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Como Portugal soube recuperar seu patrimônio histórico

Descongelamento dos aluguéis, incentivos a investidores e remoção de entraves burocráticos mudaram o cenário do país europeu na última década

Por Beatriz Muylaert, de Lisboa
Atualizado em 17 jan 2021, 11h38 - Publicado em 15 jan 2021, 02h02

Fachadas sustentadas por estruturas metálicas. Essa tornou-se uma cena corriqueira nas cidades de Portugal, sinal do boom na reabilitação de edifícios históricos ou tombados. Por trás disso, uma “tempestade perfeita”, nas palavras de Pedro Baganha, vereador do urbanismo no Porto. A combinação entre um novo regime jurídico, benefícios fiscais, o descongelamento dos aluguéis, o reaquecimento da economia pós-crise de 2008 e o crescimento do turismo na região catalisou o processo de restauros na última década.

Em 2009, Portugal implementou o novo Regime Jurídico da Reabilitação Urbana para acelerar a recuperação das cidades. Os municípios estabeleceram Áreas de Reabilitação Urbana e planos para desenvolvê-las, incluindo a remoção de entraves burocráticos e o aumento do atrativo para investidores.

Na mesma época, o Regime Extraordinário de Apoio à Reabilitação Urbana concedia benefícios fiscais a restauros de edifícios antigos: o IVA, o ICMS local, caiu de 23% a 6% na construção e foram isentos o imposto municipal sobre imóveis (equivalente ao IPTU), por um período determinado, e o imposto municipal sobre as transmissões (equivalente ao ITBI) desses espaços. Gradualmente, foi sendo simplificado o processo de aprovação das obras de reabilitação e flexibilizados requisitos técnicos, como o de isolamento sonoro e de eficiência energética e térmica, no caso de restauros de prédios com mais de trinta anos ou nas áreas de reabilitação urbana.

As mudanças na lei do inquilinato foram o detonador. Em 2012, ano em que foi implementado o Novo Regime de Arrendamento Urbano, estimava-se que 1,9 milhão de habitações de Portugal — 32% do total — careciam de alguma intervenção. Há décadas, os proprietários não podiam rever preços ou prazos dos contratos, nem retomar seus imóveis.

Em 2011, 37% dos contratos de aluguel no país tinham valor inferior a 100 euros, sendo 23% inferior a 50 euros. Proprietários empobreceram e deixaram de cuidar dos imóveis. As prefeituras também não arrecadaram impostos que poderiam ter sido reinvestidos no espaço público e as cidades foram se degradando.

Centro de Porto, Portugal
Porto: programa de reabilitação transformou a região central (Teresa Teixeira/Carlos Silva/Divulgação)

“Há duas maneiras de se destruir uma cidade, uma delas é bombardeá-la, a outra é congelar as rendas”, provoca Luís Menezes Leitão, presidente da Associação Lisbonense de Proprietários, numa frase que circula pelo setor. O novo regime modernizou os contratos de aluguel de imóveis, dinamizando o mercado imobiliário. Houve um aumento na oferta de espaços e também na confiança de investidores e proprietários.

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“A reabilitação urbana era uma prioridade estratégica de todos os presidentes de Câmara (equivalente aos prefeitos no Brasil). Havia uma situação de degradação geral dos edificados e do ambiente urbano”, diz Ricardo Veludo, vereador do urbanismo em Lisboa.

A valorização do patrimônio histórico arrancou com investimentos públicos no início deste século. Em 2001, o Porto foi eleito Capital Europeia da Cultura e um programa de reabilitação transformou o centro da cidade, que sediou eventos culturais, festivais de rua e outras ações táticas, parte de uma política municipal de promover a cidade como “hype”. “A lição que tiramos é a seguinte: o primeiro investimento para reabilitar uma zona da cidade tem de ser público, do estado ou da Câmara”, explica Pedro Baganha.

Em Lisboa, a reabilitação do Terreiro do Paço (Praça do Comércio, 2011) foi um marco: um estacionamento transformado em ponto turístico com vista para o Rio Tejo. Nascia ali um novo capítulo para a cidade que antes vivia de costas para o rio e que continua a ver sua margem ser transformada pelos Projetos Frente Ribeirinha. Seguindo a linha do trem, em 2014 foi inaugurado o novo Mercado da Ribeira. O projeto foi realizado pela revista Time Out Lisboa, após vencer concurso lançado pela Câmara Municipal para a revitalização. A praça de alimentação com espaços de premiados chefs portugueses trouxe uma atração gastronômica jovem e descontraída para a cidade.

