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Como recuperar nossas calçadas, o patinho feio do urbanismo local

Dos esportistas aos amantes dos botecos, das crianças aos mais velhos, essa porção das ruas volta a ser termômetro de qualidade de vida

Por Marianne Wenzel
Atualizado em 19 out 2018, 06h00 - Publicado em 19 out 2018, 06h00

Há um fenômeno invejável no mundo. De Paris a Bogotá, de Singapura à Cidade do México, as calçadas estão ficando mais largas, mais frequentadas e mais bonitas. Numa era em que o trabalho e até a paquera são cada vez mais nômades, a quantidade de gente que passa mais tempo batendo perna literalmente se multiplicou. Nova York eliminou pistas de carros da Broadway à Times Square para dar mais lugar a quem flana pela cidade.

São Paulo é lanterninha nessa corrida. O orçamento municipal não prevê verba nem mesmo para os 17% dos passeios sob a responsabilidade direta da prefeitura — os outros 83% deveriam ser mantidos pelos donos dos terrenos. Para efeito de comparação, o programa Asfalto Novo recebeu 461 milhões de reais entre novembro de 2017 e junho deste ano, quase quatro vezes o valor destinado até 2020 ao programa Pedestre Seguro. Coordenada pela Companhia de Engenharia de Tráfego (CET), essa iniciativa só impactou a ampliação do tempo de travessia de vias movimentadas, como as avenidas Rebouças e do Estado. Melhorias em calçadas nem sequer entraram na pauta.

Nossos 34 000 quilômetros de calçada recebem 41% dos deslocamentos realizados na capital, segundo estudo da Associação Nacional de Transportes Públicos. Tantas viagens a pé nunca mereceram um bom naco dos recursos públicos que jorraram por décadas para túneis, viadutos e vias expressas.

Paris: na tendência do alargamento das calçadas (Artur Debat/Getty Image/Veja SP)

Há, no entanto, uma luz no fim desse passeio. Ao assumir o cargo, em abril, o prefeito Bruno Covas alocou em seu gabinete a Comissão Permanente de Calçadas (CPC), criada um ano antes por iniciativa sua. O órgão, que reúne representantes de secretarias e empresas públicas, trabalha para coordenar os diversos tipos de intervenção e entrar no orçamento da Secretaria de prefeituras regionais. A CPC também é autora de uma norma que está saindo do forno para consolidar a dispersa legislação.

“Organizamos as quatro leis e os cinco decretos existentes”, diz a coordenadora da comissão, Matilde da Costa. A nova legislação é apenas o marco zero de uma longa caminhada. A seguir, listamos as principais soluções apontadas por especialistas para tornar São Paulo uma cidade mais amigável com os pedestres.

PROBLEMA: Largura insuficiente

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SOLUÇÃO: Novo cálculo para o passeio livre

Trecho da Rua Bandeira Paulista, no Itaim (Alexandre Battibugli/Veja SP)

Sem alterar as leis vigentes, o decreto elaborado pela CPC procura avançar na questão da largura mínima obrigatória mantida para o trânsito de pessoas, o chamado passeio livre, fixada em 1,20 metro. “Não faz sentido a calçada de um novo empreendimento, que já nasce mais larga porque é observada a legislação, reservar apenas 1,20 metro para a circulação”, diz Matilde da Costa. Caminhando nessa direção, o decreto estipula que essa faixa passe a corresponder a 50% da largura de calçadas acima de 2,40 metros.

Para especialistas, duplicar a medida mínima ainda é pouco. “São necessários 3 metros para que duas pessoas andem lado a lado confortavelmente”, explica o arquiteto Mauro Munhoz. Segundo o documento 8 Princípios da Calçada, elaborado pelo WRI Brasil, organização de pesquisa com forte atuação em temas urbanos, o correto seria levar em conta o fluxo de pedestres a fim de estabelecer essa dimensão com mais precisão, como o que fez a cidade de Londres em um estudo de 2010.

