Os desafios da Berrini para dar a volta por cima
Ocupada a partir dos anos 70, a avenida na Zona Sul começa a receber ações para reverter a crise econômica e anos de prioridade ao uso comercial
Cerca de cinquenta moradores, empresários e até policiais que circulam pela região da Avenida Engenheiro Luís Carlos Berrini se reúnem todo mês em uma sala do Centro Empresarial Nações Unidas, com vista para a Ponte Estaiada Octávio Frias de Oliveira, no Brooklin. Ali discutem o desenvolvimento de projetos de zeladoria, segurança e organizam planos para agitar a vida cultural do lugar. Batizado de Conexão Berrini, o time voluntário está por trás de ações como a limpeza das pichações da Ponte Estaiada em 2017 e das negociações para a implantação de um Batalhão da Polícia Militar, que será bancado por empresas da área a um custo de 3 milhões de reais.
Outra ideia surgida no conselho foi o projeto de melhoria de uma praça com vista privilegiada para a Estaiada, que deve sair do papel neste ano. Boa parte das iniciativas é custeada e organizada por meio de doações de vizinhos e colegas do grupo. “Não queremos cobrar nada do poder público, mas sim perguntar como ajudar”, explica Luciano Montenegro, um dos líderes do comitê e CEO do World Trade Center (WTC) Lisboa.
O entorno do complexo que engloba o Hotel Sheraton, o WTC e o Shopping D&D também ganhou algo de vida no fim de 2017 com a instalação de duas áreas de convivência, com grama artificial e pufes coloridos, em um espaço onde o concreto, as largas vias para os carros manobrarem e a ausência de sombra são dominantes. Nesse perímetro, o onipresente grafiteiro Eduardo Kobra pintou retratos de celebridades e de ganhadores do Nobel da Paz, como a religiosa indiana Madre Teresa de Calcutá (1910-1997) e a ativista paquistanesa Malala Yousafzai. Até o fim do ano devem ser criados mais espaços e obras de arte por ali, em um investimento estimado em 8 milhões de reais.
A expectativa da empresária Cristiane Bomeny, responsável pela WCity, área ligada a inovação e melhorias de espaços de trabalho do WTC, é ampliar as parcerias com artistas e outros profissionais. “Eu achava essa região muito triste”, diz ela, que é filha do incorporador Gilberto Bomeny, que abriu o WTC. “A inspiração para as mudanças veio de Inhotim, um lugar espetacular”, completa Cristiane, em referência ao famoso museu a céu aberto localizado a 60 quilômetros de Belo Horizonte. Outra novidade é uma feirinha de food trucks que ocorre às quintas-feiras no Centro Empresarial Nações Unidas. A partir de fevereiro, a Berrini receberá pela primeira vez alguns blocos de Carnaval, como o Bonde do Pesadão, com previsão otimista de atrair até 100 000 pessoas.
Proliferam assim ações para humanizar o bairro, que se organizou com jeitão de centro empresarial de subúrbio americano. Com 24% do estoque de escritórios de alto padrão da capital, cerca de 74 000 pessoas batem ponto de segunda a sexta no horário comercial no bairro, de acordo com estudo da empresa de análise de dados Neoway. Nos fins de semana, quando as 7 000 empresas dali não têm expediente, tudo muda, o comércio fecha as portas e o entorno fica tristemente desabitado. Os poucos estabelecimentos que se atrevem a funcionar recebem apenas 10% do fluxo habitual de clientes.
“Em dias de semana, é como uma versão em miniatura da Avenida Paulista. No sábado e no domingo, parece o deserto do Saara”, afirma o copeiro Álvaro Xavier, que trabalha em uma lanchonete. Parte dessa debandada pode ser percebida na Estação Berrini da CPTM, cujo movimento cai 75% nos sábados e 91% nos domingos. Trata-se da maior diferença porcentual em toda a Linha 9-Esmeralda, que conta com outros pontos de parada ligados a importantes endereços, como Vila Olímpia e Pinheiros.
Esse esvaziamento da Berrini nos fins de semana é resultado de décadas de um conceito torto, determinado pelas leis municipais e pela conveniência do mercado imobiliário, de fazer uma área “setorizada”, nos moldes de Brasília, exclusivamente corporativa. Moradia não foi produzida em quantidade no entorno — previsivelmente, uma multidão de carros deixa o lugar no fim do expediente, criando congestionamentos dolorosos. As próprias torres empresariais não oferecem opções culturais ou de varejo nos térreos. É comum ver estacionamentos ocupar a entrada dos edifícios, sem o menor contato com a calçada. “A prefeitura deveria ter promovido uma ocupação mais diversa enquanto a avenida estava crescendo”, opina o professor Eduardo Alberto Cuscé Nobre, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP).
