GRAACC muda gestão, planeja novo hospital e quer aumentar taxa de cura
O centro de referência em câncer infantojuvenil pode passar a receber adultos e, através da genética, busca possibilitar maior sucesso nos tratamentos
Em 1991, se uma criança precisasse tratar um câncer pelo SUS na capital paulista, tinha boas chances de ser encaminhada ao 9º andar do Hospital São Paulo, uma ala para esses pacientes que retratava o improviso e a precariedade daqueles tempos. Os pequenos recebiam as doses de quimioterápicos nos corredores, em cadeiras de plástico. Houve situações em que os médicos não sabiam o nome do paciente que socorriam durante uma convulsão, por falta de prontuários. Estima-se que o Brasil curava entre 30% e 40% dos tumores diagnosticados em crianças e jovens, índice típico dos países subdesenvolvidos. Naquele ano, um time que participava desses atendimentos teve uma ideia que ajudaria a mudar o cenário.
Liderados pelo doutor Sérgio Petrilli, que tinha aprendido nos Estados Unidos as lógicas — principalmente a financeira — dos hospitais filantrópicos, alugaram uma casinha na Rua Botucatu, na Vila Clementino, onde criaram a primeira instituição da cidade voltada ao câncer infantojuvenil, o GRAACC (Grupo de Apoio ao Adolescente e à Criança com Câncer), que faz trinta anos em novembro e é referência nesse tipo de tratamento.
Foi um começo modesto. “Não havia conforto algum na casinha. A maca ao lado ficava a menos de 1 metro de distância, vi muitas crianças morrerem”, diz o paulistano Guilherme Pinheiro, 41, hoje professor de tênis, que viveu um tratamento duríssimo ali entre 1994 e 1995 — um ano e dois meses de quimioterapia, mais 48 sessões de radioterapia para curar um sarcoma de Ewing no pé. “Aos 14 anos, eu pesava 24 quilos”, conta.
A casinha incorporou outros sobrados, que deram lugar ao prédio do hospital (1998), depois ampliado com outro prédio vizinho e mais moderno (2013). No ano passado, apesar da pandemia, o GRAACC atendeu 3 889 pacientes, fez 32 183 consultas, 20 463 aplicações de químio, 4 958 sessões de radioterapia, 1 529 cirurgias e 66 transplantes de medula óssea. Historicamente, perto de 80% dos pacientes são atendidos pelo SUS. Dos 8 500 novos casos do Brasil no ano, 435 serão tratados na instituição paulistana. A taxa de cura é de 72%, acima dos 64% da média nacional.
Esse índice, no entanto, atingiu uma espécie de teto, mesmo no GRAACC. Desde 2014, quando o hospital passou a fazer radioterapia (ou seja, entrou na fase atual), ele fica próximo a 70%. Nos Estados Unidos, os casos bem-sucedidos já são 84% do total. Uma explicação é a própria diferença econômica dos países, que resulta em diagnósticos mais precoces por lá. Mas outra barreira nos separa da realidade americana: a chamada “medicina individualizada” para crianças e jovens.
Baseada em genética, ela é capaz de indicar um tratamento específico para cada paciente. É a atual aposta do GRAACC para retomar a alta nas curas. “Temos bons medicamentos e superamos o problema da falta de diagnóstico. Chegamos a alcançar o patamar dos EUA, mas, com a evolução deles em terapias genéticas, voltamos a ficar para trás”, diz Monica Cypriano, diretora clínica do GRAACC. Em 2018, a instituição começou a sequenciar tumores — já fez mais de 600 exames. Agora, acaba de receber 6 milhões de reais para comprar uma máquina para o sequenciamento dos genes dos pacientes, o próximo passo dessa terapia.
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“Desde que os EUA avançaram em terapia genética, conseguiram subir a taxa de cura.”
Monica Cypriano, diretora clínica
O câncer infantil é diferente do adulto. Não acontece por exposição a fatores de risco. Tem razões pouco conhecidas e tende a aparecer onde as células são mais embrionárias (ou menos especializadas), como na medula óssea e na retina. Os tumores crescem mais rapidamente, mas o tratamento com quimioterápicos funciona melhor.
“O câncer infantil é altamente curável se for encontrado cedo”, diz Petrilli. Tornou-se a principal causa de mortes no país até os 19 anos, uma característica demográfica das nações desenvolvidas. O Brasil, nas últimas décadas, aprendeu a diagnosticar melhor a doença — e o GRAACC teve papel importante nisso. Além dos tratamentos de ponta, a instituição tem um viés científico forte. Ajudou a criar diversos protocolos da Sociedade Brasileira de Oncologia Pediátrica, tem representantes nas diretorias dos principais painéis globais sobre o tema, formou mais de 180 residentes especializados, mantém uma longa parceria com a Unifesp (de onde vem boa parte do corpo clínico), tem um banco de tumores com mais de 20 000 amostras, trouxe para o país inovações em medicamentos e máquinas e participa atualmente de vinte testes de drogas pioneiras para o câncer infantojuvenil.