Ribeira das Naus, antes e depois
Contato com o Tejo: projetos vêm transformando a margem de Lisboa, criando uma nova avenida ribeirinha e praias urbanas (Câmara municipal de Lisboa/Divulgação)

Portugal redescoberto

No início da década passada, também acontecia a Primavera Árabe (onda de manifestações contra governos, a partir de dezembro de 2010). A instabilidade em países como Egito, Marrocos e Tunísia transformou Portugal em um destino. “De repente, passamos a ser uma alternativa para esses fluxos turísticos que iam do norte da Europa para o norte da África”, explica Baganha. “Foi mesmo uma tempestade perfeita.”

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Seguiu-se uma redescoberta de Portugal: inúmeros dias de sol, charme, calor, comida boa, segurança e bons preços, quando comparado a outros países da Europa. Portugal entrou na moda. “Os olhos de grande parte do mundo ficaram sobre Lisboa, e esta torna-se muito acessível, quer para turismo, quer para investimento”, diz Sérgio Rebelo, sócio do escritório de arquitetura DNSJ.arq.

Faixada
Projeto residencial Augusta 170, do escritório dNSJ.arq, no eixo central da baixa Pombalina, centro histórico de lisboa: faixada preservada (Onstudio/Divulgação)
Externo e interno do projeto residencial
Projeto residencial Augusta 170, do escritório DNSJ.arq, no eixo central da baixa Pombalina, centro histórico de lisboa: preservação estrita da fachada, com liberdade para mudanças internas (Onstudio/Divulgação)

O boom do turismo foi um catalisador na reabilitação de Portugal, principalmente nos centros das cidades, que adquiriram uma nova função urbana. “Em dez anos, foi feito aquele trabalho que imaginávamos que fosse levar cinquenta”, diz Baganha sobre o desenvolvimento do centro do Porto.

O fluxo de capital que entrou no país ganhou força em 2014 e 2015. Houve um reaquecimento da economia pós-crise de 2008, bancos europeus aumentaram suas linhas de crédito e os regimes fiscais favoráveis trouxeram capital estrangeiro. Portugal também tornou-se atrativo por ser um lugar seguro em um momento de instabilidade política e econômica em lugares como o Brasil e de ataques terroristas em outros países da Europa. Para brasileiros, um atrativo a mais: a língua.

 

Antes e depois: Solar de Santana
Antes e depois: Solar de Santana, construído no século XVII, agora é residencial de alto padrão. Na obra havia achados arqueológicos, cujas fotografias são expostas na entrada junto com azulejos originais do edifício (Westport/Divulgação)

Empreendedores imobiliários internacionais entraram no mercado português. “As oportunidades estavam em cima da mesa, era a melhor altura para comprar e poder desenvolver coisas e contribuir para o crescimento da cidade, do país”, diz Diogo Pinto Gonçalves, diretor da Westport, que recentemente inaugurou o Solar de Santana, um projeto de reabilitação residencial de alto padrão, em Lisboa.

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Investimentos estrangeiros foram impulsionados pelo programa de Autorização de Residência para Atividade de Investimento, principalmente de chineses, franceses, brasileiros e ingleses. O Golden Visa permite que residam no país aqueles que investirem um valor mínimo — 350 000 euros, no caso da aquisição e reabilitação de um imóvel (280 000 euros se este for em uma área de baixa densidade). O Regime Fiscal dos Residentes Não Habituais oferece isenção fiscal de dez anos a residentes de outros países que transferirem residência fiscal para Portugal.

Casas no Centro

Os centros das cidades voltaram a ser atrativos e foram repovoados. “É ali que as pessoas hoje querem viver”, diz Arthur Moreno, sócio da empreendedora imobiliária Stone Capital. “Os estrangeiros querem porque é a essência da cidade e, cada vez mais, os portugueses também voltaram a achar graça no centro.”

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Os arquitetos Nuno Simões e Sérgio Rebelo, sócios do DNSJ. arq e projetistas do Arco Augusta, na Baixa, zona emblemática de Lisboa, readaptaram o edifício, sede histórica do Banco Espírito Santo, para abrigar residências. No caso, apartamentos menores, de até dois quartos, que obedecem ao “ritmo das janelas” da construção pombalina.

