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“O Carnaval de rua de São Paulo é mais disruptivo”, diz pesquisador

Professor, jurista e folião, Guilherme Varella lança livro que explica como a folia na metrópole cresceu exponencialmente na última década

Por Saulo Yassuda Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
26 jan 2024, 06h00
Guilherme Varella, professor da UFBA
Guilherme Varella, professor da UFBA (Meneson Conceição/Labfoto Estudio/Divulgação)
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A capital paulista está longe de ser o túmulo do samba, como pregou Vinicius de Moraes. “São Paulo sempre teve Carnaval de rua”, conta Guilherme Varella, 40, jurista, pesquisador e professor da UFBA (Universidade Federal da Bahia).

Seu livro Direito à Folia — O Direito ao Carnaval e a Política Pública do Carnaval de Rua na Cidade de São Paulo (Alameda, 454 págs., 119 reais) será lançado na noite de quinta (1º) no espaço cultural Bananal (Rua Lavradio, 237, Barra Funda) e é fruto de sua tese de doutorado na Faculdade de Direito da USP.

Na obra, o paulista de Guariba conta sobre a retomada dos blocos em massa no espaço público da metrópole a partir de 2013, depois de um período vivendo quase na clandestinidade. “Eram impostas restrições administrativas que, na prática, impediam que eles saíssem.

“Para o retorno, foi fundamental uma política pública implementada pelo então secretário de Cultura do município, Juca Ferreira, na gestão Haddad (2013-2016). Varella, naquela época, era assessor e, posteriormente, foi chefe de gabinete de Ferreira e acompanhou de perto esse reaquecimento.

De cerca de quarenta blocos naquele ano, hoje a cidade conta com 579 oficiais. Confira a entrevista com o pesquisador, que também é folião e integrante do bloco Saia de Chita, que desfila pela região da Pompeia.

“Temos músicas autorais e a gente faz uma pesquisa de repertório que tem muita bagaceira”, entrega.

Bloco Saia de chita
O bloco Saia de Chita (Divulgação/Veja SP)

Como o Carnaval de rua cresceu tanto na cidade e se tornou o que é hoje?
O que acontece na virada dos anos 2010: a pauta do direito à cidade crescia no mundo, e a cultura entrou nela. Todo movimento cultural radical na ocupação urbana era algo muito importante. Esses movimentos de arte de rua ganharam projeção e reivindicavam uma outra cidade. O Carnaval de rua passou a reivindicar o seu espaço: pular Carnaval é um direito, o direito à folia existe, o direito à alegria, ao espaço público. Isso faz parte do nosso direito à cidade: viver a cidade também é viver a alegria da cidade. O grande marco foi o chamado Manifesto Carnavalista, que no início de 2013 apresentou uma carta para o Haddad. A partir de então, o que fez a prefeitura? Fala assim: agora o Carnaval de rua não vai ser mais “criminalizado” administrativamente e será reconhecido como manifestação importante para a cultura de São Paulo. Será apoiado pela prefeitura, que vai gerar as condições urbanas para que aconteça

A gente pode falar que o Carnaval de rua é a mais importante manifestação cultural no espaço público da capital?
Ele é a manifestação cultural que é a mais radical politicamente, isso a gente pode dizer, porque ocupa a cidade de uma forma radical, com uma incisão lúdica no território. Contesta a própria organização da cidade, a normatização, a moralização, a cidade como um espaço que só serve para morar e trabalhar. Reivindica outro uso da cidade e traz elementos de contestação e reivindicação que são lúdicos, alegóricos e simbólicos, estéticos, que a reivindicação da política tradicional, muitas vezes, não traz. Você está reivindicando pautas políticas como direito ao corpo, ao respeito com as mulheres, à vida na cidade, tudo. Isso em uma linguagem que vai ser absorvida subjetivamente. O corpo, por exemplo, numa manifestação carnavalesca, cumpre papel político fundamental porque não é o mesmo corpo que está saindo de casa indo ao trabalho, não é o mesmo numa manifestação na Paulista. É um corpo ali fantasiado ou sem roupa, inebriado, abraçando outros corpos.

