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A nova força nordestina: os migrantes do século 21 que transformam São Paulo

Eles reinventam o design, a gastronomia, as startups e outras atividades e deixam a cidade que faz 467 anos mais rica, dinâmica e sofisticada

Por Arnaldo Lorençato e Pedro Carvalho
Atualizado em 25 jan 2021, 17h28 - Publicado em 21 jan 2021, 21h20

Não é mais com calos nas mãos e sacos de cimento nas costas que muitos migrantes nordestinos constroem uma nova São Paulo. Durante o século XX, quando se tornaram a maior população da cidade vinda de fora da capital, eles carregaram o estigma de ser uma força de trabalho para serviços duros e mal remunerados. Agora, transformam a metrópole por meio da gastronomia, do design, de startups inovadoras e até da construção de prédios — mas, desta vez, no papel de donos das construtoras. É o que revelam dados oficiais e os personagens destas páginas, feitas como uma homenagem de Vejinha ao Nordeste no aniversário da capital paulista, que completa 467 anos na segunda-feira (25).

Ainda que as duas principais fontes de informação sobre as migrações (o Censo e a Pnad) estejam desatualizadas, a mudança no perfil dessas novas personalidades é atestada por especialistas e levantamentos oficiais. (O Censo mais recente é de 2010; a Pnad, em 2012, deixou de medir mais a fundo o fenômeno). “De lá para cá, a principal novidade é a inclusão escolar. A chance de uma criança estar matriculada no Piauí é maior do que no estado de São Paulo (nos dois casos, é próxima de 98%). Assim, mesmo sem dados recentes, é seguro afirmar que a grande diferença dos migrantes do século XXI é a educação mais elevada”, diz Herton Araújo, diretor adjunto de Estudos e Políticas Sociais do Ipea.

“É seguro afirmar que a grande diferença dos migrantes do século XXI é a educação mais elevada.”

Herton Araújo, do Ipea

É sinal de que enfim — e felizmente — os nordestinos disputam com maior igualdade os bons empregos e ampliam-se chances de abrir negócios mais sofisticados na metrópole. “Tenho muitos amigos conterrâneos em São Paulo, na faixa dos 30 anos, em bancos de investimento”, diz o recifense Gustavo Maia, 36, fundador da startup Colab. No outro extremo da mudança, o piauiense Aldenir Lemos, 45, lida com a falta de mão de obra na construtora que criou na cidade, em 2009. “Temos carência de várias funções, como a de azulejista. Na minha área, 70% da mão de obra é velha. Os nordestinos jovens não vêm mais para cá com os sonhos que a minha geração tinha”, diz.

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Com tempero de teresina

“Tinha quase 30 anos quando me descobri cozinheira, morando aqui em São Paulo”, lembra Cafira Foz, sócia do Fitó, seu apelido de infância. Nascida no Ceará, ela foi criada na capital do Piauí pelos avós maternos. “Vim nessa busca que nem sabia o que era, mas que me movimentava.”

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Cafira morava com um primo e um tio havia quase um ano na cidade quando conheceu seu sócio Thomaz Foz, com quem manteve um relacionamento de oito anos. “Sempre cozinhei em casa e para os amigos, que me motivavam a abrir um restaurante. O Thomaz, com quem fui casada por dois anos, percebeu que tínhamos a possibilidade de ter um negócio próprio e me incentivou”, conta.

Com os ex-sogros como investidores, Cafira, aos poucos, foi desenhando o Fitó, que surgiu em 2017 com fachada inspirada em casas do sertão nordestino num trecho da Rua Cardeal Arcoverde, pouco abaixo do Largo da Batata e em direção ao Shopping Eldorado. Durante quase um ano de obra a partir do zero, já que o imóvel original não tinha fundações, a cozinheira teve tempo de ir montando, definindo as receitas. “Inicialmente, pensei na culinária asiática. Mas nunca seria original, seria uma cópia. Aí, voltei para Teresina”, descreve a criação do menu. “Queria tirar o melhor dos ingredientes mais simples.”