Na cúpula, o GRAACC passou por mudanças. Petrilli — que divide o panteão dos fundadores com a voluntária Lea Della Casa Mingione e o engenheiro Jacinto Antonio Guidolin — se aposentou da superintendência dois meses atrás, aos 74 anos (pelo estatuto, teria de deixar o comando aos 75). Criado na Pompeia, corintiano apaixonado, ele agora dedica mais tempo ao pilates e às caminhadas no Parque Villa-Lobos.
Suas funções foram divididas entre Monica (na parte clinica) e André Albanez, 50, que se tornou o CEO do GRAACC no ano passado. Até então, Albanez comandava o São Luiz do Morumbi, com orçamento anual próximo a 2,5 bilhões de reais — no GRAACC, terá 180 milhões de reais em 2021. Médico com perfil de gestor, ele unificou os sistemas digitais e renegociou preços com fornecedores. Agora, está à frente do plano de expansão, que inclui construir um novo prédio hospitalar, ao lado dos dois atuais (abaixo).
A unidade dobraria a capacidade de atendimento do GRAACC, hoje de sessenta leitos. O projeto é orçado em 100 milhões de reais e deve sair do papel em 2024. Para arcar com as despesas, a instituição planeja uma mudança emblemática: espichar a faixa etária dos pacientes de 18 para 30 anos. Ou seja, passar a atender adultos. “Nessa população, a cura cresceu pouco, mas muitos casos são biologicamente parecidos com os infantojuvenis”, explica Monica.
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Um terço da receita do GRAACC (ou 56 milhões de reais) vem de pequenas contribuições feitas por 300 000 doadores anônimos. “Cerca de 80% moram em São Paulo”, diz Petrilli. A legião solidária cresceu significativamente depois que o GRAACC desistiu do desgastante telemarketing e apostou nos “boletos voluntários” que envia aos paulistanos (tinham de fazer 250 ligações para conseguir um doador, agora têm sessenta a cada 1 000 boletos enviados).
A marca forte da instituição foi fundamental — o logotipo, por sinal, é também uma doação: da extinta agência Salles/Interamericana de publicidade. “Nos EUA, aprendi a importância do marketing nos hospitais filantrópicos. Eles faziam campanhas com jogadores de beisebol que tiveram a doença, batizavam as alas com nomes de doadores etc.”, lembra Petrilli.
A parceria com o McDonald’s, desde 1993, valeu como selo de credibilidade (mais de 90 milhões de reais foram repassados pelo McDia Feliz). Aos poucos, a imagem do GRAACC virou um porto seguro para quem queria doar e só não sabia em quem confiar. “Contribuo com o GRAACC desde antes de tratar meu câncer (no Sírio-Libanês)”, diz o ator Reynaldo Gianecchini, 48, que dá nome a uma ala do hospital. “Recebo muitos pedidos, mas ajudo eles porque sei que são sérios”, diz. Graças à filantropia, o GRAACC tem remédios melhores que o padrão SUS, ainda que a rede pública não banque todo o custo.
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Hoje, o ambiente colorido e otimista do GRAACC não lembra em nada a velha casinha — embora, claro, cenas difíceis ainda sejam frequentes. “Gosto daqui, é um lugar bonito”, confirma Pedro Noronha, 9 anos, no final do tratamento de um rabdomiossarcoma na cabeça, que, apesar do nome difícil, ele sabe explicar em detalhes. “Quero ser médico, se o plano de virar jogador não der certo”, diz.
A decoração lúdica não impede uma política do GRAACC de falar abertamente com as crianças sobre a doença. “Elas precisam saber quanto é sério. Se você fingir que está tudo bem, não aceitam um tratamento longo e doloroso”, diz Monica.
“O GRAACC trouxe uma melhora substancial ao cenário brasileiro. Criou um círculo virtuoso que atrai o melhor da pesquisa e cooperação internacionais”, diz Marceli Santos, especialista de vigilância e análise de situação no INCA, o Instituto Nacional de Câncer. Para muitas das crianças que enfrentam a doença, representa algo mais simples e poderoso: a melhor chance que têm.
“O que me dá força é ver tantas histórias de superação aqui”, diz Gonçala Costa, mãe de Maya, de 3 anos, que faz radioterapia para curar um tumor no cérebro. Rita de Cássia, mãe da Anna Laura, de 9 meses, já nota a melhora do neuroblastoma descoberto em julho. “A químio já limpou a medula dela”, conta. “O Frederico (de 3 anos) concluiu o tratamento de um sarcoma espinocelular no ano passado, mas seguimos vindo de Mato Grosso do Sul a cada quatro meses para fazer os exames de controle no GRAACC”, diz a mãe, Mônica Lino. “Nossa segurança está aqui. O hospital fez toda a diferença no tratamento dele”, ela conclui.
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Publicado em VEJA São Paulo de 3 de novembro de 2021, edição nº 2762