Castigado pela pandemia, Centro sofre com degradação e violência
Lojas fechadas, ruas desertas, traficantes e lixo fazem parte do cenário; ao mesmo tempo, atrai negócios e moradores para, mais uma vez, tentar se reerguer
A Rua Dom José de Barros, um dos antigos calçadões do chamado “Centro Novo”, entre a Praça da República e o Teatro Municipal, mais parece um filme pós-apocalíptico em plena luz do dia. Lojas fechadas, muros pichados, traficantes nas esquinas e uma avassaladora quantidade de lixo nas calçadas fazem soar o alerta: os problemas do Centro pioraram na pandemia.
A 600 metros dali, porém, nos arredores do Edifício Copan, um otimista chamaria de “europeu” o clima nos bares e restaurantes descolados do pedaço. Quase um ano após a chegada da Covid-19, contrastes assim se repetem por toda a região central. No cesto dos lugares em crise, inclui-se a bancarrota comercial do Vale do Anhangabaú, a decadência da Praça Dom José Gaspar, a disparada nas queixas sobre furtos e outras agruras. Na balança oposta, estão multinacionais que decidem apostar nos bairros históricos, novos moradores que mudam a cara de prédios tradicionais e comércios icônicos que mostram sua força em meio à turbulência.
8% de todos os empregos da cidade, ou 356 000 vagas, ficam na Sé e na República
A mudança mais visível (e comentada) do Centro, nos últimos meses, é o aumento no número de moradores de rua — sobre o qual a prefeitura não tem dados exatos. A crise sanitária teve consequências na segurança da região. No Largo do Paissandu, a instalação de banheiros pela prefeitura atraiu também traficantes, prostitutas e trombadinhas que aproveitam os novos tapumes para trabalhar. Na Praça Dom José Gaspar, as barracas que se instalaram nos gramados viraram pontos de venda de drogas. Ao mesmo tempo, o Centro deixou de contar com os olhos vigilantes de funcionários públicos que tiveram de trabalhar em casa.
“Aos poucos, uma série de ruas passou a dar aquela sensação de ‘terra de ninguém’”, diz Marina Barbosa, presidente do Conseg (conselho comunitário de segurança), que cuida do trecho entre o Viaduto do Chá e a Praça da República. Ainda que os dados da Secretaria de Segurança Pública mostrem uma estabilidade nos delitos entre 2019 e 2020, a piora é consenso entre comerciantes e moradores.
“Nos últimos três anos, fui assaltado várias vezes na frente do Copan. Saí de lá, não aguentava mais”, diz Alfredo Nora, 44, que hoje aluga sua unidade no prédio. “Sempre teve roubo de celulares no Centro, mas antes eram meia dúzia, agora são dezenas. Quem sacar o celular nas avenidas Ipiranga, São Luís ou Consolação entre as 18 e as 20 horas provavelmente será assaltado”, diz Marcone Moraes, administrador da Galeria do Rock. “Vejo roubos todos os dias embaixo da minha janela”, completa Bruno Bocchese, dono de bares e morador da Praça da República. “Fechamos às 18 horas porque os clientes não vêm mais para o Centro à noite”, acrescenta Rodrigo Alves, dono do Ponto Chic — que no sábado (30) desobedeceu a ordem de fechamento da prefeitura, indignado com a ida de Bruno Covas ao Maracanã. A lanchonete, pelo menos, segue aberta. “Muitos comércios e restaurantes do Vale do Anhangabaú fecharam com as obras e a pandemia”, lamenta Vavá do Bixiga, gerente do centenário Guanabara.
Se a falta de segurança e de zeladoria — materializada não só pela presença constante do lixo, mas também em pontos como o calçadão da Rua 7 de Abril, reformado em 2016 e já cheio de buracos e lixeiras quebradas — freia a recuperação do Centro, outra campeã de queixas é a burocracia que envolve a recuperação de imóveis ociosos.
Por ser uma região cheia de prédios antigos e tombados, a papelada necessária pode levar a labirintos regulatórios sem saída. “Só para trocar o letreiro da fachada, precisei de nove meses até conseguir as aprovações”, diz Alves, do Ponto Chic. “Para fazer um retrofit, você precisa da permissão de até sete órgãos públicos. Mas não se trata de um mesmo processo que tramita por todas essas esferas: em cada uma, é preciso iniciar um novo trâmite e mandar os mesmos documentos”, diz Fábio Redondo, dono de sete hotéis no Centro que passaram por reformas. “E, se você quiser propor uma mudança de uso, todos os processos recomeçam do zero”, completa. “As obrigações são imensas, o que leva ao paradoxo dos imóveis abandonados. É preciso reverter isso para as empresas voltarem à região”, completa Marcos Lisboa, diretor do Insper.