PROBLEMA: Falta de estímulo a outros usos

SOLUÇÃO: Incorporar bancos, expositores e equipamentos de ginástica

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Croqui extraído do documento 8 Princípios da Calçada, elaborado pela organização WRI Brasil (Divulgação/Veja SP)

É consenso entre os principais urbanistas: quanto mais uso, mais qualificado se torna o espaço público. Isso se aplica às calçadas também. “Elas são como as veias do corpo humano. Irrigam, levam vida à cidade. Isso vai muito além da largura ideal”, diz o arquiteto paisagista Benedito Abbud. Em sua opinião, equipamentos de ginástica e marcações para caminhadas são ótimos exemplos para deixar os passeios mais vivos, bem como sua utilização para fins culturais.

“Muros altos, como os de cemitérios, dariam ótimos expositores e tornariam a calçada mais convidativa. Isso aumenta a sensação de segurança e a vontade de passar por um determinado caminho”, acredita. A presença de mobiliário urbano, como bancos, também transforma a percepção do espaço, que não só serve de passagem, mas também se torna um local de permanência.

PROBLEMA: Falta de fiscalização

SOLUÇÃO: Formalizar denúncias por meio do 156

Largura insuficiente, desníveis, buracos, uso indevido, obstruções e má conservação constam dos problemas recorrentes que dificultam ou mesmo impedem a passagem de pedestres pelo 1,20 metro livre que, teoricamente, toda calçada deveria resguardar. A prefeitura admite ter dificuldade em fiscalizar os 34 000 quilômetros de calçadas paulistanas, mas aposta que o melhor fiscal é o próprio cidadão. Pelo site ou app do portal de atendimento da prefeitura, é possível enviar a denúncia com foto, o que o sistema computa e a administração leva em conta em ações futuras.

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É como registrar o boletim de ocorrência de um furto: só se a vítima fizer isso a polícia pode consolidar dados e prever ações de monitoramento. “Mas é preciso melhorar a interface”, avisa Glaucia Pereira, da Cidadeapé. “Fizemos um estudo e constatamos que o site e o app são confusos. Você fica sem saber se o assunto de sua reclamação concerne à CET ou à prefeitura”, avalia.

Via Orchard, em Singapura: mobiliário integrado (Simonlong/Getty Images/Veja SP)

PROBLEMA: Calçadas fora do padrão e com erros

SOLUÇÕES: Disponibilização de orientação técnica e exigência de projeto

Degraus, valas de drenagem cortando calçadas, material inadequado… os erros a cada passo percorrido são muitos e perigosos. “Há questões técnicas essenciais que acabam sendo desprezadas por puro desconhecimento. Daí a importância do projeto. Os pontos relativos à calçada deveriam constar do projeto submetido à prefeitura para a aprovação de uma construção ou reforma”, argumenta a arquiteta e urbanista Adriana Levisky. “Além disso, a prefeitura precisa disponibilizar orientação técnica e exigir a realização do serviço por empresa credenciada, previamente capacitada. Estamos falando de espaço público, não é possível abrir mão desse controle”, acredita.

Segundo ela, falta incorporar responsabilidade técnica, identidade visual e lógica urbana — o que só virá com a maturidade dos mecanismos administrativos. “Só assim se criam as condições para a melhora. Vai levar tempo. Mas o pulo do gato nessas regulamentações está em buscar formas viáveis para as pessoas lidarem com essa pequena obra na frente do seu lote”, finaliza Adriana.

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PROBLEMA: Falta de cooperação das concessionárias

SOLUÇÃO: Criação de valas técnicas

Calçada na Grande Seul (Gw. Nam/Getty Images/Veja SP)

Manutenções nas redes de gás, água e energia elétrica costumam provocar grandes interferências em calçadas, muitas vezes causando remendos esteticamente questionáveis. “Advertidas pela prefeitura, as concessionárias recorrem de multas a instâncias federais, alegando que sua prioridade é fazer o necessário para fornecer o serviço contratado. E ganham”, relata Luis Eduardo Brettas, da SP Urbanismo.