O Fitó ganhou importância ao se tornar o primeiro representante contemporâneo do Piauí em São Paulo. “No cardápio, não podem faltar paçoca de carne de sol, farinha de mandioca, manteiga de garrafa servida com baião de dois, queijo de coalho e banana-da-terra”, revela algumas das preferências dos clientes. Diferentemente de muitos profissionais que cursaram escolas superiores de gastronomia, a cozinheira intuitiva só concluiu o ensino médio. “Embora goste muito de estudar, sou disléxica, e o ambiente acadêmico é muito difícil para mim”, revela. Para montar o restaurante, contou com a ajuda de consultores e com Thomaz na administração. “Não sabia muito o que era ser restauratrice. Fizemos uma consultoria, um plano de gestão”, diz.

Além de alguns pratos da culinária típica, hoje até com bem-sucedidos toques autorais, como as almôndegas sertanejas com munguzá salgado com leite de coco e requeijão de corte ao molho de tomate da casa, Cafira, de 36 anos, não abre mão de uma regra. “Desde o início, disse para mim que, se fosse ter um negócio, só trabalharia com mulheres”, afirma. “Ter uma equipe feminina sempre foi um ato político.”

São Paulo 15 janeiro 2021Foto Alexandre Battibugli VSP
No Fitó, em Pinheiros: “Me descobri cozinheira em São Paulo” (Alexandre Battibugli/Veja SP)

Nas décadas passadas, a desigualdade de oportunidades era mesmo o traço mais forte desse fluxo. O retrato das estatísticas mostrava uma população migrante de baixa renda e escolaridade, mas que pegava no pesado. Os pernambucanos, baianos e cearenses eram 21% da população economicamente ativa (aquela entre 30 e 60 anos) da região metropolitana de São Paulo em 2009.

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Os três grupos tinham, na época, entre 3,4% e 4,7% de pessoas com ensino superior completo. Ganhavam por volta de 930 reais por mês — enquanto os paulistas recebiam em média 2 000 — e ocupavam empregos de pior qualidade (dois dados chamavam atenção: a maior taxa de empregadas domésticas era registrada entre quem vinha da Bahia, com 21% das pessoas nessa função, enquanto os cearenses se destacavam nos trabalhos por conta própria, como o de taxista).

Os nordestinos superavam os nascidos em São Paulo apenas em um indicador: as horas na labuta. Entre os paulistas, só 33% trabalhavam mais de 45 horas semanais. Nos migrantes, o índice variava de 39% a 44%, segundo a Pnad.

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Dunas de Natal inspiram design arrojado

Fundado no fim de 2012 pelo designer de produtos André Gurgel, 32 anos, e pelo arquiteto Felipe Bezerra, 50 anos, em Natal, cidade de nascimento da dupla, o Mula Preta ganhou sua primeira loja física em novembro, na região dos Jardins. No espaço grandioso é exibida a bela coleção da dupla, com itens como o cabideiro no formato de um cacto estilizado e um oratório intitulado Padim Ciço.

Embora tenham como referência a cultura nordestina, as criações estão longe de se fixar em um Brasil folclórico. O Mula Preta adota o Nordeste como uma inspiração sutil para o desenho de seu extenso catálogo. “Não queríamos fazer algo que fosse regional demais, mas mais globalizado, sempre com sofisticação e irreverência”, diz Gurgel, que mora em São Paulo desde 2017 — o sócio continua na capital potiguar.

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A irreverência começa no nome Mula Preta, extraído do título de uma moda caipira composta por Raul Torres e eternizada pelo rei do baião Luiz Gonzaga no fim dos anos 40. Nas peças, reconhecidas em várias premiações internacionais, predomina um estilo arrojado. São móveis como a poltrona Duna e a mesa de centro Falésia, que reproduzem de forma moderna em seus desenhos os bancos de areia de Natal e os paredões da Praia de Pipa e faturaram troféus do A’Design Award & Competition, uma espécie de Oscar do segmento com sede em Milão. Igualmente laureados por essa competição que já destacou dezesseis objetos da dupla desde 2012, estão o cabideiro Cacto, a mesa de pebolim Pulse, a caixa de som Apito e a cadeira Basquete, que mimetiza uma bola murcha na qual é possível se esparramar com conforto.