A prefeitura afirma que lançou um projeto para a requalificação da 7 de Abril. Sobre a zeladoria e limpeza, diz que investiu no monitoramento dos problemas, reformou 1 455 bueiros, instalou 307 pontos de iluminação e faz varrição nove vezes ao dia na região (uma caminhada ao redor da prefeitura revela que é muito pouco).
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Em 2020, um grupo de empresários formou uma associação chamada Pró-Centro para pressionar pelas mudanças. “Estamos criando uma frente de vereadores para transformar a região em uma zona de interesse especial”, diz Odivaldo Silva, um dos idealizadores. Mas a mais relevante iniciativa comunitária das últimas décadas, a Viva o Centro, crida em 1991, atualmente se encontra em uma espécie de hibernação. “Temos poucos funcionários e menos engajamento dos moradores, que hoje tentam resolver suas queixas pelo site da prefeitura”, diz Anderson Rocha, coordenador de operações da associação.
A letargia na busca de soluções para o Centro se torna imperdoável em momentos como a crise atual. Mas a sensação de paralisia ainda permeia espaços nobres e abandonados como o Cine Marrocos e o Art-Palácio. Ambos os cinemas seguem deteriorados, dez anos depois de desapropriados pela prefeitura, que afirma estudar soluções para os locais.
A sina de reconstruir escombros não é nova no Centro, sempre o primeiro a sofrer nas crises econômicas. Ante aos problemas, ele costuma fazer valer a força das mais de 20 000 empresas e dos 356 000 empregos (ou 8% de todos da cidade) que existem apenas nos bairros da Sé e da República. Mesmo na pandemia, marcas importantes decidem apostar na região. É o caso da Allianz, que acaba de reformar um prédio para centenas de funcionários na rua Conselheiro Crispiniano, ou do Santander, que revitalizou uma área próxima ao metrô São Bento.
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“O comércio cotidiano sempre será fundamental para oxigenar a cidade”, diz o professor de arquitetura Valter Luís Caldana, que vê saídas para a crise. “Fechar atividades é difícil, já que não temos um estado organizado. Mas as lojas podem usar a calçada para garantir atendimento sem aglomeração”, aponta. “A Prefeitura tem um plano de revitalização do Centro, por meio da ocupação dos espaços públicos e fomento da atividade econômica e turística. O projeto Triângulo SP prevê sessenta ações. Anunciado em 2019, ainda não começou. É provável que reformas, que poderiam ser feitas enquanto o Centro opera em ritmo reduzido, só começarão quando o comércio precisar recuperar o tempo perdido. Tapumes na hora errada.
Em Barcelona, quadras no interior de blocos de prédios servem de pontos de encontro. Em São Paulo, mais especificamente no Copan, quem faz esse papel é a via interna que liga o prédio, projetado por Oscar Niemeyer (1907-2012), aos edifícios Vila Normanda e Bradesco Nova Central. Antes da pandemia, circulavam no pedaço os frequentadores do restaurante Orfeu, da lanchonete Copanzinho e da associação cultural Pivô. Em 23 de novembro, no meio da crise sanitária, uma nova integrante se juntou ao grupo: a livraria Megafauna. Em espaço adjacente a ela, veio também o restaurante e café Cuia, da chef Bel Coelho.
“Tem sido melhor do que a gente esperava. Temos ouvido dos clientes que é um alento na quarentena ir até a livraria”, diz a editora Fernanda Diamant, uma das sócias. “Muita gente de outros bairros tem vindo comprar aqui. Mas o Centro, é preciso falar, tem uma população leitora muito grande.” Nem tudo no Copan, porém, é efervescência cultural. A reforma da fachada se arrasta desde 2011. No mais recente capítulo, o condomínio disse que apresentaria ao Conpresp no primeiro semestre de 2020 um projeto executivo onde constaria o tipo de pastilha a ser utilizado no exterior do prédio, um dos motivos da celeuma, e o cronograma de obras. “Por causa da pandemia, atrasamos. Até mês que vem devemos entregar”, diz o síndico Affonso Celso Prazeres de Oliveira, 80, à frente da gestão desde 1993. Oliveira é uma seção à parte nos conflitos. “Morar aqui é muito bom, seria melhor ainda se o síndico ouvisse as reivindicações dos moradores por um bicicletário e por medidas de segurança. Tem uma gangue da bicicleta assaltando na região”, aponta Fábia Renata Souza de Oliveira, 44, que vive lá desde 2009. Menos afeito a ódios e paixões, o vizinho e curador Thyago Nogueira, 45, faz um resumo da ópera: “O prédio ganhou uma organização exemplar com o Affonso, mas é preciso repensar a gestão, que é baseada no poder centralizador do síndico”, opina.
