com farta coleção desse tipo de infração no prontuário. “Resolvo muitos problemas de trabalho enquanto estou no carro, os clientes ligam e insistem que é rapidinho”, explica a produtora de eventos Carla Jerlich, que teve a carteira suspensa neste ano ao acumular 74 pontos (o limite é 20), metade deles por falar ao celular na região do centro e na Avenida Paulista. Em agosto, ela passou pelo processo de reabilitação e recuperou o direito de dirigir. “Agora eu paro em local seguro para falar.”
Além da possibilidade de ter a carteira bloqueada, ser flagrado ao celular no trânsito passou a doer mais no bolso do motorista. Em novembro do ano passado, uma mudança na lei elevou a multa de 85,13 reais para 293,47 reais. O enquadramento também subiu de médio para gravíssimo (7 pontos). Além disso, foram criadas duas tipificações antes inexistentes.
Pela regra anterior, era punido apenas quem falava ao telefone. Desde então, fica sujeito às penas também quem manuseia ou até mesmo segura o dispositivo. “Celulares passaram a ter múltiplas funções, e os legisladores precisam acompanhar essa transformação”, afirma o advogado Maurício Januzzi, presidente da Comissão de Trânsito da OAB-SP.
Apesar do recente aumento no valor da multa, no Brasil ele ainda é brando em relação a outros locais do mundo. Em Nova York (Estados Unidos), por exemplo, chega a 200 dólares (cerca de 630 reais). Em Londres (Inglaterra), começa em 200 libras (830 reais) e pode quintuplicar, dependendo do risco envolvido. Em Portugal, pagam-se 600 euros (2 200 reais).
Presa em flagrante por homicídio doloso e embriaguez ao volante pelo desastre na Marginal, Talita Sayuri está na Penitenciária Feminina de Tremembé, no interior de São Paulo. Na quarta (4), sua defesa entrou com pedido de habeas-corpus para que ela responda ao processo em liberdade, mas a Justiça não havia se pronunciado até o fim do dia. “Sua prisão é desproporcional.
Ela não tem antecedentes criminais, possui endereço fixo e trabalha”, diz o advogado Eduardo Siano.
A equipe aguarda a conclusão do inquérito pela Polícia Civil e a denúncia do Ministério Público para articular a estratégia de defesa. O objetivo é transformar a acusação de homicídio doloso em culposo. No primeiro, a pessoa assume o risco de matar, com pena prevista de até trinta anos de cadeia. No segundo, a culpa é inconsciente e o período de detenção não passa de quatro anos.
Apesar de a informação constar no depoimento de Talita incluído no boletim de ocorrência, a defesa nega que a vendedora utilizasse o celular no momento da colisão. “Ela só ligou o Waze na saída da balada”, diz Siano. Talita também confessou ter ingerido um copo de vodca por volta de 2 da manhã. A protagonista do acidente está com a carteira suspensa desde junho, com 36 pontos acumulados em oito multas, a mais grave por avançar um sinal vermelho.
Arrasados, os parentes das vítimas pedem justiça. “Ele deixou quatro filhos, de 6, 8, 12 e 14 anos. A família está destruída”, afirma o dentista Luciano Nantes Antonio, irmão de Raul. “Ela saiu à noite sem carro porque iria beber e não queria dirigir. Pegou carona no BMW. No fim, morreu por culpa de uma mulher que havia bebido”, diz o empresário Douglas Relva, irmão de Vanessa.