Pela qualidade, não são baratos. O oratório, por exemplo, custa 4 400 reais. Muito antes de o espaço de 650 metros quadrados ficar pronto, iniciou-se uma paciente procura. A primeira etapa foi encontrar o ponto na Alameda Gabriel Monteiro da Silva perto de onde ela se enlaça com a movimentada Avenida Rebouças. “Dois anos atrás fizemos a pesquisa e encontramos o terreno ainda vazio. Tivemos de esperar a aprovação do Condephaat naquela área, que é tombada.” Com projeto assinado por Bezerra, a loja foi erguida em cinco meses — além dos dois criadores, o estúdio conta com o sócio investidor Uelinton Ribeiro, 54 anos.

Na montagem, o arquiteto tomou cuidados como revestir uma parede de xisto preto, trazido do Rio Grande do Norte, além de montar uma área para lá de agradável com teto retrátil e verdejante na parte dos fundos. Gurgel e Bezerra não se limitam a exibir o próprio trabalho. Tornaram-se representantes oficiais da editora alemã Taschen, cuja parte dos livros é exposta em uma criação da dupla, a estante modular K7. “Conhecíamos os representantes da Paisagem, distribuidora da Taschen, e os convidamos para montar uma livraria exclusiva na nossa loja. Depois o editor Julius Wiedemann, casado com a chef Morena Leite, concretizou o laço”, conta.

Gurgel e os sócios também se dedicam a oferecer, naquele trecho da rua, um deserto de opções culinárias, uma tapiocaria. Na cinematográfica área ajardinada com paisagismo de Alex Hanazaki, o pequeno espaço está pronto e deve começar a funcionar no mês que vem.

Ribeiro, Gurgel e Bezerra posando para a foto em frente ao seu estabelecimento
Ribeiro, Gurgel e Bezerra: coleção de peças com inspiração no Nordeste (Alexandre Battibugli/Veja SP)
Conexão Recife-São Paulo-Cannes

Foi depois de se mudar para São Paulo, em 2016, que o ator recifense Thomás Aquino, 34, acabou escalado para seu papel de maior projeção: o Pacote do filme Bacurau, vencedor do prêmio do júri de Cannes em 2019. “Aqui consegui colocar meu foco no trabalho”, conta. “No Recife, por mais que fizesse boas peças, não tinha segurança para viver só com o dinheiro das atuações”. Antes do filme, Thomás participou de outras produções de destaque, desde montagens de a Ópera do Malandro até o seriado global Treze Dias Longe do Sol. Morou por dois anos no Rio de Janeiro, mas resolveu que São Paulo era onde conseguiria voltar as energias à carreira — e deu certo. Além de Bacurau, acaba de gravar a série Manhãs de Setembro (Amazon Prime Video), na qual dividirá o protagonismo com a cantora Liniker. Em breve, também vai ao ar em uma série da Fox e em longas-metragens em fase de finalização. “São Paulo ajuda em muitas coisas, mas o que a cidade mais me trouxe foi a maturidade, mesmo. Me fez entender quem é o Thomás, como ele pode caminhar com as próprias pernas”, conta o ator.

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Thomás Aquino sentado em uma cadeira, debruçado sobre o encosto dela
Thomás Aquino, 34: ator veio a São Paulo viver da arte (Alexandre Battibugli/Veja SP)

Não só de números é feita essa história. Os registros mais pungentes, claro, são aqueles que relembram o aspecto humano dessa migração. No dia 27 de junho de 1970, o jornal O Estado de S. Paulo trazia uma manchete tão inspirada quanto triste: “Na Hospedaria, o frio é maior”. Dizia respeito à Hospedaria de Imigrantes, no Brás — e à histórica frente fria que levou os termômetros da região do Horto Florestal a registrar 1,8 grau negativo. Na casa de acolhimento, passaram por volta de 1,5 milhão de nordestinos entre o início do século e 1978, quando o lugar deixou de exercer essa função. “A situação era precária, faltavam cobertores, e quem vinha desses estados sofria mais com a temperatura”, diz Henrique Trindade, historiador do Museu da Imigração. “O tratamento que os governantes dedicavam aos nordestinos era extremamente diferente daquele dado aos estrangeiros que vinham para São Paulo. Enquanto esses últimos tinham até a passagem de navio paga pelo estado e bilhetes de trem se quisessem ir para o interior, os nordestinos bancavam do bolso a viagem nos precários paus-de-arara (carretos superlotados e, há décadas, proibidos)”, explica o especialista.