A boa notícia é que o quadro pode ser revertido — e as recentes iniciativas estão na direção correta. “Uma maneira de requalificar um bairro com essa característica é trazer novas ofertas de entretenimento e lazer e incentivar a vinda de moradores”, avalia a arquiteta Adriana Levisky, do Conselho de Arquitetura e Urbanismo de São Paulo (CAU-SP). Quem circula por ali concorda. “Falta lazer, como cinemas e um centro gastronômico na Berrini”, lamenta o empresário Marcelo Bicudo, morador do Brooklin e CEO da empresa de tecnologia voltada para a área de hotelaria Allpoints, instalada na região. “Há oportunidade para criar uma vida cultural mais intensa”, completa.
Um fator que contribuiu para o perfil atual da Berrini é a quase inexistência de edifícios de uso misto, que possam reunir empresas, comércios e residências no mesmo local — algo comum na sempre vibrante Avenida Paulista. Finalmente, começam a surgir iniciativas nesse formato por ali. Com previsão de entrega para 2021 nas proximidades da vizinha Avenida Chucri Zaidan, o complexo Parque da Cidade contará com shopping, torres comerciais e residenciais, além do hotel Four Seasons, já em funcionamento. Será o maior empreendimento misto do entorno. Algo semelhante poderia ter sido feito com o Berrini One, entregue em 2016. “Naquela ocasião, perdeu- se a oportunidade de criar uma sinergia com a quadra, a exemplo do que ocorre no Conjunto Nacional, na Avenida Paulista, onde há cinemas e restaurantes no térreo”, diz Roberto Aflalo Filho, um dos sócios do escritório Aflalo/Gasperini, responsável pelos dois empreendimentos.
A escassa versatilidade das construções impacta diretamente a rotina do bairro. Cerca de 91% das pessoas que circulam no eixo formado pelas avenidas Berrini e Chucri Zaidan são funcionários de companhias do entorno, e não moradores, segundo levantamento realizado pela empresa especializada em inteligência de mercado e geomarketing Cognatis, a pedido de VEJA SÃO PAULO. “Além disso, trata-se de um centro carente. Para os frequentadores da Berrini, o número de farmácias, hipermercados e padarias é abaixo do ideal”, analisa Reinaldo Gregori, diretor da Cognatis e responsável pelo estudo.
Abandonadas à própria sorte, as áreas verdes, com pouquíssimos bancos ou locais para descanso, também figuram como um ponto fraco da região. A maior delas, a General Gentil Falcão, apresenta problemas de zeladoria. Mas o pior cenário é encontrado na interseção da Berrini com a Ponte Ary Torres, no acesso à Avenida dos Bandeirantes, onde há usuários de drogas — segundo a prefeitura, o grupo não aceita o atendimento da Secretaria de Assistência e Desenvolvimento Social. Na outra ponta, junto à Avenida Jornalista Roberto Marinho, as inacabadas obras da Linha 17-Ouro do metrô, a do monotrilho, são mais uma ferida aberta. Elas estão há mais de cinco anos atrasadas e atualmente paralisadas, e não há prazo para a entrega.
Outro projeto parado é o do escritório de planejamento urbano Urb-i para melhorar a Rua Joel Carlos Borges, um dos acessos à Estação Berrini da CPTM. No ano passado, o lugar, onde há fluxo intenso de pedestres nos horários de pico, recebeu faixas verdes que funcionavam nos moldes de uma extensão das calçadas. A obra ficou a cargo da CET e, depois de pronta, a ideia foi aprovada por 92% das pessoas que circulam na região, de acordo com pesquisa realizada por organizações como a WRI Brasil, dedicada a promover a sustentabilidade. “O projeto inteiro previa mobiliários, lixeiras e lugares para passar o tempo, mas não foi continuado”, lamenta Paulo Franco, um dos integrantes do escritório responsável. Além disso, o lugar sofre com a degradação. Parte dos balizadores foi arrancada, há lixo acumulado e bares próximos costumam colocar mesas e cadeiras no espaço dedicado aos transeuntes. A prefeitura afirma que vai realizar a limpeza das áreas.
Outro problema patente é o trânsito nos horários de pico. As filas começam dentro dos estacionamentos e se estendem por toda a via. A precária rede de transporte público do pedaço e as constantes falhas nos trens da CPTM não ajudam a desatar o nó. O uso de veículos fretados é comum. “A maioria dos funcionários vem sem carro e reclama das poucas linhas de ônibus”, diz Fabio Zveibil, vice-presidente de desenvolvimento de negócios da startup de finanças Creditas, localizada próximo à ponte da Bandeirantes. Há quem recorra às patinetes de aluguel ou até mesmo se locomova de bicicleta desde outras regiões da cidade. “O lado bom é que emagreci 16 quilos nesses últimos dois anos”, afirma o empresário Márcio Waldman, CEO do e-commerce PetLove, que todo dia pedala 30 quilômetros de Higienópolis, onde mora, até seu local de trabalho, no Centro Empresarial Nações Unidas, na Marginal Pinheiros.