O que diferencia a folia paulistana?
São Paulo conseguiu criar um Carnaval com uma diversidade estética que, na verdade, espelha sua própria diversidade cultural. O espectro de diferenciação dos blocos é muito grande: tem de samba tradicional e de marcha, mas tem bloco queer, de electro, de punk rock, bloco que faz homenagem a artistas, enfim, vão muito além das linguagens tradicionais do Carnaval. São Paulo, de alguma maneira, conformou o seu Carnaval absorvendo toda a complexidade, a tensão, a diversidade e a pujança que tem a São Paulo cosmopolita. É um Carnaval meio desidentitário, que tem uma variação, uma diversidade em que a unidade está nessa diversidade, é mais experimental. Eu diria que ele é mais disruptivo que alguns outros.

“O Carnaval contesta a cidade como um espaço que só serve para morar e trabalhar”

A disputa por patrocínio e marketing atrapalha a realização da folia?
Tem uma conta do Carnaval. Um dinheiro que precisa pagar os banheiros químicos, as ruas fechadas, os agentes de trânsito e de limpeza. A conta vai crescendo a partir do momento que o Carnaval cresce. E por que (o Carnaval paulistano) mimetizou o Rio? Porque o modelo carioca é o que a empresa oferece patrocínio para a prefeitura. E esse patrocínio significa ativar a sua marca, deixá-la exposta e se aproveitar comercialmente da festa.

Quando isso vira um problema?
O Carnaval acaba ficando refém desse arranjo econômico e publicitário de gestão. As empresas colocam dinheiro como patrocínio na prefeitura para poder organizar o Carnaval, só que cobram muito caro por isso, não no sentido dos itens — gradis, banheiros etc. —, mas no do que elas exploram da cidade. Vão patrocinar o Carnaval de São Paulo por 25 milhões de reais, mas o nível de ativação que fazem é muito ostensivo. É uma ativação muito invasiva, que às vezes chega a mitigar a própria identidade do bloco.

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Há uma crítica de que o Carnaval de rua é um fenômeno sobretudo branco e de classe média.
É um movimento, nessa retomada, de blocos principalmente organizados no Centro Expandido, nos bairros mais boêmios, na Vila Madalena, tem grande concentração na Zona Oeste. E não é por acaso. É onde estão as universidades, a USP, onde está o setor artístico mais organizado, os teatros, os equipamentos culturais, os bares etc. Foi um fenômeno que se organizou muito em torno da classe média. Essa conformação territorial também é uma conformação racial. Você não consegue dividir isso. Passou-se a ter, de uns anos para cá, também o crescimento dos blocos de periferia, que eram reprimidos e passaram a se organizar. Trazem mais diversidade racial e mais pessoas negras. Mas ainda acho que é um desafio. Se você vai aos blocos no Centro Expandido, vê ainda muitos foliões e organizadores brancos e pessoas negras trabalhando.

É possível diminuir questões que se acentuam com o crescimento da folia no espaço público, como a circulação de moradores mais restrita, o ruído excessivo e a violência?
Essas pessoas que estão reclamando estão reclamando de direitos. As pessoas que estão na rua pulando Carnaval estão exercendo direitos. Então como você faz? Coloca as questões dialogando com todos os agentes, mas partindo de uma premissa de que a gente está compatibilizando direitos.

Quais são os desafios atuais?
O primeiro é retomar a dimensão cultural do Carnaval e de sua política pública. O segundo é desburocratizar o Carnaval de novo, porque está se burocratizando. A terceira coisa é (a prefeitura) voltar a ter diálogo com os blocos. Tem que retornar o Carnaval para a Secretaria de Cultura, mas de uma forma democrática, participativa etc. É preciso fazer com que a dimensão econômica não se sobreponha à dimensão cultural. E frear o processo de recrudescimento policial contra o Carnaval. E, por último, entender a complexidade do espectro desse universo dos blocos para fazer uma política séria de democratização territorial.

Publicado em VEJA São Paulo de 26 de janeiro de 2024, edição nº 2877

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