A força do cafezinho potiguar

Quando Paulo Tarso Rego de Lima, diretor comercial e de marketing da 3Corações, trocou a sede da empresa em Fortaleza por São Paulo, em 2007, vinha com uma missão nada fácil. Precisava dar expressão à companhia, que era quase traço entre os consumidores paulistanos, mesmo se tratando de uma marca conhecida de café. Treze anos depois, a situação mudou completamente. “Quando chegamos aqui, tínhamos 1,5% do mercado. Hoje, são 25%. Foi uma obra grande essa expansão”, comemora o potiguar de 54 anos. Está em 12 500 pontos de venda e na carta de restaurantes como Président, Rodeio e Vinheria Percussi.

Paulo Tarso é um dos três filhos de João Alves de Lima, fundador dos cafés Santa Clara no Rio Grande do Norte, em 1959, que encabeçam o negócio — ele tem como sócios os irmãos Pedro de Lima e Vicente de Lima. Se a empresa, a São Miguel Holding, era grande no Nordeste, tornou-se a maior brasileira do setor no país ao estabelecer em 2005 uma joint venture com a 3Corações da família israelense Strauss. “Cada uma das partes detém 50% do negócio”, explica. O gigante, que concentra mais de vinte marcas de café, emprega mais de 7 000 colaboradores e faturou 5,2 bilhões de reais em 2020, tem como embaixador da marca o chef paulistano Alex Atala, um nome lendário no Brasil e no exterior.

Como a 3Corações domina todo o processo, do plantio à produção do pó, foi oferecida ao cozinheiro uma seleção de grãos na Fazenda Sequóia, em Angelândia, em Minas Gerais. Atala acompanhou todo o processo, como colheita, seleção e torra. Conseguiu assim ter uma cápsula com sua assinatura. Via Paulo Tarso, a 3Corações participa de um importante projeto de inclusão social, auxiliado pela head de marketing Roberta Prado. Há um ano e meio a holding colabora com o financiamento do Instituto Chefs Especiais, bem como com a manutenção do Chefs Especiais Café, na região dos Jardins. Além de um aporte financeiro mensal, responde pelo treinamento da equipe com cinco funcionários e das mães voluntárias, além de fornecer equipamentos, manutenção, uniformes e, claro, os grãos.

Simone Lozano, fundadora da organização social, conta que a empresa ajudou na montagem e no patrocínio da cafeteria, assim como efetua o pagamento dos salários de baristas profissionais para fazer extração. Quando não está no escritório no Itaim Bibi, o mesmo bairro onde mora, o executivo gosta de passear pelo Parque Ibirapuera e pela Avenida Paulista. Na mais famosa via da cidade, tem dois pontos que o magnetizam: o Parque Trianon e a Cultura.

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Dono do café 3Corações sentado em um banquinho
No escritório da 3Corações: de 1,5% a 25% do mercado paulistano (Alexandre Battibugli/Veja SP)

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Os tempos são outros, mas o que jamais mudou é a forte influência dos nordestinos na demografia e na cultura da cidade. Eles representavam nada menos que 15% da população paulistana em 2010, um dado que provavelmente não teve alterações relevantes. Eram 663 414 baianos, 366 271 pernambucanos e 190 348 cearenses — ainda os três principais contingentes. Que, não à toa, imprimem seus jeitos e costumes na alma da metrópole — notadamente em bairros como o Brás e o Largo Treze.