Nesse ponto, falta um pacto entre as partes ou medidas como a exigência de valas técnicas nas calçadas de modo a facilitar o acesso à rede subterrânea por meio de eixos removíveis. Enquanto nada disso ocorre, a saída é enfrentar a questão judicialmente.

PROBLEMA: Pouca clareza sobre o que é de responsabilidade pública ou privada

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SOLUÇÃO: Criar governança e mecanismos de gestão colaborativos

minigolfe em Filadélfia (Raul Justes Lores/Veja SP)

Diagnóstico recente realizado pela SP Urbanismo calculou quanto custaria reformar todas as calçadas da cidade. Deu 14 bilhões de reais — mais do que o montante gasto na construção de todos os estádios de futebol erguidos para a Copa de 2014. “Chegamos a esse número levando em consideração uma série de fatores, como declividade, largura e frente do lote, estabelecendo graus de dificuldade de execução e utilizando valores de referência por metro quadrado”, explica Luis Eduardo Brettas, diretor de projetos estratégicos e paisagem da empresa. “É uma conta que nenhuma prefeitura pode assumir”, avalia.

Por isso, nem se discute mais o modelo adotado na maioria das cidades, de transferir a responsabilidade sobre a calçada para o proprietário do lote em frente a ela. “Em Nova York e Bogotá, reconhecidas por boas práticas nessa área, também é assim”, diz Paula Santos, gerente de mobilidade ativa do WRI Brasil. “A diferença é que ambas disponibilizam guias completíssimos para a execução”, afirma.

Assentos no muro de padaria em Beirute (Raul Justes Lores/Veja SP)

Além disso, Nova York atua fortemente em fiscalização e Bogotá tomou esse tema como bandeira de sua transformação urbana desde a primeira gestão de Enrique Peñalosa (1998- 2000), eleito novamente em 2015. Nada disso ocorre em São Paulo. “Falta governança nesse modelo compartilhado”, aponta Glaucia Pereira, diretora financeira da Cidadeapé. O vereador José Police Neto (PSD) faz coro: “O fato de a calçada ser de responsabilidade privada não exclui a necessidade de uma boa gestão pública”. Orientação a coletivos e associações que desejem melhorar suas calçadas deve ser atribuição da prefeitura.

PROBLEMA: Negligência com a mobilidade a pé

SOLUÇÃO: Regulamentar o estatuto do pedestre

A Rua Pedro de Toledo, na Vila Mariana, incluída no Plano Emergencial de Calçadas (Marianne Wenzel/Veja SP)

A situação precária de muitas de nossas calçadas reflete uma política urbana que, desde os anos 50, privilegiou o transporte individual. Mas isso está mudando. “A calçada não pode mais ser vista como simples transição entre a rua e a garagem”, diz o vereador Police Neto, autor do Estatuto do Pedestre, há mais de um ano à espera de regulamentação. “A boa política precisa reconhecer o caminhar como um tipo de modal, que requer investimentos como todos os outros”, prossegue.

Hoje, a verba para as calçadas sob a responsabilidade da prefeitura — as lindeiras com prédios públicos, as situadas em vias estruturais e as rotas de acessibilidade imprescindíveis abrangidas pelo Plano Emergencial de Calçadas — costuma vir do Fundo de Desenvolvimento Urbano, proveniente de outorgas onerosas, autorizações concedidas aos empreen dimentos para construir além do permitido mediante contrapartida financeira. Em 2017, foram 17 milhões de reais, valor pouco maior que o gasto somente com o muro de vidro da USP — 15 milhões de reais.

Rua Joaquim Antunes, em Pinheiros: largura mais confortável (Marianne Wenzel/Veja SP)

“O Estatuto do Pedestre vai prever de onde virão os recursos destinados às calçadas, organizando um sistema de financiamento permanente”, explica o vereador. Em tempo: os 17 milhões de reais levantados em 2017 foram destinados ao projetopiloto na Rua Pedro de Toledo, na Vila Mariana, já executado. As demais calçadas contempladas pela ação, nas ruas Loefgreen, Borges Lagoa e Diogo de Faria, escolhidas por sua proximidade com importantes hospitais da capital, estão em fase de licitação.

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