Criada em 2001 com a função de reestruturar a área às margens do Rio Pinheiros, a Operação Urbana Água Espraiada foi a responsável por uma onda de obras públicas nesse local. Por meio de contrapartidas de empresas que desejavam aumentar seu potencial construtivo na região utilizando títulos mobiliários leiloados, a prefeitura arrecadou recursos suficientes para erguer um dos principais cartões-postais da cidade, a Ponte Estaiada, e custeou o prolongamento da Avenida Chucri Zaidan, orçado em 1 bilhão de reais, ainda em andamento. Para variar, enquanto o grosso do dinheiro arrecadado foi para vistosas obras viárias, apenas uma parcela pequena, de 70 milhões de reais, foi dedicada à habitação, permitindo a construção do Jardim Edite, conjunto habitacional popular na esquina da Roberto Marinho com a Berrini, onde vivem 1 200 pessoas. O projeto, que substituiu uma favela, conta com um restaurante-escola e um posto de saúde. Apesar da melhoria, moradores se queixam, discretamente, que o poder do tráfico de drogas continua crônico.
Uma segunda etapa da Operação Água Espraiada foi aprovada no fim do ano passado. Com arrecadação total estimada em 2,9 bilhões de reais, a ideia é realizar mais obras viárias, construir outras áreas de interesse social como o Jardim Edite, além de implementar praças e parques nos próximos cinco anos.
A região do eixo Berrini-Zaidan recupera-se de uma crise iniciada em 2013 que diminuiu gradativamente o preço do metro quadrado e aumentou o número de escritórios vagos. A baixa procura foi combinada a uma grande entrega de novos endereços, quase 400 000 novos metros quadrados até 2017, de acordo com levantamento da consultoria Buildings. Antes desse período nebuloso, alugar uma área na Berrini era uma tarefa árdua, a vacância chegou a ser de menos de 1%. Atualmente, no entanto, a desocupação de prédios de alto padrão chega a 15%.
Nesse quesito, a demanda é bem mais firme no Itaim Bibi e na região da Juscelino Kubitschek, com vacância que não chega a 3% (confira o quadro na pág. 15). Se considerados os prédios de todos os tipos, a vacância da Berrini sobe para 22%, contra 12% do Itaim e 7% da JK. Estimativas do setor mostram que essa disparidade tende a cair até o fim deste ano. “Há também o otimismo do mercado em geral”, analisa Giancarlo Nicastro, CEO da empresa SiiLa Brasil, especialista em dados de imóveis comerciais. Outra diferença do metro quadrado no aluguel. A média na Berrini para unidades de alto padrão é de 106 reais, enquanto em outras freguesias, caso do Itaim, o valor pode sair a 168 reais pela mesma metragem, 58% a mais.
Atraídas pelos espaços vagos e preços convidativos, novas empresas desembarcaram na área, como a Bridgestone, a multinacional de tecnologia Salesforce e uma seleção de coworkings. O WeWork, por exemplo, instalou uma dupla de escritórios por ali nos dois últimos anos e prepara-se para levar um terceiro. Por causa do valor mais acessível do aluguel, os clientes pagam até 27% a menos do que em outros bairros. “Percebemos que havia uma demanda reprimida”, explica Hugo Silveira, diretor de comunidade da WeWork. Também passaram a funcionar no local duas novas unidades da rede Regus e uma da Spaces. Nelas são realizadas desde sessões de cinema no terraço até eventos de relacionamento empresarial a que os participantes devem levar seus animais de estimação.“Grandes empresas estão cogitando organizar-se em lugares compartilhados, e vejo isso ocorrendo na Berrini”, diz o empresário responsável pela expansão, Tiago Alves, que investiu 28 milhões de reais nas novas unidades da avenida.
Os primeiros traços de ocupação na região da Berrini remontam ao início da década de 70, quando a família Bratke começou a construir dezenas de prédios comerciais na área. Outra etapa do crescimento ocorreu em meados dos anos 90, com a chegada do complexo que engloba o shopping de design D&D, atualmente em processo de reestruturação para a entrada de mais lojas, o WTC e um centro de convenções. À epoca, o lugar foi celebrado em capa de VEJA SÃO PAULO como um novo centro da cidade, “com comércio e lazer”. Algo que ainda não se realizou. “Quando preciso fechar um contrato importante, marco almoços em restaurantes de outros bairros. Aqui, só há opções mais simples”, entrega Roberto Bratke, à frente da Bratke Collet, construtora que ajudou a dar cara ao bairro.
CONCORRÊNCIA ACIRRADA
A Berrini tem mais espaços vazios e preços menores do que outras regiões com perfil semelhante na cidade
ESCRITÓRIOS VAGOS (Porcentual do total de unidades de alto padrão)
- 15% Berrini
- 8% Paulista
- 3% Juscelino Kubitschek
- 2% Itaim
METRO QUADRADO (Valores em reais para aluguel de salas comerciais)
- 168 Itaim
- 130 Paulista
- 122 Juscelino Kubitschek
- 106 Berrini
* Fonte: SiiLa Brasil