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Desde 2018, o Mirante do Vale, prédio mais alto de São Paulo, com 170 metros, tem buscado se renovar. Naquele ano, o condomínio permitiu o acesso 24 horas de pessoas que exerciam ali funções ininterruptas e criou assim uma brecha para o uso residencial. O prédio, que estava com salas comerciais vazias, se encheu então de hóspedes de aplicativos como o Airbnb. Vieram também os moradores. Um dos primeiros foi o paulistano Fernando Thadeu Fonseca dos Santos, 38, que vendeu um apartamento na Cohab de Carapicuíba para investir em uma quitinete de quase 40 metros quadrados, com uma minicozinha.
“Fiz um binóculos para minha mãe enxergar melhor a vista do Vale do Anhangabaú quando vier me visitar”, conta ele. O vizinho francês Charly Andral, 34, adquiriu duas salas no 43º andar, agora transformadas em espaço cultural. Em cartaz está a instalação Três Paus Três Redes O Fogo, de Thiago Benucci (na foto abaixo, a modelo Itamara Alves, 24, namorada de Charly, experimenta a obra). “O senso comunitário das pessoas mais pobres é mais sofisticado do que o das de classe média e alta. Por isso, os estrangeiros, tão afeitos à ideia de comunidade, se sentem melhor no centro”, defende o fotógrafo Leonardo Finotti, que junto à arquiteta Michelle Jean De Castro tem no Mirante do Vale, desde 2013, a galeria de arte Lama.SP e um estúdio de fotografia. A reportagem procurou a prefeitura para saber sobre a regularidade do uso misto do Mirante, mas até o fechamento desta matéria não obteve retorno.
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A praça Dom José Gaspar, na República, ensaiou um renascimento nos últimos anos. Novos restaurantes e eventos atraíam um público descolado à região. Na pandemia, porém, o tráfico de drogas em barracas e as falhas na iluminação pública mudaram o cenário. “É onde a segurança mais piorou no Centro”, diz Marina Barbosa, presidente do Conseg (o conselho comunitário de segurança), daquele trecho do bairro. Na galeria Metrópole, anexa à praça, os corredores vivem abandonados (só 50% das lojas estão abertas) e goteiras viraram rotina. O bar Mandíbula, que ficava no 2º piso, fechou em 2020 com queixas sobre a zeladoria. “Os proprietários não têm interesse em reformar a galeria”, diz Bruno Bocchese, ex-sócio. Ricardo Gouveia, o síndico, diz que uma obra recente acabou com as goteiras. “Só ficaram as marcas no chão. O piso é dos anos 60, não é fácil trocar”, diz.
Mesmo na crise, o Centro mantém uma incomparável capacidade de atrair clientes para os comércios. Um exemplo é a Galeria do Rock. “Não perdemos nenhum inquilino, tivemos apenas unidades que diminuíram de tamanho. A ocupação é de 87%”, diz o administrador Marcone Moraes. A ociosidade se concentra nos andares de cima, onde não são poucos os tapumes. Perto dali, o Ponto Chic (que completa 100 anos em 2022) também aproveita o movimento da região. “Quando reabrimos, em maio, a unidade do Centro foi a que se recuperou mais rápido (a rede tem lojas no Paraíso e nas Perdizes). No dia seguinte à liberação, vendemos 70% do patamar normal”, diz o sócio Rodrigo Alves.
“A 25 de Março também está aquecida. Quem ficou desempregado vem comprar coisas aqui para revender”, diz Fabio Redondo, dono de sete hotéis no Centro que recebem essa clientela. “O Centro atrai as pessoas por ter comércios e gastronomia para todos”, completa Alessandro Reis, que abriu um coworking no Edifício Andraus às vésperas da chegada da Covid-19. “Investi 1 milhão de reais e ficamos quase parados em 2020. Agora já temos 30% de ocupação e, com aluguel baixo, somos lucrativos”, diz.
Nos quarteirões entre o Vale do Anhangabaú e a Praça da República, são inúmeros os flagrantes de violência e falta de serviços públicos. A Rua Dom José de Barros, uma ligação entre o calçadão da Rua 7 de Abril e o Largo do Paissandu, é o ponto mais degradado do pedaço. Lixo nas calçadas, comércios falidos, muros pichados e pontos de tráfico formam a paisagem local. Na Praça da República, os assaltos se tornaram rotina. “Vejo diariamente pela janela os roubos de celular”, diz Bruno Bocchese, morador da praça.
