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Os homens que são pais em tempo integral

Ainda uma minoria, eles assumiram a guarda dos filhos e não se sentem extraordinários por isso. Sentem-se simplesmente pais, como deveria ser

Por Ricardo Chapola
Atualizado em 12 ago 2019, 11h50 - Publicado em 9 ago 2019, 06h00

Aos homens, a função de trabalhar fora e sustentar a família. Às mulheres, a obrigação de cuidar da casa e dos filhos. Por mais anacrônica (e machista) que pareça ser, essa premissa está refletida até hoje em situações cotidianas, como as decisões judiciais que envolvem a guarda de filhos de pais separados. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, em dez anos, cerca de 401 000 casais se divorciaram no Estado de São Paulo e disputaram a custódia da prole. Em 95% desses casos, as crianças ficaram com a mulher. “Isso ocorre porque elas sempre tiveram o papel de zelar pelos filhos”, explica Ricardo Cabezón, advogado especialista em direito da família. “A Justiça continua com esse olhar, até por uma questão biológica, pensando na amamentação dos bebês.” Mas, o porcentual de pais que têm obtido a custódia dos filhos vem aumentando na última década. Nesse período, houve um crescimento de 38% no número de homens paulistas que venceram essas ações judiciais. Para celebrar o Dia dos Pais, comemorado neste domingo (11), VEJA SÃO PAULO selecionou histórias de homens que criaram os filhos sozinhos por motivos diversos: alguns após separações litigiosas, outros por acordos amigáveis com a ex-mulher e até por decisão das próprias crianças. Em comum, eles não se sentem extraordinários por isso. Sentem-se simplesmente pais, como deveria ser.

DA SILVA TAMANHO FAMÍLIA

Bárbara, Bruna, Vanessa, Débora, Marcelo, Victor, Denis, Samuel, Jonathan, Mateus, Luis, Raiane, Raira, Richard e Willian. Eis os nomes dos quinze filhos de Valdemir Pereira da Silva, 57. Quando se divorciou, em 2002, o comerciante, à frente de um pesqueiro em Santa Isabel, na Grande São Paulo, ficou com a guarda de duas filhas biológicas e duas adotivas. A parte mais numerosa da família veio em 2013, após Valdemir, como afirma, ter sido agraciado com um milagre. Naquele ano, a primogênita, Bruna, levou um tiro na coluna ao voltar da faculdade e chegou a ser dada como morta pelos médicos. “Diziam no hospital que não havia mais o que ser feito”, conta Valdemir. “Rezei muito, e ela sobreviveu. Depois disso, comecei a adotar as crianças, para agradecer a Deus.” Alguns dos filhos de Valdemir tiveram dependência química antes de ir parar em abrigos. Hoje, todos estudam e os mais velhos trabalham. “Dou aulas de matemática e português aos menores à noite. Aí vamos para a sala ver televisão, todo mundo junto”, diz.

Inseparáveis: Horikoshi e Pietro amam praticar esportes juntos (Alexandre Battibugli/Veja SP)

FILHO DE PEIXE…

Muito embora tenha ficado com a guarda de Pietro, 7, em comum acordo com a exmulher, o personal trainer Luiz Horikoshi, 39, não esconde que passou por dificuldades até chegar a momentos leves como o da foto ao lado, em que ele e o filho são só sorrisos. “Fiquei com o Pietro porque tinha mais flexibilidade em horários, mas foi bastante complicado. No início, ele sentia muita falta da mãe. Agora, é o contrário: quando vai ficar na casa dela, a cada quinze dias, ele sente mais falta de mim”, diz Horikoshi, divorciado desde 2015, quando pai e filho passaram a morar juntos em uma casa na Vila Invernada, na Zona Leste. “Pietro é meu parceiro”, afirma ele. Como dá aulas em mais de uma academia na cidade, Horikoshi conta com a ajuda de sua mãe nos cuidados com o filho. É ela, por exemplo, quem leva o menino à escola. Depois do colégio, os dois passam o resto do dia juntos. “Vou buscá-lo, almoçamos na casa da minha mãe e vamos para a academia. Provavelmente é por isso que Pietro ficou viciado em esportes”, explica o pai, que o acompanha em todas as atividades. Às segundas e às sextas, judô. Terças e quintas são para cair na piscina. E quarta-feira é dia de crossfit. “Ele brinca só, né? Aprende a subir na corda, tudo de maneira lúdica e educativa”, pondera. Quando não estão se exercitando, os dois são bons de garfo. “O moleque gosta muito de comida japonesa e churrasco”, diz. Hoje, Pietro não só lida bem com a separação dos pais como tem tentado integrar as famílias. “A mãe dele teve outro filho, e ele vive me perguntando: ‘Pai, você não sabe trocar fralda? Posso trazer meu irmão aqui?’ ”, conta Horikoshi. “Se a mãe dele deixar, tudo bem.”