Servente virou chefe

O piauiense Aldenir Lemos, 45, veio a São Paulo construir prédios. Primeiro como servente de pedreiro, após migrar para a cidade, em 1997. “Eu só sabia carregar saco de cimento e limpar a sujeira.” Aos poucos, Aldenir fez uma série de cursos gratuitos no Senai — encanador, soldador, eletricista e, por fim, mestre de obras. Em 2009, juntou as economias e abriu a empreiteira Exacta. Hoje, faz edifícios como empresário. “São apartamentos de 300 000 a 20 milhões de reais”, conta. Com 500 funcionários, a empresa executa obras para marcas como Gafisa, Tegra e Even. Entre os novos projetos, está o híbrido de residencial e hotel que o Grupo Fasano prepara no Itaim Bibi. “Ainda acho tudo meio surreal. Eu era um moleque magrinho que botava o saco de cimento no ombro e saía cambaleando.”

Aldenir Lemos sentado numa pilha de tijolos cinzas, com o capacete no colo.
Na obra que faz para o Grupo Fasano, no Itaim: “Acho tudo surreal” (Alexandre Battibugli/Veja SP)
Um milagre à baiana

Como na lenda de Midas, Renata França, 39, transformou a miséria em fortuna com o toque das mãos. Em 2004, chegou a São Paulo em situação paupérrima. “Dormia sobre um cobertor e comia uma vez por dia”, conta. Nascida em Ilhéus, na Bahia, ela deixou os estudos para ajudar a mãe em um salão de beleza. Uma cliente a convidou para trabalhar como massagista. Meses depois, com 157 reais no bolso, Renata tomou o ônibus rumo ao Terminal Tietê para tentar uma carreira na área da estética. Um dia, soube que clientes pagavam 1 500 reais pela massagem que ela tinha criado, no SPA onde recebia dois reais pela hora de trabalho. Passou a atender em domicílio — e o milagre aconteceu. Boca a boca, os elogios às mãos talentosas da baiana chegaram aos ouvidos de Taís Araujo, Sabrina Sato, Bruno Gagliasso… Em 2016, a “massagista dos famosos” abriu um SPA de luxo na Alameda Gabriel Monteiro da Silva, nos Jardins. Mas ganha dinheiro mesmo com os cursos onde ensina seus métodos. Renata tem 8 000 alunas formadas e franquias em Portugal, Itália e França. “Neste ano, vamos abrir no Japão”, diz. A formação completa sai por 35 000 reais. Hoje, ela emprega 100 pessoas, tem 1 milhão de seguidores no Instagram e se apaixonou pela metrópole, que se mostrou tão dura no início. “Quando o avião chega a Congonhas, sinto que estou em casa”, diz. “São Paulo me abraçou. Sou uma mulher negra e nordestina que sempre foi muito bem tratada pelas pessoas daqui.”

Renata França senta em um banquinho com um cacto artístico do lado
Cem funcionários e 1 milhão de seguidores: “Neste ano, abro filial no Japão” (Alexandre Battibugli/Veja SP)

 

Mudar para São Paulo era um risco

O recifense Gustavo Maia, 36, sempre gostou de política. Em 2014, mudou-se para São Paulo atrás de um sonho: fazer uma plataforma digital que aproximasse cidadãos e prefeituras. “No início, a Colab era praticamente só um canal para avisar onde tinha buracos nas ruas”, explica. Migrar para a metrópole, naquele momento, representava um risco. A startup tinha sido criada no ano anterior dentro do Porto Digital, o centro tecnológico da capital pernambucana. Contava com um escritório, apoio das universidades e uma rede de contatos privilegiada. “Lá, se eu desse dois telefonemas, estava frente a frente com o maior empresário da cidade. Aqui, vim sem conhecer ninguém”, ele conta. No longo prazo, porém, a aposta paulistana se pagou. De lá para cá, a Colab conseguiu contratos com mais de 100 municípios, como Curitiba, Teresina, Niterói e Santos. “Eles são renovados anualmente e, desde o primeiro, nunca tivemos um cancelamento”, diz o fundador. Também se tornou um negócio lucrativo e ganhou musculatura até em ano de pandemia. “Nossa receita aumentou 20% em 2020”, afirma. Agora, está em busca de mais funcionários para o escritório da Rua Pamplona, onde trabalham 28 pessoas. A plataforma agora vai além dos buracos. Na versão a ser lançada em março, servirá até para pagar IPTU e marcar consultas médicas na rede pública. A prefeitura de São Paulo, porém, nunca comprou a ideia. “É triste para nós. Já em 2013, me sentei com o (ex- prefeito Fernando) Haddad para propor a solução. Tentei com o (João) Doria. Talvez nos vejam como concorrente do serviço 156”, lamenta o empreendedor.