“Alguns investidores estrangeiros tiveram essa apreciação que valia a pena recuperar edifícios antigos, com personalidade e que as pessoas pudessem viver em zonas centrais”, diz Simões. “Um tipo de vida um bocado diferente do que os portugueses procuravam.”

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O boom dos restauros gerou uma falta de mão de obra qualificada — muitos trabalhadores migraram para outros países na crise de 2008 e não voltaram — e um consequente aumento no preço das construções. Em um intervalo de cinco anos, a DNSJ.arq viu o valor de construção de projetos similares, nessa mesma zona e realizados pela mesma empresa, aumentar 70%.

Atualmente, há uma preocupação com a gentrificação nos ambientes urbanos e com o aumento dos preços de habitação, agravado devido à explosão dos alojamentos de curta duração (Airbnb) antes da pandemia. Nos últimos cinco anos, o valor médio do metro quadrado habitacional em Lisboa aumentou mais de 80%. No país, o aumento foi de 40% — um crescimento duas vezes mais rápido que a média de outros países da Europa. O preço médio do metro quadrado habitacional era de 1 284 euros no início de 2016 e hoje está acima de 1 800 euros (em Lisboa, acima de 3 300 euros).

“Temos de fazer um esforço para evitar a expulsão da população que resistiu naquele território”, diz Baganha. “Esse súbito interesse imobiliário transformou os preços por metro quadrado do centro na zona mais cara do Porto.” Os vereadores de urbanismo do Porto e de Lisboa disseram que medidas como a definição de áreas de habitação acessível estão sendo discutidas para conter o problema e farão parte de futuros planos diretores.

Cais e colinas

Uma constelação variada de investidores está por trás dos restauros, que se espalharam pelo país e bairros das cidades. Há capital nacional e estrangeiro, aportes feitos por grandes grupos ou por famílias ou investidores independentes. Também por empresas como a Vieira de Almeida, um dos maiores escritórios de advocacia de Portugal, que inaugurou sua nova sede no Cais do Sodré, região portuária de Lisboa, hoje cheia de bares e restaurantes descolados.

Cais de Sondré
Cais do Sodré: sede do escritório de advocacia Vieira de almeida, o projeto preservou a memória e o caráter industrial do edifício ao manter seu exterior discreto e dar nova vida ao interior, com pé direito de 15 metros (PMC ARQUITECTOS/José Campos/Divulgação)

“Para nós, sempre foi: temos de manter o caráter, a vida e o interesse que esse edifício tem”, diz o arquiteto Miguel Passos de Almeida, do escritório PMC Arquitectos, que desenvolveu o projeto no armazém de pé­ direito de 15 metros em conjunto com a Openbook. Exterior discreto e no interior “um novo mundo”. O espaço contempla forma nova de pensar, organização horizontal e integrada com a cidade (a sede anterior ficava em uma torre de nove andares em região menos central).

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A Eastbanc, fundo imobiliário, adquiriu uma série de espaços no bairro do Príncipe Real, hoje um dos mais nobres e charmosos de Lisboa, para promover um modelo de reabilitação de bairro. “Controlando uma boa parte do comércio, nós também conseguimos influenciar um bocadinho a tendência do bairro”, explica Tiago Eiró, CEO da Eastbanc. “É uma lógica em que, no conjunto, cada peça, cada comércio que devolvemos acrescenta valor aos outros.”

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A empresa é proprietária de vinte edifícios com usos distintos. A Embaixada, palácio neo árabe do século XIX, funciona como uma galeria de marcas modernas. Controla os espaços hoje ocupados pela loja de marcas brasileiras Pau Brasil, pela livraria brasileira Travessa e por diversos restaurantes. Em 2019, inaugurou o Palácio Faria, edifício residencial completamente reabilitado com plantas de 220 e 400 metros quadrados. O projeto do arquiteto português Eduardo Souto de Moura é o único investimento do grupo que foi posto à venda (das seis unidades, duas estão no mercado), os demais são alugados.

Novos usos, novas zonas

A avalanche de estrangeiros e a dinamização das cidades ampliaram as áreas e os usos dos edifícios restaurados: o Lisbon WorkHub é um antigo armazém transformado em coworking. No Porto, diversos armazéns foram reconfigurados em empresas de tech, como a garagem do século XX que virou escritório do Blip.

