“Queremos mais professores pretos e pardos na USP”, diz pró-reitora
À frente da Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento, Ana Lúcia Lanna será responsável pela nova banca que vai julgar casos de fraudes em cotas raciais
A nova reitoria da USP, empossada em janeiro, já deixa duas marcas contundentes: criou uma banca para julgar suspeitas de fraude entre os aprovados no vestibular via cotas raciais (um desejo do movimento negro) e uma Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento (PRIP) — que, entre outras coisas, vai coordenar essa banca.
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À frente da Prip, está a mineira Ana Lúcia Lanna, 63, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU-USP) desde 1989. “Queremos os temas sociais no centro da gestão da USP”, diz.
Quais serão os critérios da banca que vai avaliar os cotistas raciais?
Nesta semana, será definido o documento (com os critérios). Havia um problema: na USP, esse sistema funcionava por denúncia. O aluno entrava, alguém o denunciava e começava um processo de apuração. Durante esse processo, muitas vezes demorado, o aluno ficava em suspenso, sem saber se seguiria no curso. Era uma situação difícil. Com a mudança de reitoria, decidimos implementar a comissão de identificação, que era uma demanda dos movimentos negros e uma prática em universidades como a Unesp e a Unicamp.
O que já se sabe sobre os critérios?
A primeira etapa será uma verificação por foto. Não via software de reconhecimento, a foto será analisada pela banca. Isso vai decidir se existem dúvidas sobre tal pessoa — estamos definindo se será por unanimidade, maioria simples ou qualificada. Nossa proposta é que sejam cinco pessoas na banca: um aluno de graduação, um de pós-graduação, um servidor, um docente e um membro da sociedade. Quando surgir dúvida na foto, será feito um encontro presencial para confirmar ou não a suspeita. Depois, haverá uma instância de recurso, no âmbito da pró-reitoria. Todo esse processo deve terminar antes da confirmação da matrícula.
Os alunos da banca serão membros dos movimentos negros?
A nossa ideia é essa.
Como definir “quão negro” será o aprovado? Desde 2017 houve 200 denúncias por parte dos movimentos negros e só sete expulsões, ou seja, não é fácil definir o critério. Os julgadores serão instruídos?
“A diversidade traz desafios que nos obrigam a pensar. A USP se revigora com isso. Hoje, temos uma capacidade de propor soluções para a sociedade que não tínhamos”
Serão. A proposta é que os membros da banca façam cursos de questões étnico-raciais, para terem um repertório. Valerá o critério fenotípico (baseado em característica física). Não exclusivamente fenotípico, será considerado também o contexto das pessoas, mas isso estará subordinado à fenotipia. O fato de existir uma banca ajudará a garantir a imparcialidade, o que é imprescindível para um concurso público.
A USP foi uma das últimas universidades a adotar a banca julgadora e as próprias cotas raciais (em 2018). Por que a demora?
A USP também foi a primeira a criar uma Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento. Acho que cada universidade tem sua história, seu ritmo e suas características. No caso das cotas, a USP apostava em outra política: a de inclusão de alunos de escolas públicas, que até hoje é a base do nosso sistema de cotas (há 50% de vagas para estudantes de escola pública e, entre esses, são incluídos os cotistas raciais). A universidade teve várias políticas para incentivar essa inclusão. Em determinado momento se constatou que esses programas tinham atingido um patamar máximo (e vieram as cotas raciais).
A mudança para a nova reitoria tornou a USP mais progressista?
É difícil dizer. O que posso garantir é que a nova gestão, desde o início, assumiu compromissos muito inovadores. Além de criar a pró-reitoria, que é algo emblemático, ela sinalizou para todas as áreas da USP uma aposta em políticas com preocupação social. São várias ações nesse sentido. Há um desejo de trazer essas políticas para o centro da gestão, então houve uma mudança.
Como demonstrar com dados que a política de cotas raciais foi benéfica para a universidade?
A USP continua muito bem. A pontuação nos rankings internacionais, as redes de pesquisa e extensão, tudo continua superando os indicadores. De forma alguma a política de cotas atrapalhou o desempenho. Mas, mais que isso, ela contribui para a excelência. Ter alunos de origens e lugares diversos significa um conjunto de desafios novos. A gente teve de repensar os temas, dialogar com problemas novos. Sou professora na FAU. Uma coisa é você entrar na sala de aula e ter um público homogêneo, outra é ter alunos do Brasil inteiro, de São Paulo inteira. As greves de ônibus, por exemplo, passaram a nos afetar. Antes não, porque a imensa maioria dos alunos vinha de carro. A diversidade nos obriga a pensar. A universidade se revigora com esses desafios. A USP tem hoje uma capacidade de propor soluções para a sociedade que não tinha.
Praticamente não existem dados sobre o desempenho dos alunos cotistas. A USP não tem esses dados?
Estamos desenvolvendo as métricas. É um desafio da nossa pró-reitoria. Temos os dados de forma dispersa. Sabemos que o cotista não tem pior desempenho.
Não seria apenas pegar as notas desses alunos e fazer as contas?
É mais complexo. Isso (usar as notas) foi feito com um grupo pequeno, em uma pesquisa ligada a bolsas que o Itaú dá à USP (ela indicou que havia uma diferença de 1,2 ponto nas notas no primeiro ano, que depois diminuía). Temos pesquisas em outras pró-reitorias, mas não temos o conjunto dos dados. É algo que faremos.
Apenas 2,7% dos professores da USP são pretos ou pardos. Haverá iniciativas para mudar isso também?
É uma ideia perseguida pela nova gestão. Estamos entendendo a questão, que é complexa. Por exemplo: como respeitar uma cota de 30% em uma contratação se 99% dos concursos abertos são para apenas uma vaga? Essa é uma das dificuldades. Além disso, a característica fundamental da contratação para o serviço público é a impessoalidade. Mas a complexidade não é um impeditivo. Existe essa vontade, e estamos pensando em estratégias.
Há uma previsão de se rever a lei de cotas neste ano. A senhora acha que deveria haver mudanças?
Acho que temos de manter a lei. Ela é eficiente e está conectada à desigualdade e às dívidas históricas do país. Hoje, a ideia da revisão caminha mais para uma supressão (das cotas). A luta deve ser para mantê-las.
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Publicado em VEJA São Paulo de 3 de agosto de 2022, edição nº 2800