Maia posando para a foto com um caneca de café ao lado
Maia, da Colab: contratos com mais de 100 prefeituras (Leo Orestes/Divulgação)

 

No front contra o vírus

Em novembro, o médico baiano Luiz Marcelo Malbouisson, 49, conseguiu voltar a praticar seu hobby preferido em São Paulo: pedalar na ciclovia do Rio Pinheiros e nas ruas da Cidade Universitária antes das 6 da manhã. Havia meses não conseguia subir na bicicleta. No auge da primeira onda da Covid-19, entre abril e junho, só tinha tempo para administrar as duas UTIs que coordena no Hospital das Clínicas, onde 300 leitos recebiam pacientes contaminados pelo vírus. Então ele próprio pegou a doença — e aí não podia se exercitar por limitações do corpo, mesmo. “Depois de curado, o pulmão fica debilitado por um tempo”, diz. Nascido em Salvador, Luiz mora definitivamente na capital paulista desde que concluiu o doutorado na França, em 2000. Começou no HC como residente e agora tem de 100 a 120 leitos de terapia intensiva sob seus cuidados. Se São Paulo é a cidade dos migrantes, essa máxima é ainda mais verdadeira na área médica. “As provas dos hospitais selecionam os melhores de cada cidade. Temos talentos do Nordeste, do Sul…”, diz. “E recebemos todos de braços abertos.”

Luiz posando com seu avental para a foto. HC ao fundo.
Malbouisson no HC: liderança no combate à Covid-19 (João Bertolini/Divulgação)

Um sinal dessa influência: em 1991, o paulistano José de Abreu fundou a primeira rádio de música nordestina em São Paulo, a Atual, na frequência 1370 AM. Três meses depois, a estação ocupava o terceiro lugar em audiência. Entusiasmado, Abreu criou o conhecidíssimo Centro de Tradições Nordestinas, no Limão. Vítima de preconceito, o local foi pichado pouco depois da inauguração com um absurdo “Morte aos nordestinos” e símbolos fascistas. Aos poucos, porém, caiu no gosto dos moradores e, ano após ano, tem registrado mais paulistas entre o público. De quebra, ajudou a romper outros tipos de discriminação. “Nossos casamentos comunitários, que acontecem uma vez por ano, são famosos. Em 2012, fizemos o primeiro casamento comunitário homoafetivo do estado, que juntou 47 casais”, conta Christiane Abreu, 33, filha do fundador e atual presidente da entidade.

Os nordestinos somam 15% da população de São Paulo. Chegaram principalmente da Bahia, de Pernambuco e do Ceará

Celebrar a sofisticação da nova safra migrante não pode soar, de maneira alguma, como um desmerecimento do trabalho feito por aqueles que chegaram nas décadas anteriores, nem de suas peculiaridades culturais. Como escreveu Patativa do Assaré, o genial trovador cearense: “Você é muito ditoso / Sabe lê, sabe escrevê / Pois vá cantando seu gozo / Que eu canto meu padecê”. Mas, além de representar um passo na direção da igualdade, essa transformação brinda a capital com maravilhas como a paçoca de carne de sol do Fitó, as banquetas de design arrojado da loja Mula Preta, startups transformadoras como a Colab e outras histórias de sucesso contadas na reportagem.

Panela regional: conheça estabelecimentos e comidas típicas do nordeste

TAPIOCARIA Com projeto do arquiteto Felipe Bezerra, uma tapiocaria ocupa uma das laterais do estúdio Mula Preta, do qual Bezerra é sócio. “É uma gentileza urbana”, define essa área, ideal para uma pausa a qualquer momento do dia com vista para um jardim de Alex Hanazaki. Sob a proteção de um teto de desenho sinuoso, quem passar por lá poderá saborear tapioca, uma das delícias da culinária nordestina. Mas vale reforçar que só a partir da segunda metade de fevereiro, ou seja, depois do Carnaval. “Ainda estamos escolhendo qual será o operador”, alerta o designer André Gurgel, um dos proprietários do Mula Preta.