Villa Maria Pia
Villa Maria Pia: em Monte Estoril, antigo chalé de férias de rainha transformado em residencial à beira-mar. o projeto integra a reabilitação com novos elementos modernos, como piscinas privadas em diversas das catorze unidades (Architectural Visualisation/Divulgação)

Marvila, a zona industrial e de logística na parte oriental de Lisboa que abrigava fábricas de fósforo, borracha e armazéns de vinho exportados para as colônias portuguesas, fervilhava na década de 70, mas foi abandonada ao longo dos anos. A área, que seria comparável à Barra Funda paulistana, começou a ser requalificada na época da Expo 98 e hoje ganha nova vida com ateliês de artistas, lojas de móveis e cervejarias.

“Tudo era uma oportunidade em termos de arquitetura, que antes não existia”, diz Maria Manuel Alvarez, arquiteta do Lisbon WorkHub. Maria buscava um espaço para sua loja de decoração quando encontrou um enorme armazém no Poço do Bispo, mesma zona para a qual seus avós imigraram da Espanha 100 anos atrás.

Museu Berardo Estremoz:
Museu Berardo Estremoz: inaugurado em julho de 2020, o Palácio dos Henriques foi reabilitado para abrigar a coleção de oito séculos de azulejos do colecionador português Joe Berardo (Serralvarez Arquitectos/Divulgação)

O armazém estava abandonado há mais de trinta anos: “Havia infiltração e pilhas enormes de cocô de pombo”, conta Maria Manuel. “Era uma das melhores rendas (aluguel) de Lisboa — 2 euros por metro quadrado —, mas a condição era: vocês fazem tudo”.

Parte do espaço foi ocupada pelo Lisbon WorkHub, coworking da sua filha, Sara Praetere. “Ela já tinha o conceito em mente. Lisboa estava com muitos jovens, estrangeiros, e a Sara, interessada nessas novas formas de trabalhar.” O projeto foi vencedor do Prêmio Nacional de Reabilitação Urbana na categoria de melhor intervenção inferior a 1 000 metros quadrados. O contrato de cinco anos venceu no fim de 2020 e não foi possível renová-lo.

Agora existe muito interesse comercial nos espaços livres no centro da cidade e o proprietário o queria vazio. O Lisbon WorkHub recuperou seu investimento, mas uma operação lucrativa precisaria de mais tempo. Em dezembro, o coworking mudou-se para um novo espaço industrial na mesma zona. Antes de abrir, já tinha 50% de sua capacidade cheia, clientes do antigo local.

Poço do Bispo
Trinta anos de abandono: armazém no Poço do Bispo virou um espaço de coworking que atrai jovens para a descolada zona industrial de marvila (Serralvarez Arquitectos/Divulgação)

Pedras no caminho

As regras para restauros são definidas no plano diretor atual de cada município e dependem do grau de classificação do imóvel, que varia de patrimônio cultural da humanidade a imóvel de interesse municipal, e obter a aprovação de licenças ainda é desafio. Arquitetos e promotores reclamam que a incerteza afasta investidores.

Em Lisboa, o problema intensificou-se com o aumento do volume de pedidos de aprovação de obras, que crescia anualmente até a pandemia — em 2019, foram 5 250; em 2020, 1 340 (até meados de novembro). “Foi um crescimento muito mais rápido do que a capacidade da própria Câmara de se adaptar a esse aumento”, explica Ricardo Veludo, vereador do urbanismo de Lisboa, acrescentando que isso gerou um passivo em termos de licenciamentos.

A prefeitura lisboeta implementou um conjunto de medidas para trazer mais eficiência, entre elas, a Via Verde da Reabilitação (um Sem Parar da aprovação de licenças de restauros) e uma plataforma digital do urbanismo. Na última década, foram aprovados 14 600 projetos — 95% dos quais foram restauros. Em linhas gerais, reformas internas são facilmente liberadas, desde que se mantenham a fachada e a volumetria do edifício.

Superado esse primeiro desafio, surgem as “pedras no caminho”. Como as reabilitações acontecem em zonas históricas, é comum encontrar surpresas — moedas, peças de barro, estruturas antigas — que requerem a inclusão de um arqueólogo na equipe. As escavações passam a ser feitas com um pincel, aumentando significativamente o tempo das obras e as histórias para contar.

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Publicado em VEJA São Paulo de 20 de janeiro de 2021, edição nº 2721

 

 

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