Liberdade total: Borges divide a casa com um dos filhos, Gabriel, a nora Paola e os pets (Alexandre Battibugli/Veja SP)

FAMÍLIA SEM TABUS

Desde que seus filhos eram bebês, o sociólogo Paulo Borges, 55, fazia de tudo pelas crianças. “Só não amamentava no peito porque não tinha como”, brinca. A proximidade entre eles era tanta que Gabriel e Pedro — na época, com 10 e 8 anos, respectivamente — decidiram viver com o pai quando ele resolveu se divorciar, em 2002. Foi então que Borges passou a se desdobrar no trabalho para poder cuidar dos filhos. Quando o mais velho completou 18 anos, Borges moveu uma ação contra a ex-mulher exigindo o pagamento de pensão. “Meus amigos me criticaram. Mas fiz e venci. A mãe nunca tinha contribuído”, relembra. Hoje, o sociólogo se orgulha de afirmar que construiu uma rara relação com os filhos. “Eu me sinto muito feliz. Tenho um vínculo forte com eles. Lá em casa, a gente fala de tudo: desde literatura até experiências homossexuais, coisas de que nem a nomenclatura dá conta hoje em dia mas que a gente encara sem tabu”, diz. Junto com o pai, os irmãos conheceram a América Latina e conseguiram até autorização para ter uma cobra de estimação. “Foi a felicidade deles. Está aqui, com 3 metros”, ri Borges, que também tem um cachorro na casa onde vive, em Santo Amaro, com Gabriel, 24, e a nora Paola Noguti. Pedro, 22, faz faculdade na Bahia e participa da rotina pela internet.

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Di Nardo com Daniela, que tem síndrome de Down: abandono materno nos anos 1960 (Alexandre Battibugli/Veja SP)

ZELO ALÉM DO TEMPO

Aos 81 anos, Silvio Di Nardo é um paizão orgulhoso de sua única filha, Daniela, 55, portadora de síndrome de Down. Quando a menina tinha apenas 1 ano, a mãe, alcoólatra, abandonou a família. “Ela bebia muito, e acho que também não aceitava o fato de a Dani ser excepcional”, lamenta o aposentado, que mora com a filha e a atual esposa em Santana. No lugar de preocupações comuns na primeira infância, como a privação de sono ou as trocas de fraldas constantes na madrugada, sempre foi a saúde frágil de Daniela que ocupou a cabeça do pai (e até hoje ocupa, vale dizer). O aposentado nunca abriu mão de levá-la pessoalmente aos médicos. “Foi assim que descobrimos um tumor maligno em seu pescoço. Ela também operou a garganta e depois os olhos, mas se recuperou, ainda bem”, relembra. Por ter superado tantos problemas com a filha, Di Nardo se emociona ao contar a vez em que Daniela cantou junto com sua banda favorita, a Algodão Doce, em sua festa de aniversário de 15 anos. “Isso ficou muito marcado na minha vida. Ainda choro quando lembro dela cheia de alegria em cima do palco.” Seus passeios preferidos juntos são ao parque, ao cinema e à sorveteria. “Nunca quis escondê-la”, diz o pai. O zelo que atravessa décadas rendeu bons frutos: Daniela sabe ler, escrever e até se arrisca na cozinha.