Imagem do teto do Mula Preta
Mula preta: projeto arquitetônico diferenciado (Alexandre Battibugli/Veja SP)

CENTRO DE TRADIÇÕES NORDESTINAS No período pré-pandemia, o Centro de Tradições Nordestinas, coladinho à Ponte Júlio de Mesquita Neto, pegava fogo pela animação do público. Além de provar comida típica que vai do sertão ao litoral do Nordeste, os visitantes lotavam esse espaço do complexo, com 27 000 metros quadrados, para dançar agarradinho ao som de forró ao vivo. “A gente recebia 80 000 pessoas por mês até o fim de 2019. Nos últimos anos, nosso público é cada vez mais formado por paulistas que admiram a cultura nordestina”, conta Christiane Abreu, presidente do centro de cultura.

Enquanto as aglomerações não estão liberadas, o lugar funciona como uma grande praça de alimentação com música ao vivo de fundo aos fins de semana. Contornando o grande espaço estão onze restaurantes: Baião, Família Kariri, Oficina do Sabor, Caipifrutas, Recanto Potiguar, Recanto Nativo, Xique-Xique, Cordel e Sabor, Chapéu de Couro, Tábua de Carne e O Cabra. No Kariri, além de ter sido muito bem atendido, tive a oportunidade de provar o baião de dois, que sai em versão clássica (84,90 reais, para três) e também à moda vegetariana (o mesmo preço), com generosa quantidade de queijo coalho tostado. Outra pedida é a galinha caipira (65 reais, para dois), em um ensopado com riqueza de alho, tomate, cebola, coentro e tempero da casa na companhia de arroz e feijão-fradinho.

Faixada do restaurante Cariri. Na imagem ao lado, uma porção de galinha caipira ensopada sobre uma mesa de madeira
O espaço, com onze restaurantes: a galinha caipira ensopada é uma das pedidas típicas (Arnaldo Lorençato/Veja SP)

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CAJUÍNA A bebida, feita de suco de caju, é trazida do Ceará. Custa R$ 6,00 (480 mililitros). Sabores do Norte. Rua Paulo Afonso, 38, Brás, ☎ 2292-8429.

Garrafa de cajuína
Cajuína: bebida cearense (Divulgação/Divulgação)

CARNE-SECA Salgadinha, é vendida por quilo a partir de R$ 24,00. M. Barbosa Produtos Nordestinos. Rua Paulo Afonso, 79, Brás, ☎ 2693-8306.

Corte de carne-seca
Salgada: carne-seca é vendida por quilo (Divulgação/Divulgação)

FAVA Para cozidos, a fava vermelha cultivada no Ceará custa R$ 18,70 o quilo. Casa do Norte Mineirinho. Rua Teodoro Sampaio, 2797, Pinheiros, ☎ 2495-6492.

Fava em um fundo branco
Cearense: fava vermelha (Divulgação/Divulgação)

MANTEIGA DE GARRAFA Produzida pela Sabiá, de Cachoeirinha (PE), sai a R$ 25,50 o litro. Temperão do Brás. Rua Joaquim Nabuco, 195, Brás, ☎ 2692-8183.

Uma garrafa de manteiga
Manteiga na garrafa: direto de Pernambuco (Divulgação/Divulgação)

GELEIA DE MARACUJÁ DA CAATINGA É elaborada pela Gravetero, da Coopercuc, em Uauá (BA). R$ 12,47 (240 gramas). Greens Market. greens.market.

Pote de geleia de maracujá
Geleia de Maracujá: esta vem da caatinga baiana (Divulgação/Divulgação)

REQUEIÇÃO DE CORTE Vindo de Pernambuco, o laticínio também chamado de queijo manteiga é vendido por peso (R$ 52,00 o quilo). A Casa do Queijo. Rua Martim Francisco, 719, Vila Buarque, ☎ 2539-0252.

Um pedaço de requeijão de corte
Requeijão de corte: laticínio pernambucano (Divulgação/Divulgação)

 

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Publicado em VEJA São Paulo de 27 de janeiro de 2021, edição nº 2722

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