No Largo do Paissandu, a prefeitura instalou banheiros para atender à população de rua na pandemia. A estrutura obstruiu quase a metade da praça com tapumes. Hoje, além dos desabrigados, o largo se tornou refúgio para traficantes e ponto de prostituição. E, como os banheiros fecham à noite, a turma usa os gramados para fazer as necessidades. “Foram disponibilizados 151 079 banhos e 3 340 usos na lavanderia”, diz a prefeitura. De frente para o Paissandu, segue vazio o terreno onde desabou Edifício Wilton Paes de Almeida, em 2018 (em frente ao grafite, na foto acima). No início de 2020, Bruno Covas anunciou que faria moradias populares ali. “Projeto, orçamento e cronograma estão em andamento”, diz a administração.
A requalificação urbana do eixo formado pela rua João Brícola e a Praça Antônio Prado, conhecida também como Praça dos Engraxates, foi aprovada pelo Conpresp em 7 de dezembro de 2020. O projeto, encampado pelo banco Santander em parceria com a Bolsa de Valores (ou B3), inclui a instalação de floreiras e bancos ao longo do espaço. Segundo a B3, porém, não há data para o início das obras. A Bolsa tem um braço de investimento na região central. A empresa adquiriu um terceiro prédio no Centro, agora na João Brícola. O objetivo é levar para o local, até 2023, as equipes de funcionários que estão em Alphaville, centralizando as operações no coração da cidade.
No salão vazio do restaurante Princesa, de frente para o Vale do Anhangabaú, a proprietária Mônica Medeiros pergunta à cozinheira quantos almoços saíram no dia (27/1). “Três marmitex” é a resposta. “O normal eram 300 refeições. Eu tinha doze funcionários, sobraram quatro”, diz a empresária. Com aluguel de 12 000 reais no ponto, ela precisou vender um apartamento para dar conta dos prejuízos. No tradicional Guanabara, esquina da Avenida São João com o Anhangabaú desde 1935, as demissões seguiram a mesma proporção: eram 36, ficaram doze. “Só não fecha porque os donos põem dinheiro”, diz o gerente Vavá do Bixiga.
Na esquina da frente, o imóvel onde existiu a churrascaria Bovino’s exibe uma placa de “fechado para reformas” para inibir ocupações de sem-teto — na verdade, não há reforma. Nos últimos meses, a combinação da pandemia com a polêmica revitalização feita pela prefeitura transformou o Anhangabaú em um vale de lágrimas para os comércios. “A obra (que cercou a praça com tapumes) foi pior que a Covid-19 para nós. Os clientes não descem mais para cá”, diz Mônica. Enquanto ruas próximas têm movimento e lojas abertas, no desértico Anhangabaú o único agito são os jovens que se aglomeram para beber junto aos tapumes no fim de tarde (veja a foto). A prefeitura diz que os tapumes seguem ali justamente para evitar aglomerações na praça e que a obra terminou em outubro, embora o consórcio siga trabalhando para “certificar que os novos equipamentos, entre eles as fontes de água, funcionem”. Na calçada dos Correios, placas de “aluga-se” dominam a cena. A sede histórica da estatal, um prédio de 15 000 metros quadrados do início do século passado, está sem os funcionários administrativos devido a uma reforma iniciada em 2020. No térreo e mezanino, apenas a agência postal e o Centro Cultural seguem abertos. Mas, mesmo antes da pandemia, o espaço recebia em média apenas 45 visitantes por dia.
“Um deserto. A parte interna da galeria, com a pandemia, virou um deserto”, exclama João Zito Correa dos Santos, auxiliar de zelador do Conjunto Zarvos, que fica na esquina da Rua da Consolação com a Avenida São Luís. O prédio, de 1959, projetado pelo arquiteto e exdi retor do Masp Júlio Neves, conta com duas torres. Há também uma galeria no térreo e no mezanino com 35 salas comerciais. Dentre os estabelecimentos que sobreviveram à crise sanitária e econômica, estão escritórios de advocacia, a casa noturna Alberta #3, a loja colaborativa Endossa e os restaurantes Wanderlust e Ramona. Ficou na estrada o Little Rock Coffee, de internet potente, convidativa para quem queria trabalhar com quitutes e sucos à mão.
No balanço geral, apenas pouco mais de um terço das 35 lojas está ocupado. Mas o ano de 2020 trouxe um reforço à Zarvos em dezembro: o estúdio de design Paulo Alves, vindo da Vila Madalena. Em abril de 2021, outra boa nova vem do vizinho Louvre: a inauguração da Verve Galeria, antes no Jardim Paulistano. “É um salão de 110 metros quadrados, na altura da copa das árvores, com vista para a Biblioteca Mário de Andrade”, diz Ian Duarte Lucas, que tem o marido Allan Seabra como sócio.
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Publicado em VEJA São Paulo de 10 de fevereiro de 2021, edição nº 2724