Lições responsáveis: Santos agradece a Vinícius pela mudança de vida (Marcelo Justo/Veja SP)

SEM BOLA DIVIDIDA

Para o fotógrafo Eric Ribeiro dos Santos, 34, ter sido pai aos 23 anos foi o que o salvou do seu autointitulado estilo “vida louca”. “Antes só queria saber de beber e chegar de madrugada em casa”, diz Santos. Em 2008, quando Vinícius nasceu, a responsabilidade bateu à porta e ele trocou a rotina baladeira pelo cotidiano regrado, pautado principalmente pela hora de levar o filho à creche e buscá-lo. Àquela altura do campeonato, porém, o casamento já tinha ido por água abaixo. Com o divórcio, em 2010, o casal decidiu que Santos ficaria com a criança por um tempo. “Até ela concluir a faculdade”, conta. Depois, a ex-esposa chegou a pedir a guarda, mas desistiu: o garoto já estava acostumado com a vida ao lado do pai e da avó, que sempre ajudou em sua criação. “Minha mãe faz comida e às vezes lava roupa quando estou trabalhando”, diz. “O Vinícius salvou minha vida. Agora sou uma pessoa melhor”, afirma Santos, que vive pegando no pé do filho, hoje com 11 anos, para que ele não repita alguns de seus erros. “Fico em cima dele para fazer a lição. Senão é o dia todo no videogame ou jogando bola”, conclui. Nos fins de semana, o futebol é liberado para pai e filho no campinho perto de casa, em Artur Alvim.

Stein com Maria Clara e Francisco: acompanhamento psicológico ajuda (Alexandre Battibugli/Veja SP)

UNIÃO QUE VEIO DO LUTO

Vítima de câncer, a esposa do empresário Rafael Stein, 41, faleceu em setembro de 2018. Viúvo, ele se viu como o único responsável pelos cuidados dos pequenos Francisco, 3, e Maria Clara, 7. “Passei a desempenhar outro papel em casa: dar banho, fazê-los dormir. Não é nada de especial, é o que precisa ser feito por qualquer pai, mas eu só aprendi da maneira mais triste”, revela Stein. Para lidar com todas as emoções decorrentes do luto, ele procurou acompanhamento profissional para os filhos. “A psicóloga diz que eles estão bem, expressando com alegria as ideias relacionadas à mãe”, afirma. A união familiar tem sido a principal aliada para aliviar a inevitável saudade. “Sempre que o peito aperta, combinamos de conversar um com o outro, para chorar juntos”, conta Stein, que começou a pôr no papel suas melhores memórias com a esposa em longas cartas a Maria Clara e Francisco. “Quero que eles tenham lembranças dela.” No último mês, o pai também procurou ajuda e passou a fazer quatro sessões semanais de terapia. Para driblar a cara feia das crianças na hora de comer verduras, ele recorre à imaginação: “Francisco só come brócolis se eu digo que é a árvore do dinossauro”.

Seabra com João Pedro e Maria Luisa: “Não sou incrível por assumir as tarefas do dia a dia, sou pai” (Alexandre Battibugli/Veja SP)

“NÃO SOU UM SUPERPAI”

Há seis anos o servidor público Maurício Seabra, 42, mora com os filhos, João Pedro, 9, e Maria Luisa, 11, em um apartamento na Vila Gumercindo. O divórcio, em 2013, transcorreu no mesmo clima sem brigas que marcou o casamento de sete anos. “Minha ex-mulher viajava bastante a trabalho e sempre teve expediente mais longo que o meu. Como eu já cuidava mais do dia a dia deles, a decisão mútua de eu ficar com a guarda foi bem natural”, afirma. Após a separação, a mãe se mudou para João Pessoa, na Paraíba, e as crianças passaram a visitá-la duas vezes por mês. Casado novamente, o pai conta com a ajuda de uma babá para cuidar dos dois durante o dia. Ao chegar do trabalho, assume o volante. “Faço o dever com eles, damos comida aos peixinhos no aquário, jantamos. Depois vemos um filme ou brincamos com um jogo de tabuleiro”, diz. “Eu não sou um cara incrível por assumir essas tarefas cotidianas nem visto a camisa de ‘superpai’. Se eu me gabar por tentar criar direito meus filhos, daqui a pouco estarei me gabando por tomar banho todos os dias.” Há dois anos, a mãe de Maria Luisa e João Pedro entrou com uma ação (ainda em tramitação) em que pede a custódia dos filhos. “Ela é mãe e os ama tanto quanto eu. Eu não concordo com o pedido, mas entendo”, explica Seabra.

Publicado em VEJA SÃO PAULO de 14 de agosto de 2019, edição nº 2647.

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