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A casa destruída

Por Walcyr Carrasco
Atualizado em 5 dez 2016, 19h44 - Publicado em 18 set 2009, 20h18

Um casal de amigos avisa que vem me visitar. Sinto um arrepio de terror. Não por eles. Somos próximos desde antes de seu casamento. Mas devido aos dois filhos pequenos! Corro para colocar os objetos no alto de estantes, dentro dos armários da cozinha etc. Somem vasos, castiçais, cinzeiros. Arrumo a mesa de centro com copos, queijo, bolachas, docinhos. Escondo um patê no fundo da geladeira, assim como um vidro de berinjela no azeite. “Tudo o que possa derramar será derramado”, aviso a mim mesmo.

As crianças são umas gracinhas. Lindas. Inteligentes. Ágeis. Mas os pais são incapazes de dizer “não”. Logo depois que eles chegam, a casa parece ter passado por um arrastão. Restam os copos, é claro. Assim que sirvo o refrigerante, o garoto arrebenta o seu contra a mesinha. Posso parecer rabugento. Mas qual o motivo de ele sorrir alegremente? A mãe também sorri:

– Quebrou! Quer tomar do meu copo, filhinho?

– É melhor recolher os cacos, senão as crianças podem se cortar – diz o pai, imóvel.

Enxugo. Limpo a mesa, o tapete. Minha amiga indaga distraidamente:

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– Era parte de algum jogo?

– Não faço questão de ter copos iguais, vivem quebrando.

Por que disfarço? Para preservar a amizade. Se disser um “ai”, ela se voltará contra mim. Não admite que alguém dê bronca nos filhos! Ouço um grito. É a menina. Acaba de derrubar meu vaso de violetas preso na parede. Ficou na pontinha dos pés e puxou. O pai vai abraçá-la.

– Machucou, bonitinha? Não chora, não chora…

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Agora é a vez de varrer o chão. Ganhei as violetas de presente há alguns anos. Eram a lembrança de uma grande amizade. Saio da recordação ao ouvir novo grito lancinante. O garoto escorregou. Bateu o queixo e está sangrando.

Enquanto a mãe lava o ferimento e passa remédio, ele consegue atirar meu sabonete perfumado dentro do vaso. Olha para mim e sorri. Arreganho os dentes de volta. Aproveito e faço uma expressão monstruosa. Ele grita e se refugia nos braços maternos. Ela me encara com horror.

– Só brinquei – digo inocentemente.

– Viu? Era só o tio! Vai, abraça o tio.

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Ele vem para meu colo. Há um instante de trégua. Até ele puxar minha corrente com o crucifixo. Os elos arrebentam. A mãe observa fracamente.

– Ih! Arrebentou a correntinha do tio.

– Corram aqui! – grita o pai.

A garotinha acaba de botar a cruzinha de ouro na boca. Eu seguro seus braços, a mãe a cabeça, e o pai abre os dentes cerrados. Consegue agarrar o pequeno crucifixo antes que seja engolido. Quando terminamos, cadê o garoto? Procuramos pela casa desesperadamente. Ouço um latido. Ele fugiu pelo portão! Tenta agarrrar o dobermann do vizinho, que passeava com o cão. O dono puxa a coleira, para impedir que o cachorro triture a criança. Berra:

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– Sai daqui, sai daqui!

A mãe afasta o menino, furiosa:

– Não grita com meu filho!

O anjinho chora mansamente, magoado!

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Sirvo rapidamente os bombons guardados na geladeira. As crianças adoram. Aproveitam para exercer suas habilidades artísticas no sofá branco e nas almofadas, em que passam os dedos com as mãos imundas de chocolate.

– Vocês sujaram o rosto! – descobre a mãe.

Olho em torno, desconsolado. Onde estará o tira-manchas?

O casal despede-se.

– As crianças precisam tomar banho. Foi uma tarde ótima.

Caio sentado no sofá. Vejo uma cadeira virada, mas não tenho forças para arrumá-la. Por que alguns pais e mães são incapazes de dizer “não”? E mais: como serão essas crianças quando se transformarem em adultos, crescendo assim, sem noção de limites?

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